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Jornalismo

Pesquisa revela realidade e desafios dos educadores para levar a perspectiva antirracista para o cotidiano escolar

85% dos profissionais sabem que existe uma lei que torna obrigatório o trabalho com as relações étnico-raciais, mas 60% não sabem ou afirmam que não existe investimento que apoie esta prática

PorCamila Cecílio

28/11/2022

Crédito: Getty Images

“No começo de 2021, eu estava passando por uma transição capilar. Um dia, cheguei na escola e uma professora parou ao meu lado e perguntou porquê eu tinha cortado o meu cabelo ao invés de fazer chapinha. Em seguida, ela começou a comparar o meu cabelo a esponja de aço e a fazer piadas maldosas. A primeira reação que tive foi uma vontade grande de chorar. Fiquei muito triste e, depois, busquei forças dentro de mim para passar por cima do que ouvi, porque doeu demais”. 

Esse é um breve relato do que a professora Valdilene Melo dos Santos, de 46 anos, autodeclarada parda, sentiu após ter sido vítima de racismo na escola onde trabalha com os Anos Iniciais na rede pública de Parauapebas, município paraense a 700 quilômetros de Belém. Ela atua em duas unidades públicas, onde a maioria dos professores é branca, e afirma que não há abertura para se discutir com a comunidade escolar os preceitos de uma educação antirracista. “Cheguei a ouvir da coordenação que não era para eu trabalhar a cultura antirracista nas minhas aulas porque racismo não existe no Brasil, que isso é ‘mimimi’ de negro”, lembra. 

Sem apoio para trabalhar o tema, a educadora percebe um cenário de propagação de preconceitos e discriminação racial. O último episódio, inclusive, ocorreu na mesma manhã em que a educadora se preparava para conversar com a NOVA ESCOLA sobre o assunto. “Estávamos fazendo uma exposição para celebrar o Dia da Consciência Negra e, sem nenhuma razão evidente, um grupo de alunas brancas não quiseram falar sobre autores e personalidades negras que conseguiram construir histórias de sucesso no Brasil. Percebi que não se tratava de vergonha de falar, mas de preconceito mesmo”, conta. 

A professora de Educação Infantil, Cristiane Bolzani, de 51 anos, é branca e também presenciou situações de preconceito racial dentro de escolas em que trabalhou. “Em uma delas, crianças que tinham cabelos lisos ou apenas cacheados eram diariamente penteadas enquanto as de cabelos crespos já vinham de casa com penteados, de modo que nunca eram desfeitos para lavar, apenas passavam uma escova e creme de pentear para ajeitar os fios que estavam fora do lugar. Não raro, as próprias famílias pediam que fosse assim, porque a maioria das professoras, pardas ou brancas, de cabelos escovados ou ‘progressivados’, não sabia desembaraçar, lavar e pentear cabelos crespos”, relata.  

Durante muito tempo, essa era a justificativa para não tocar os cabelos crespos, segundo a educadora. “Até que começamos a perceber que as crianças de cabelos crespos ficavam olhando os outros coleguinhas sendo penteados demoradamente e até recebendo elogios das cuidadoras. Isso nos levou a buscar formas de lidar com o cabelo crespo, sem rotular como ‘ruim’ ou ‘difícil’ de cuidar e pentear e vendo que tem características próprias. Então, começamos a exigir da escola que comprasse produtos específicos para as crianças”, recorda Cristiane, que hoje atua com turmas de 5 anos na EMEI Piratininga, na periferia de Belo Horizonte (MG). 

Metade dos professores já presenciou situações de racismo na escola

Valdilene e Cristiane estão longe de serem as únicas professoras a enfrentarem esse tipo de problema no contexto escolar. Com o intuito de entender a realidade e os desafios dos educadores ao levarem a perspectiva antirracista para o cotidiano escolar, NOVA ESCOLA realizou uma pesquisa sobre Educação Antirracista e ouviu 1847 profissionais da Educação de todo o país, dos quais metade respondeu que presenciou situações de racismo nos últimos cinco anos na escola onde trabalha. 

