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Alfabetização e consciência fonológica: como trabalhá-las?

A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) defende o trabalho com a consciência fonológica. Veja como aliá-lo às práticas sociais de leitura e escrita

Autor: Sophia Winkel, Rosi Rico

O desafio que a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) traz para o professor é o de aprender a articular as diferentes facetas da apropriação da língua escrita. Isso significa aliar o trabalho com as práticas sociais de leitura e escrita com momentos de aprendizagem do sistema de escrita alfabética.

Como fazer isto na prática? Há escolas que já seguem por este caminho. “O texto é o ponto central e, com base nele, consigo definir meus conteúdos. Mas não deixo de lado a letra ou a questão sonora, que são importantes também”, conta Ana Lúcia Pinto Antunes, professora da EEI Padre Quinha, em Petrópolis (RJ).

A centralidade do texto está indicada na Base. “É importante que fique claro ao docente que texto não é pretexto para análise da língua, mas contexto, pois pode favorecer a alfabetização, colaborando para a compreensão de conteúdos linguísticos”, explica Liane Castro de Araujo, professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia. Sendo assim, é preciso ter intencionalidade na escolha. Essas opções serão mais ricas quanto maior o repertório do professor quanto aos diversos gêneros textuais, especialmente a literatura infantil, mas não exclusivamente.

Para isso, o docente pode considerar as culturas infantis tradicionais e contemporâneas, as brincadeiras da tradição oral e as situações lúdicas. Ana Lúcia gosta de levar parlendas, cantigas e trava línguas para a turma. “Com base nesses textos, cujas finalidades são brincar com a língua, os alunos conseguem refletir sobre o que se diz e o que se escreve e, ao criarem repertório, podem elaborar novos textos inspirados naqueles que conheceram”, conta a professora.

Outra opção é utilizar jogos fonológicos. Um dos utilizados por Ana Lúcia é um jogo de trincas, no qual são distribuídas várias imagens. A proposta é reunir três em que as palavras que representam a imagem terminem com o mesmo som, como gato, rato e mato. Primeiro, a professora divide a turma em grupos para estimular a colaboração entre eles. Um dos critérios para definir quem irá jogar com quem pode ser colocar uma criança que tenha maior familiaridade com brincadeiras da tradição oral e, portanto, está mais acostumada a prestar atenção na sonoridade das palavras, com outra que não tenha tanta, indica Liane.

Durante a atividade, Ana Lúcia reserva um tempo para as crianças pensarem em como irão agrupar as trincas. Ela, então, percorre a sala e faz intervenções apenas quando um grupo está com dificuldade. Em geral, a primeira pergunta é: Qual o critério que vocês utilizaram para escolher as trincas? Às vezes, os alunos se concentram na imagem e separam todos os animais, por exemplo. Aí ela relembra que a ideia do jogo é prestar atenção no som das palavras, em como elas terminam. É muito comum também eles privilegiarem as palavras que começam com a mesma letra. Neste caso, ela pontua: Ótimo, mas desta vez quero que pensem no final da palavra. E pode exemplificar: Aqui temos feijão e macarrão, o que é parecido no som delas? Qual outra imagem também tem som semelhante?

Não há regras para as intervenções, mas o professor deve dosar para manter um equilíbrio entre a questão pedagógica e o lúdico. “Já vi docente que interrompe toda hora para sistematizar questões trazidas na brincadeira. Não dá para interferir sempre, pois se corre o risco de perder a característica de jogo. A função lúdica tem de ser garantida”, explica Liane.

Depois que as crianças brincaram, Ana Lúcia propõe momentos de reflexão incluindo a escrita para ampliar a possibilidade de análise já presente no oral. “Se fizer só o jogo, ficarei apenas no campo fonológico. Mas, em geral, quero que eles façam a ligação entre fonema e grafema, que compreendam o que cada som representa”, explica. Para sistematizar o aprendizado, as estratégias podem variar conforme a turma, o tempo disponível e o propósito. No caso do jogo de trincas, podem ser: pedir para as crianças indicarem quais trincas elas agruparam, perguntar como se escreve cada palavra e anotar no quadro; pegar o alfabeto móvel e pedir para os grupos montarem as palavras na mesa; ter uma série de tirinhas, já prontas, com as palavras utilizadas no jogo, convidar as crianças a apontar onde estão aquelas correspondentes às imagens da trinca que ela formou e colocar cada tira junto da imagem que ela representa, entre outras.

