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Jornalismo

As crianças de cabelo liso zombavam das meninas com cabelo crespo. Quem tinha a pele mais escura não era convidado para algumas brincadeiras. Ao observar a interação no intervalo da EE Narciso da Silva César, em Araraquara (SP), a professora Maria Fernanda Luiz notou como as relações raciais interferiam na convivência entre os estudantes. E resolveu que o contato das turmas de 3º e 4º anos com a cultura africana poderia acontecer por meio das brincadeiras infantis e, de quebra, combateu os sinais de racismo.

Para ensiná-las aos alunos, Maria convidou estudantes africanos da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e do Núcleo de Estudo e Pesquisa União Africana da Universidade Estadual Paulista (Unesp).

Alguns vieram até a escola, outros explicaram as regras via Skype ou vídeo. O importante, para a turma, foi o contato com eles, que mostraram um pouquinho da cultura de países como Angola, Guiné-Bissau, Moçambique, São Tomé e Príncipe e Cabo Verde, orientando os alunos na execução das brincadeiras.

As crianças estranharam os sotaques regionais, mas nem por isso deixaram de reparar nas regras, um dos pedidos de Maria Fernanda à turma. Aprendida a atividade, as crianças a registravam em seu caderno para que, depois, pudessem praticá-la.

As produções foram feitas de maneira individual e coletiva. Juntos, eles discutiram sobre como redigir os textos para que outras pessoas entendessem o jogo e aprenderam a usar o imperativo. Em alguns momentos, a docente organizou os alunos em duplas para escrever.

"Algumas expressões faladas nos outros países eles não conheciam e precisaram procurar no dicionário. Foi ótimo, pois estávamos trabalhando a ordem alfabética", explica ela. Além de revisados, os textos produzidos foram ilustrados, compondo um livro entregue à Coordenadoria Executiva Especial de Promoção da Igualdade Racial da cidade de Araraquara. Assim, o conhecimento dos pequenos pôde se multiplicar para outros lugares.

Garrafinha

A brincadeira angolana é realizada por dois grupos de três a oito pessoas cada um. No centro do espaço para o jogo (pode ser uma quadra, ou qualquer outro espaço livre), uma equipe enche e esvazia garrafinhas com areia. Enquanto isso, a outra equipe arremessa uma bolinha, tentando atingir as pessoas do centro. A dinâmica lembra o jogo de queimada. Quando acertam alguém, as equipes trocam de lugar. O objetivo não é ganhar ou perder, e sim se divertir (veja vídeo em bit.ly/jogo-garrafinhas).

Labirinto

Vinda de Moçambique, pode ser brincada na quadra ou no pátio da escola. Com um giz, desenha-se um labirinto no chão e as crianças devem começar na extremidade externa do desenho (elas podem ficar em pé ou usar uma pedra para representar cada jogador). Para avançar pelo caminho, os jogadores tiram par ou ímpar e o vencedor de cada rodada avança para a posição seguinte. Isso se repete várias vezes e quem chegar ao final primeiro ganha a partida (veja vídeo em bit.ly/jogo labirinto).

 

Matacuzana

O desafio, que deu origem a jogos como "três-marias", exige pedrinhas e um buraco no chão. Caso não esteja em um lugar com terra, recorte um círculo de papel para delimitar o campo. O objetivo é jogar as pedrinhas para cima, tirar uma ou mais do buraco e pegar de volta a sua antes que ela caia no chão. Quem erra passa a vez. Vence quem tirar mais pedras do buraco.

Mete-Mete

Para brincar, basta ter um elástico e três crianças. Duas esticam o elástico, colocando-o em volta das pernas, enquanto a do meio salta e canta "Mete-Mete/tira-tira/ mete vai ao meio e sai para fora/ mete e tira". Ela deve pular uma vez dentro e outra fora. Há variações de passos e formas de pular e as crianças podem aumentar o desafio subindo a altura do elástico. Quem tocar nele passa a vez.

 

Garrafinha, Labirinto e Matacuzana (leia nos destaques nesta página) estão entre as atividades lúdicas registradas pelos alunos. Fabiano Maranhão, mestre em Educação pela Universidade Federal de São Carlos e especialista em relações étnico-raciais, defende a relevância de trazer para a escola esses saberes. "As brincadeiras praticadas na África podem ser uma boa porta de entrada para narrar a memória desse continente com 54 países", diz ele.

O contato com essa diversidade dá chance de diminuir preconceitos. "Na escola a trajetória dos africanos e afro-brasileiros é estudada unicamente a partir da escravização. Mas não exploramos as reais origens dessas pessoas. Por isso, quis apresentar o ponto de vista de quem nasceu e cresceu no continente africano", conta a educadora, que também é pesquisadora do Grupo de Estudos em Educação das Relações Étnico-Raciais da Unesp.

Em paralelo às brincadeiras, Maria Fernanda promoveu contação de histórias, rodas de danças com ritmos afro-brasileiros, exibição de vídeos e oficinas de teatro, entre outras atividades. Foram dois anos de trabalho planejado para mudar o olhar para a contribuição negra na sociedade. O conjunto de atividades, que recebeu o nome Brincando e Conhecendo a África, rendeu à Maria Fernanda o 7º Prêmio Educar para Igualdade Racial e Gênero na categoria Professora do Ensino Fundamental.

"É essencial que as crianças conheçam as histórias de outros países, suas brincadeiras e costumes", defende Tizuko Morchida, pesquisadora da USP e coordenadora do Laboratório de Brinquedos e Materiais Pedagógicos. "O brincar é uma forma de expressão que possibilita aprender a interagir com os outros. Em jogos com regras, as crianças vivem situações que envolvem emoção, imaginário e valores", explica a especialista.

A mudança de postura dos alunos de Maria Fernanda, com certeza, foi gradual, mas hoje o clima na hora do recreio é outro. "Quem fazia piadas percebeu como as suas atitudes magoavam os outros." Também mudou a autoestima dos que eram deixados de lado. Eles se fortaleceram ao perceber que não eram culpados por serem tratados daquela forma. Viram que quem precisava mudar não eram eles, e sim quem os discriminava."

Imagens: MINNA MINÁ

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