De acordo com o levantamento, feito entre 27 de outubro e 8 de novembro de 2022, 98% dos educadores acreditam que a Educação Antirracista é importante. A pesquisa também mostra que 85% sabem que desde 2003 existe uma lei que tornou obrigatório o ensino de História e Cultura Afro-brasileira, mas 60% não sabem ou afirmam que não existe nenhum investimento que apoie o professor a levar o tema para a prática. Nas escolas onde a professora Valdilene dá aulas, por exemplo, o tema não faz parte do Projeto Político Pedagógico (PPP) e é abordado somente uma vez por ano. 

“O que vejo é que, por mais que seja lei, as pautas relacionadas ao racismo só vêm à tona no mês da Consciência Negra e, durante todo o ano, não se fala mais sobre isso. Não há nenhuma preocupação em relação a esses fatos, que ocorrem todos os dias, como a questão do racismo estrutural, do bullying praticado contra alunos negros. Percebo que o PPP da escola não está trabalhando com temas que ajudem as pessoas a perceberem essa situação no dia a dia, que tanto afeta a nossa sociedade e gera preconceitos”, diz a professora Valdilene. 

A pesquisa promovida pela NOVA ESCOLA evidencia que a Educação é uma peça essencial para combater o racismo estrutural em direção à construção de uma sociedade com mais equidade. Para Ana Ligia Scachetti, diretora de Produtos Educacionais da NOVA ESCOLA, análises como essa são importantes para entender como assuntos fundamentais como a educação antirracista vêm sendo tratados dentro das escolas. 

“O levantamento mostra que esse é um tema que está em construção e reforça a importância de não falarmos de Consciência Negra apenas em uma data específica, mas de olharmos para isso o ano todo e de termos, realmente, um programa de educação antirracista que envolva toda a comunidade escolar. Ou seja, que alunos, pais e responsáveis, professores, funcionários e gestores possam olhar para isso e reconhecer os avanços que são necessários, bem como o racismo que eventualmente aconteça dentro da escola e trabalhem juntos para mudar essa realidade”, reforça a educadora. 

E para combater o racismo, não basta se opor a atitudes e falas racistas, mas adotar uma postura antirracista. Em seu livro Pequeno Manual Antirracista (Companhia das Letras, 2019), a filósofa e ativista Djamila Ribeiro frisa que o primeiro ponto a entender é que falar sobre racismo no Brasil é, sobretudo, fazer um debate estrutural. “É fundamental trazer a perspectiva histórica e começar pela relação entre escravidão e racismo, mapeando suas consequências. Deve-se pensar como esse sistema vem se beneficiando economicamente por toda a história a população branca, ao passo que a negra, tratada como mercadoria, não teve acesso a direitos básicos e à distribuição de riquezas”, enfatiza a escritora.

O que é e o que envolve a educação antirracista

Até 2003, ano em que a lei 10.639 foi sancionada, muitos livros didáticos deixavam de fora das salas de aulas de todo o país a história da África e dos africanos, a luta dos negros no Brasil e a cultura e o papel do negro na formação da sociedade nacional. Mesmo após duas décadas desde que o trabalho com as relações étnico-raciais se tornou obrigatório, tanto no Ensino Fundamental quanto no Ensino Médio, ainda são muitos os desafios para uma educação antirracista. 

Para começar, vale lembrar que a educação antirracista é aquela que dá a todos que estão no ambiente escolar a oportunidade de terem uma aprendizagem digna, feliz, igualitária e equânime. Esta perspectiva promove a valorização da identidade e da trajetória dos diferentes povos que formam o país, no lugar da visão dominante do colonizador. Além disso, esta prática auxilia no sentimento de pertencimento dos negros ao espaço escolar e acadêmico. É uma valorização da diversidade, daquilo que distingue os grupos raciais, mas não os hierarquiza. 

“Uma educação antirracista é aquela que entende que vivemos em uma sociedade racista, em que as relações entre as pessoas são pautadas também a partir do lugar social e racial que elas ocupam, e se preocupa em preparar indivíduos que possam se colocar contra esse sistema, gerador de desigualdade”, afirma Sherol dos Santos, professora de História da rede estadual do Rio Grande do Sul e doutoranda na mesma disciplina pela UFRGS. De acordo com ela, isso requer uma mudança não só no currículo, mas nos discursos, nos raciocínios, nas lógicas, nas posturas e nos modos de tratar as pessoas negras. 

Para saber mais, acesse os materiais abaixo:

O que é Educação antirracista?
E-book Educação Antirracista: baixe gratuitamente
Educação Antirracista: como desenvolver projetos nos Anos Iniciais do Fundamental?


Apoio pedagógico e a prática em sala
 

Ainda segundo o levantamento, as regiões Norte e Nordeste concentram o maior percentual de profissionais que se declararam pretos ou pardos: 75,9% e 74,5%, respectivamente. Enquanto no Sul, apenas 24,5% se declararam negros. A pesquisa também analisou as respostas de diferentes perfis de professores: brancos são a maioria (50,97%) e professores negros (pretos e pardos) representam 47,1% do total de participantes. Neste último grupo, há três grupos: educadores sem apoio e sem um trabalho específico cujo foco seja a educação antirracista; os que não têm apoio, mas trabalham com o tema e, por fim, os que têm apoio e realizam um trabalho constante com seus alunos. 

Tânia Aparecida dos Santos Costa, de 50 anos, faz parte do último grupo. Há quatro anos, ela atua como professora regente das turmas dos Anos Iniciais na EE Fazenda Passagem Funda, na Comunidade Quilombola Buriti do Meio, no município de São Francisco (MG), a cerca de 450 quilômetros de Belo Horizonte, e afirma que as discussões sobre as relações étnicos-raciais fazem parte da rotina de toda a comunidade, onde a maioria das pessoas é negra.  

Autodeclarada preta, ela conta que relatos de pessoas mais velhas, geralmente os próprios familiares dos estudantes, servem de base para trabalhar a realidade atual e são uma forma de traçar paralelos entre o passado, o presente e o futuro das gerações. Dessa forma, a professora propõe diálogos sobre como era a vida de seus ancestrais, ressaltando principalmente as desigualdades sociais enfrentadas por eles, por exemplo, o fato de que muitos não aprenderam a ler porque não tiveram acesso à Educação — uma das marcas do racismo estrutural. 

Tânia também faz questão de mostrar aos seus alunos que, mesmo com tantos desafios e lutas, seus antepassados deixaram um legado de conhecimento e sabedoria que ainda hoje segue preservado. “Sempre tento relacionar as atividades dos livros didáticos à nossa realidade, mostrando que nossos ancestrais são exemplos de organização, força e resistência”, explica. 

Ela comenta que, por outro lado, apesar dos esforços de toda a comunidade, as crianças acabam entrando em conflito em relação à cor da pele e do cabelo. “Mesmo sendo pequenas, isso acontece e aí eu trabalho a questão do racismo, explico o que é discriminação e o que é ser antirracista, no sentido de que devemos combater situações discriminatórias onde quer que seja. E o mesmo vale para os colegas professores, para que ninguém ignore quando alguém sofrer discriminação racial”, enfatiza a professora, que já foi vítima de racismo e tem a cor de sua pele como principal incentivo para levar a luta antirracista para a sala de aula. 

