Indicar a necessidade de o professor planejar momentos para que os alunos reflitam sobre o sistema de escrita alfabética é ponto central da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) para a alfabetização. Maria José Nóbrega, professora de pós-graduação no Instituto Vera Cruz e assessora pedagógica dos planos de aula NOVA ESCOLA, explica quais as implicações dessa escolha para a prática em sala de aula e comenta outros desafios que a leitura do documento aponta.
NOVA ESCOLA: Quais avanços a BNCC traz para a alfabetização?
MARIA JOSÉ NÓBREGA: O documento trata a alfabetização como uma especificidade e traz um conjunto de habilidades focadas no desenvolvimento de uma consciência fonológica. Isso não havia nos PCNs [Parâmetros Curriculares Nacionais], porque eles assumiam uma perspectiva construtivista, que defende a ideia de que o uso é suficiente para provocar o aprendiz a pensar sobre o sistema. O que a Base coloca é que, além do uso, são necessárias atividades específicas para pensar o sistema.
Podemos dizer que a BNCC distancia-se do construtivismo?
Precisamos ter cuidado ao falar de construtivismo. Talvez o melhor seja falar no plural, construtivismos. Há autores que consideram as contribuições da reflexão sobre a evolução da escrita e, ao mesmo tempo, articulam com aspectos da consciência fonológica. Então, não dá para dizer que esta não seja uma concepção construtivista também. Talvez, elas não sejam construtivistas exatamente no desenho que sugeriam as práticas com base nos PCNs e na formação do Profa [Programa de Formação de Professores Alfabetizadores], que o Ministério da Educação promoveu no início da década de 2000.
Por que houve essa mudança?
É delicado. As avaliações de larga escala, como a ANA [Avaliação Nacional de Alfabetização] não apresentaram resultados satisfatórios, o que significa que a maioria das crianças ainda não está se alfabetizando na idade certa. Não é a toa que, depois, foi desenvolvido o Pnaic [Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa]. O desconforto faz, de algum modo, com que as políticas públicas necessitem se mobilizar. E a aposta agora é de defender a ideia de que é preciso preservar um tempo dentro da sala de aula para pensar o sistema de escrita como objeto de conhecimento que requer uma atenção para além do uso. Isso não significa desprezar o uso, colocar uma prioridade em relação ao sistema ou uma anterioridade da aprendizagem do sistema. As crianças podem se alfabetizar de diferentes maneiras. Temos aquelas que respondem muito bem às propostas sugeridas pelos PCNs. Mas temos outro conjunto que não responde, e este é o problema. Então, o desconforto é olhar para esses dados que dão conta de certo analfabetismo escolar. Por isso o documento assume o caráter de defender a especificidade da questão da alfabetização.
Como considerar os diferentes ritmos dos alunos?
Isso é muito relevante. Um trabalho bem-sucedido com alfabetização, ou com qualquer outro conhecimento, pressupõe o professor ter dados sobre o que os alunos já sabem e partir daí. Nesse sentido, aquela ideia uniforme do docente dando uma aula para todos não funciona. As pessoas aprendem em tempos diferentes, então, ele precisa o tempo inteiro pensar em como organizar seu trabalho: o que fazer em pequenos grupos, o que fazer no coletivo e qual atenção dar individualmente. Fazer uma espécie de gerenciamento do tempo didático e da sua rotina para ir acolhendo todas essas necessidades. Se não, a chance de fracasso é alta.
Quem trabalha uma perspectiva diferente da apresentada pelo documento terá de abrir mão dela?
Uma das primeiras coisas a se pensar é que todo documento que surge não é totalmente novo, mas está em diálogo com a cultura que o antecede. Façamos uma checagem: dentre o que está proposto, o que a gente já faz e o que ainda não faz? Podemos encontrar coisas que desenvolvemos e a BNCC não coloca. E tudo bem, porque esse documento traz os conteúdos essenciais, não os únicos possíveis. Você, professor, não pode fazer menos, mas pode ir além do que está ali. A questão principal é entender que a BNCC foi feita para resolver uma questão de equidade e qualidade de ensino. Se você tem bons resultados e está conseguindo alfabetizar todos os seus alunos, muito provavelmente essas habilidades estão contempladas em seu planejamento. Mas é importante também enxergar como possibilidade o que está indicado e ainda não é feito. Olhar com certa abertura e generosidade o que outras teorias estão dizendo, seja para ampliar, sustentar ou qualificar o que se faz. Afinal, o conhecimento é móvel e novas pesquisas e leituras surgem o tempo inteiro. A Base não chegou para desmontar tudo. Ninguém está começando do zero.
