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Jornalismo

O mundo em nossas mãos

Mais do que nunca, a escola e a família têm um papel fundamental: ensinar a importância do diálogo

PorNOVA ESCOLAPriscila Ramalho

31/10/2001

De repente, o mundo entrou em crise. Três aviões seqüestrados desabaram sobre prédios nos Estados Unidos e a calma que parecia ter tomado conta do planeta (há até quem defenda a tese de que a História acabou) virou fumaça. Com uma grande diferença: pela primeira vez em todos os tempos, a mudança afeta toda a população, mesmo quem está longe dos campos de batalha. Vôos foram cancelados no Rio de Janeiro, em Sydney, em Roma e em Dacar. Bombas caem sobre o Afeganistão e, imediatamente, a economia reage, com altos e baixos nas cotações do dólar e das bolsas de valores. Sem falar no medo de uma guerra biológica, com a contaminação de milhões por bactérias enviadas pelo correio ou pulverizadas sobre as cidades.

Esse fenômeno afeta diretamente os alunos, que ouvem rádio, vêem televisão, navegam na internet são, cada vez mais, cidadãos desse mundo globalizado. "Vivemos um momento de intolerância e de desrespeito, e os professores podem dar uma resposta neste momento", afirmou o ministro da Educação, Paulo Renato Souza, em seu discurso na festa de entrega do Prêmio Victor Civita Professor Nota 10.

Você sabe exatamente do que estamos falando. Mal as primeiras notícias sobre o choque dos aviões contra o World Trade Center começaram a circular e a garotada já estava ávida por novas informações, buscando compreender o que se passa na Terra, exigindo do professor mais agilidade e disposição para mudar as aulas previamente planejadas e incluir nelas o tema do momento. "Eles não param de perguntar, de se intrometer", comemora o professor de História Wanderley Quêdo, do Centro Educacional Anísio Teixeira (CEAT), no Rio de Janeiro. "E minhas aulas ficaram ainda mais interessantes."

A História é agora

No dia 11 de setembro, Quêdo debatia com a turma sobre a Segunda Guerra Mundial quando soube do início da crise. "O mundo nunca mais será o mesmo", ele pensou na hora. "Minhas aulas também não." Imediatamente, inverteu o conteúdo programático e pulou para o assunto previsto para o final do ano: os conflitos da atualidade. "Passei a ensinar História de trás para a frente", brinca. "Em vez de caminhar linearmente do passado para o presente, parto da atualidade e vou em busca de um sentido para esses acontecimentos."

Seu objetivo, explica, é mostrar que a História se constrói diariamente e que nós somos os protagonistas. "Além disso, preciso dar aos alunos instrumentos para eles entenderem o que está acontecendo." Ou seja, ajudá-los a interpretar a montanha de informações que recebemos todos os dias e lutar contra o maniqueísmo que muitas vezes toma conta das pessoas em situações de conflito. "Antigamente, as grandes crises da humanidade diziam respeito apenas aos adultos. Hoje, todos têm acesso às notícias e a chave é aprender a lidar com elas." Para isso, Quêdo procura traçar paralelos com a realidade da turma: "No Rio de Janeiro, também vivemos uma espécie de guerra, entre classes que não se toleram", explica. "Não somos tão diferentes do Afeganistão como pode parecer à primeira vista. Só que aqui os conflitos não são declarados."

Nas aulas de História de Odivar Pozzebon na Escola Municipal Lauro Rodrigues, em Porto Alegre, uma das principais preocupações é criar a consciência de que fazemos parte do processo. Logo depois do 11 de setembro, ela montou com os alunos um mural de notícias. A própria turma escolheu um título: "O ataque terrorista aos EUA". No final do ano, será produzido outro painel, com novos artigos e um novo título. "Quero ver o que muda na visão dos estudantes", diz a professora "E mostrar que eles estão vendo a História, não apenas lendo."

Situar os jovens diante da realidade e orientá-los na busca e análise dos fatos são princípios fundamentais para acabar com as visões maniqueístas que tanto mal já causaram ao planeta e seus habitantes. Além de aguçar o olhar da garotada, esse jeito de ensinar traz à tona a importância da educação para os valores. Sim, num mundo em crise nada melhor do que recuperar o diálogo e a amizade e lutar com todas as forças contra o preconceito e a ira. "Mais do que nunca, precisamos exercer nossa capacidade de lidar com as diferenças", afirma a professora Elen Cristina Dias, do Colégio Albert Sabin. Em classe, ela usa uma metáfora muito simples e eficiente para mostrar a realidade. Com um aluno em pé na frente do quadro-negro, ela diz que a intolerância "é um vírus que percorre todo o planeta provocando a cada dia novas feridas."

Laboratório de respeito

Intolerar, define o dicionário, é "não admitir, nos outros, maneiras de pensar, de agir e de sentir diferentes das nossas". Esse comportamento é fácil de identificar. Está no fanatismo religioso (desde os tempos da Inquisição até os fundamentalistas do Talibã), na política expansionista (Adolf Hitler, Josef Stalin e Saddam Hussein não nos deixam esquecer), no patriotismo exacerbado (a visão norte-americana de mundo é um bom exemplo), no preconceito contra outras raças e religiões (as práticas xenófobas do grupo de Jean-Marie Le Pen, na França, continuam a assustar).

E a escola? Ao reunir pessoas de várias raças, religiões, habilidades, posições sociais, costumes e ideologias, ela se torna um laboratório perfeito para criar e alimentar as noções de respeito à diversidade. É claro que isso nem sempre acontece. Muitas vezes, é na sala de aula que surgem os primeiros conflitos. Por isso é tão importante ensinar a dialogar.