Apenas 2 em cada 10 professores citam autores negros

Já a professora Valdilene faz parte do grupo de profissionais que não tem apoio e nenhum trabalho específico com o tema. Mesmo assim, ela tem tentado inserir o assunto nas atividades realizadas com suas turmas de 5º ano por meio da leitura, filmes e debates. Apesar dos desafios, seu “trabalho de formiguinha” tem alcançado bons resultados, mas ela diz que ainda há alunos que reproduzem o preconceito que vivenciam no ambiente familiar. “O Brasil é um país muito racista e, dentro da escola, sinto falta de ajuda para levar esse tema de maneira mais contundente para que todos possam refletir sobre suas atitudes”, completa. 

Neste ano, por exemplo, ela trabalhou com textos da aclamada escritora Carolina Maria de Jesus, a segunda autora mais citada no levantamento pelos participantes, ficando atrás apenas de Machado de Assis. Ainda assim, apenas 2 em cada 10 profissionais citaram referências de autores negros usados em sala de aula. Isto é, 435 citações em 1854 respondentes. Neste mesmo universo, 7 em cada 10 professores não sabem ou afirmaram não ter nenhum autor preto que está sendo trabalhado na grade curricular do ano que lecionam. 

Outro dado que chama a atenção é que 6 em cada 10 professores não sabem ou afirmaram não ter nenhuma referência da pedagogia africana ou afro-brasileira na sua prática escolar e apenas 1 em cada 10 profissionais citaram referências pedagógicas. 

Ações para desenvolver uma educação antirracista

A pesquisa também perguntou aos respondentes qual é a principal ação na qual a escola deve investir para desenvolver uma educação antirracista. A opção “construir um PPP que inclua o compromisso por uma Educação Antirracista, com plano de ação definido” foi apontada por cerca de 63% dos participantes. A maioria acredita que, para isso, também é necessário “envolver as famílias e toda a comunidade em ações de valorização da cultura negra e indígena e elaborar ações para a construção de um ambiente escolar que valorize a diversidade e o respeito às diferenças”. 

Mais da metade dos educadores defende que é preciso “garantir formação constante e respeito da temática étnico-racial, ter um acervo de materiais didáticos e livros que tratam da temática étnico-racial e ter plano de ação pré-definido para atuar em casos de discriminação, preconceito e racismo”. Ao todo, 47,68% consideram que as escolas devem “criar um espaço de reflexão e análise das práticas pedagógicas”. 

Na EMEI Piratininga, onde a professora Cristiane atua, os profissionais têm o compromisso de desenvolver suas práticas pedagógicas a partir de uma perspectiva antirracista. Para isso, procuram sempre trabalhar a diversidade, não apenas nas efemérides, mas durante todo o ano, como parte do currículo. De acordo com ela, que passou por algumas formações sobre o tema, a valorização da cultura indígena e africana e seu papel na formação cultural do povo brasileiro se dá por meio de músicas, danças, brincadeiras, livros, filmes, recontos e dramatizações de histórias, releituras de obras de arte, vocabulário e alimentação. 

“Sei que ainda há um longo caminho a percorrer para alcançarmos a igualdade, mas um bom começo seria devolver aos negros e indígenas o seu protagonismo na história do Brasil e investir na formação de base dos educadores para reduzir as desigualdades educacionais nas escolas públicas. A qualidade dos serviços prestados à população da periferia é necessária para que o discurso sobre cidadania não seja apenas um discurso, mas se concretize em ações que fazem a diferença na vida das pessoas”, defende. 

Para a professora Valdilene, só será possível construir uma educação antirracista se as discussões étnico-raciais estiverem presentes na escola o ano todo, como parte do Projeto Político Pedagógico. “A escola precisa estar atenta a assuntos como cultura antirracista, visibilidade negra, seja por meio de livros, filmes, debates e outras iniciativas. Acredito que só assim, abordando a questão racial e o racismo estrutural dentro das escolas, conseguiremos mudar a posição e o pensamento de muita gente que, muitas vezes, nem percebe que está reproduzindo racismo”, pontua.

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