É possível ter um trabalho com a linguagem centrada no texto em séries, no qual o foco é a alfabetização?
A ideia de que a unidade é o texto vem de uma perspectiva comunicativa. Não dá para ignorar que as pessoas, nas situações comunicativas, interagem por meio de textos. Para entender as relações que as letras estabelecem com os sons e também que a escrita, de algum modo, representa a fala, o ponto de partida precisa ser o texto mesmo. Devemos lembrar também das experiências das crianças. A que tem pais leitores e maior convivência com textos escritos, já entra na escola sabendo a função da escrita – ela serve para as pessoas escreverem bilhetes, fazerem anotações, receberem correspondências, lerem revistas e jornais etc. Mas num país como o nosso, com uma desigualdade tão brutal, isso não é a realidade para a maioria. Então, se o ensino do sistema for descolado da funcionalidade, a chance de esses alunos terem um desempenho frágil é muito alta. O que não impede de considerarmos que a língua tem outras unidades não comunicativas, mas outros componentes da linguagem, como fonema, sílaba, morfemas, prefixo, sufixo, classes de palavras etc. Uma unidade não exclui a outra e também não estabelece uma ordem de prioridade. É tudo junto e misturado. O desafio é organizar uma rotina em que o professor contemple tanto a necessidade de inserir a criança na cultura escrita quanto o de permitir a ela condições para refletir sobre o funcionamento do sistema de escrita.
Para que servem os campos de atuação trazidos pela BNCC?
A BNCC coloca os campos de atuação como algo tão estruturante como os eixos ou práticas de linguagem. O fato de o documento ter essa organização sugere que o professor dos anos iniciais precisa estar atento também às práticas sociais e inserir a criança na cultura escrita para ela compreender por que se lê e por que se escreve. Isso é fundamental, principalmente quando temos como foco esse exercício da cidadania cada vez mais consistente, consciente e estruturado. É um tipo de formação extremamente relevante para as escolas públicas, uma vez que muitos alunos são privados de viver situações desse tipo, de ter acesso a materiais da cultura escrita. Então, a instituição de ensino é, em alguns casos, o único lugar possível para eles terem essas experiências. Isso tem papel forte do ponto de vista de entender uma escola que de fato democratize o acesso ao escrito para todos.
Como essa organização influencia o trabalho do professor?
Do ponto de vista prático, ele precisa selecionar gêneros para a oralidade e para a escrita que proporcionem aos alunos experiências diversificadas nos quatro campos. O docente pode também ficar atento no momento em que a escola estiver escolhendo o material didático a ser adotado. Se esse material contemplar esses quatro campos, ele terá um aliado importante na elaboração do planejamento da rotina dele com as crianças.
A BNCC traz também destaque para a questão do multiletramento. Como isso pode ser desenvolvido com os alunos das séries iniciais?
É comum ouvir que as crianças já nasceram em um ambiente digital e, portanto, têm maior intimidade com esse ambiente do que os adultos. Isso vale até a página dois. É verdade que elas são muito mais destemidas para lidar com os equipamentos, mas quando pensamos na produção de textos, não é tão simples. Elas não estão familiarizadas com a escrita nem com os movimentos necessários para escrever em um teclado. Isso significa que há questões de motricidade a serem desenvolvidas, por exemplo. Também já sabemos que a tecnologia afeta o modo de ler. O impresso circunscreve a extensão da leitura e, no ambiente digital, não há isso. Ao clicar em um link e ir para outro texto e assim por diante, o leitor está assumindo quase o papel de um editor, pois ele constrói o que vai ler. Um letramento competente e sofisticado pressupõe um leitor capaz de lidar com textos complexos, então, precisamos cuidar também dessa modalidade. Dá para trabalhar com os alunos dos primeiros anos tanto a leitura quanto a produção de texto no meio digital. Também dá para se discutirem, e é importante que se faça isso, questões éticas, como propaganda infantil embutida. Cabe ao professor qualificar as fontes de informação acessadas pelas crianças.