Ioná Moraes de Oliveira, que leciona Geografia para a 8ª série na Lauro Rodrigues, na capital gaúcha, sabe bem o que é isso. Volta e meia ela tem de intermediar discussões entre a "turma da batucada" que se agrupa estrategicamente no canto direito para, a qualquer oportunidade, cantar um pagode e os três roqueiros que se instalam na "trincheira" oposta. "As músicas que eles cantam são ruins e atordoam", reclama Karolina Wollmann, de 14 anos. "Nós somos a maioria", revida Wladimir Santos, de 16. Esse comportamento, típico da adolescência, é o ponto de partida de muitas aulas de Ioná. "Aproveito as situações cotidianas vividas e trazidas por eles, como um bate-boca por causa do resultados do campeonato brasileiro de futebol, para falar de ética, diversidade e tolerância."

"O professor tem de estar atento o tempo todo, chamando a atenção para pequenos eventos e propondo discussões a partir deles", aprova a filósofa Helena Milanezi. Ela ressalta que trabalhar com valores não é tarefa fácil. Ainda mais com as crianças menores (leia o quadro na página ao lado). Para os mais velhos, os especialistas recomendam atividades que provoquem reflexão e permitam que todos se expressem, como a produção de textos e painéis e, claro, debates sobre temas atuais.

O principal, porém, é que os valores sejam uma preocupação permanente da escola, que permeie as aulas e a conduta de professores e funcionários. "É fundamental a coerência entre o que se pretende ensinar e o que se pratica", diz Helena. Em outras palavras, não faz sentido empurrar às crianças hábitos de higiene se a escola vive suja e não vale falar de tolerância sem ser tolerante.

Para o antropólogo Omar Ribeiro Thomaz, pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, os professores de História têm hoje uma chance de ouro para derrubar preconceitos e mostrar como a realidade social é dinâmica: "É possível mostrar, por exemplo, que os países árabes são extremamente complexos, com diversos grupos e conflitos internos." Marta Rovai, colega de Elen no Albert Sabin, faz exatamente isso ao apontar as contribuições de cada povo na formação da cultura brasileira. "Ensino que os árabes, por exemplo, inventaram a luneta, a bússola e os números que usamos", conta.

Foco na religião

Em setembro, Marta decidiu focar as aulas no tema da religião. "Conhecer a relação do homem com Deus, seja ele quem for, é fundamental para compreender a História universal", diz. Há poucos dias sua aluna Raíssa, que é muçulmana, levou o Corão para ler com os colegas. Na mesma aula, todos fizeram contato com a Torá (o livro sagrado dos judeus) e a Bíblia (o dos cristãos).

Na opinião do xeque Jihad Hammadeh, vice-presidente da Associação Mundial da Juventude Islâmica, o ensino das religiões ainda é muito precário nas escolas, o que ajuda a disseminar preconceitos. "Existem muitos erros nos livros didáticos, como a idéia de que todo árabe é muçulmano", explica.

Para o rabino Henry Sobel, presidente da Congregação Israelita Paulista, cabe às escolas ensinar que existem diferentes crenças e que todas são igualmente válidas. "Todas as religiões têm contribuições relevantes para o coletivo da humanidade", afirma. "Cada uma nos enriquece ao oferecer um ângulo diferente."

Cai por terra, portanto, o clichê futebol, política e religião não se discutem. "Essa é uma frase péssima", diz o professor Wanderley Quêdo. "Se você não discute, não ouve o outro. E, desconhecendo as idéias dele, passa a pressupor, criar fantasias, espalhar informações erradas." Por isso, ele defende exatamente o contrário. "Temos a obrigação de envolver nossos alunos e os pais deles em muitas discussões sobre futebol, política e religião. Só assim vamos aumentar as trocas e enriquecer a humanidade."

O que dizer para as crianças

Se para os adultos a situação atual já é difícil, o que dizer para as crianças pequenas? Depois de ver as notícias na televisão, muitas vão dormir inquietas, angustiadas. No dia seguinte, levam para a escola incertezas, inseguranças e medos. O psiquiatra Wimer Bottura Júnior, do Comitê Multidisciplinar da Adolescência da Associação Paulista de Medicina, diz que é importante jogar limpo. "Os adultos não podem deixar a preocupação assumir proporções exageradas", explica ele. "Pais e professores devem se policiar no sentido de não aumentar ainda mais a carga dramática que envolve atos como o seqüestro dos aviões ou o medo de uma guerra biológica nem tratar o tema como se fosse uma coisa absolutamente normal". "O medo é parte da vida e a criança deve saber disso", sugere. "Não deixamos de mostrar a nossos estudantes que os acontecimentos recentes são assustadores", diz Maria Eugênia Telles Rudge, orientadora educacional da Escola Quintal, em São Paulo. "Mas nosso maior esforço está focado em dar parâmetros aos pequenos." Os caminhos escolhidos pelo colégio incluem desenhos, dramatizações e teatro de fantoches, atividades bem adequadas à idade. Eugênia conta que, numa reunião de pais, o tema da violência e da insegurança global acabou dominando a pauta. "Muitos afirmam não ter respostas adequadas às reações dos filhos", lembra. "Acho que temos a obrigação de ajudá-los na hora de definir uma orientação". Uma boa sugestão é a seguinte: diante da curiosidade da garotada, é essencial falar sempre a verdade, usando um "filtro" adequado à idade. Conselhos que, para Margarida Nóbrega, mãe da pequena Sara, de 3 anos, fazem diferença. "As professoras são profissionais da educação. