Para ajustar som e sentido e inserir as crianças no mundo da escrita, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) propõe a integração de duas tendências no ensino: aquela que reconhece a centralidade do texto e tem como principal objetivo o trabalho com as práticas sociais de leitura e escrita e a que entende a imersão no texto como importante, mas não suficiente para a alfabetização de todas as crianças, propondo então atividades sistemáticas para a aprendizagem do sistema de escrita alfabética.
As teorias sobre o ensino da Língua Portuguesa nos últimos 30 anos passaram por importante mudança de paradigma, questionando a escola no uso de metodologias centradas em textos sem sentido, como “Vovó viu a uva” e “O bebê baba”, com o objetivo de ensinar a ler, e na aprendizagem de conceitos da tradição gramatical. Em seu lugar esperava-se que a escola trouxesse para as salas de aula o uso da linguagem como atividade humana, ação entre pessoas, com objetivo e intenção. Por esse motivo, o foco do trabalho pedagógico – segundo documentos dessa época, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) – estava na centralidade do texto e no uso significativo da linguagem, definindo como conteúdo as práticas de leitura, produção de escritos, oralidade e análise linguística.
O valor desses objetivos e o esforço de anos para que a escrita com sentido entrasse nas salas de aula foi reconhecido com a aprovação da BNCC, que manteve em seus pressupostos a perspectiva enunciativo-discursiva para a qual a linguagem é “uma forma de ação interindividual orientada para uma finalidade específica”. Além desse ponto, a BNCC também esclareceu os conceitos de letramento e alfabetização, dando a essa última um reconhecimento de que há especificidades na apropriação das características do sistema de escrita, e que durante determinado tempo da escolaridade a alfabetização deve ser foco do trabalho. Isso não significa isolar a alfabetização do uso da leitura e da escrita, mas reservar-lhe uma atenção especial. É possível alfabetizar letrando!
Para entendermos a importância de aliar o ensino da notação alfabética ao uso de práticas letradas, posição adotada pela BNCC, é preciso compreender como os processos de letramento e de alfabetização se concretizaram em práticas.
Nas últimas três décadas, a formação de alfabetizadores no Brasil foi marcada pela predominância das teorias construtivistas, especialmente pela psicogênese da língua escrita, que estuda as hipóteses que a criança faz na busca de entender como se estrutura e como funciona a língua escrita. Para Arthur Gomes de Moraes, professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), e Magda Soares, professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a hegemonia do discurso do letramento, associada a uma má interpretação da teoria da psicogênese da escrita, contribuíram para a “desinvenção” da alfabetização, levando as práticas alfabetizadoras ao abandono do ensino explícito e metódico da alfabetização.
Esses estudos representaram um grande avanço, ao explicitar o pensamento e as hipóteses que as crianças vão construindo sobre a natureza e o funcionamento da língua escrita, porém, nas práticas escolares e nos materiais didáticos, predominou o entendimento de que os estudantes constroem esse conhecimento de forma relativamente natural e espontânea ao participar de práticas sociais de leitura e escrita. Prevaleceu a crença de que o trabalho com textos, com foco na compreensão das ideias e na atribuição de sentido, extremamente importantes, era suficiente para a criança perceber a dimensão gráfica e sonora das palavras.
Essa escolha metodológica, benéfica para muitos alunos, nem sempre foi eficiente para todas as crianças. A BNCC reconhece que dominar o sistema de escrita do português não é uma tarefa tão simples, há relações bastante complexas que se estabelecem entre os sons da fala e as letras da escrita. Alguns estudos que buscam compreender os desafios da aprendizagem da leitura e da escrita em um sistema alfabético apontam para a dificuldade das crianças em dirigir sua atenção às propriedades sonoras da fala, deixando de lado, nesse momento, o significado das palavras, contribuindo para isso a consciência fonológica, em seus diferentes níveis.
Em contraponto, para professores imbuídos da tarefa de ajudar seus alunos a construírem sentido para os textos que leem ou escrevem, parece contrassenso propor atividades em que os aprendizes devem prestar atenção a segmentos sonoros sem significado, como as letras e as sílabas.
Entretanto, o ensino sistemático da dimensão grafofônica da língua escrita é fundamental para que as crianças compreendam o princípio alfabético e as características do sistema de escrita como um processo multifacetado, no qual a consciência fonológica e a construção de sentido para os textos ocupem lugar e importância. Entendemos que o objetivo da leitura é, sem dúvida, a compreensão, mas no planejamento de um trabalho deve-se buscar o equilíbrio entre atividades que estimulem diretamente a “codificação e decodificação” e aquelas voltadas para a análise do texto e sua compreensão.
É fundamental esclarecer que, embora a BNCC especifique uma abordagem sistemática das relações entre grafemas e fonemas, isso não deve ser feito utilizando método fônico, em que se emitem os sons da letra, ou recorrendo a textos sem sentido, tão presentes nas cartilhas, ou ainda a atividades mecânicas de memorização. É possível trabalhar essas relações explorando as rimas, com base em palavras retiradas de textos do rico universo da cultura da infância e também no uso de jogos, como os propostos pelo Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (Pnaic) e pelo projeto Trilhas.
Se a BNCC adota a concepção de que o texto ganha centralidade na definição dos conteúdos, e nesse trabalho as crianças aprendem os usos e as formas da linguagem usadas para escrever e ao mesmo tempo devem compreender a natureza alfabética do sistema de escrita do português, então é preciso encontrar pontos de intersecção entre o trabalho com a construção de sentidos, essencial nas práticas de leitura e produção de textos orais e escritos, e as metodologias que focalizam a construção do sistema de escrita alfabética.
Sônia Madi é especialista no ensino da leitura e da escrita, com participação na elaboração e implementação de currículos educacionais e materiais didáticos e formação de educadores, além de integrar a equipe da plataforma Alfaletrar.