O importante é a conversa que ocorre durante esse processo. A professora pode questionar: Vamos olhar essas três palavras que estão juntas, o que elas têm de parecido? Essa começa com uma letra e essa com outra, mas o final é sempre o mesmo? Que outras palavras vocês conhecem que também terminam com essas letras? O objetivo é conduzir os alunos a refletir sobre a correspondência entre o oral e o escrito e levá-los a reconhecer como surgem as rimas, além de ampliar o vocabulário. “É um momento importante também para eu avaliar o desenvolvimento da aprendizagem deles”, completa Ana.

Para Liane, essa é uma ótima maneira de explorar a dimensão sonora da língua e apresentar as letras aos alunos. “Os jogos incidem sobre os aspectos fonológicos e notacionais da língua. Portanto, a reflexão linguística não vem como aquisição mecânica, uma vez que o jogo por si só é uma prática cultural e serve como contexto para a análise da língua. Adultos jogam palavra cruzada, forca, entre outros”, conclui a especialista.



Como trabalhar no mundo digital

Ilustração: Rita Mayumi/Caronte Design/Nova Escola

Outro ponto que ganhou ênfase com a BNCC é a questão dos multiletramentos. “Quando os professores leem que é preciso trabalhar textos multissemióticos e multimodais, nos modos sonoros, verbais, visuais e a relação deles com as novas tecnologias, podem ficar preocupados. Na verdade, isso pode ser feito ao trazer para a alfabetização os textos comunicativos comuns do dia-a-dia. Uma conversa no Whatsapp, aplicativo utilizado por muitas famílias, pode ser uma oportunidade de aprendizagem, assim como áudios, vídeos e jogos, tão presentes entre os estudantes”, exemplifica Isabel Cristina Frade, professora titular e pesquisadora do Centro de Alfabetização e Escrita da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Ela sugere que, na hora de planejar as atividades, os docentes pensem em algumas questões: “Se as crianças já conseguem navegar e localizar um vídeo, como a escola pode se aproveitar desse conhecimento e colocar isso a favor da alfabetização e do uso da Língua Portuguesa? Que alfabetização audiovisual é importante o aluno adquirir para ter uma visão crítica sobre as mídias que permeiam sua vida?”

Para muitos educadores, há um desafio anterior: buscar formações específicas para suprir um conhecimento que não foi adquirido em suas formações iniciais. Foi o que ocorreu na Escola de Educação Integral Padre Quinha. “A inserção nesse mundo virou uma preocupação para todos aqui”, conta Ana Lúcia. Para se preparar, ela fez várias oficinas com a professora Cristiane Alves, do Sesi de Petrópolis, que há anos estuda como associar tecnologia e educação. O objetivo era descobrir como fazer um uso pedagógico da tecnologia. “Eu não queria apenas levar meus alunos para a sala de informática e propor atividades isoladas”, explica Ana.

Em sala, Ana Lúcia desenvolveu várias propostas. Em uma delas, começou com rodas de conversa, em que discutiu com os alunos a questão da identidade. A ideia era leva-los a refletir sobre as diferenças e as semelhanças entre eles. Depois, com um aplicativo, cada um criou um avatar com suas características físicas: cor e formato do cabelo, cor dos olhos, da pele etc. Ana, então, imprimiu esses desenhos em papel e pediu para as crianças escreverem na folha as características utilizadas para montar o avatar. Ao lado dessas, o convite foi para colocarem as características psicológicas: qualidades e defeitos de cada um. Essa parte rendeu outro bate-papo sobre o fato de ser normal as pessoas terem qualidades e defeitos. Para completar, foram gravados vídeos em que cada criança se apresentava e falava, apoiadas no que tinham escrito, suas características. Na edição, a professora acrescentou os avatares de cada estudante e apresentou o resultado para as famílias. “Consegui trabalhar oralidade, escrita e leitura, além de debater empatia e diversidade”, finaliza Ana Lúcia.

Para as instituições que não têm laboratórios de informática, acesso à internet, entre outras limitações relacionadas à infraestrutura digital, Isabel dá opções: “Imagens, pinturas, livros com formas diversas de leitura, diagramas, ilustrações sofisticadas e infográficos podem ser apresentados à turma. Isso porque um texto pode ser multissemiótico sem ser multimídia”, explica. A proposta, então, é levar todo esse material para a sala de aula, ler, discutir, brincar e produzir textos, sem perder de vista a intencionalidade e a clareza quanto aos objetivos do trabalho.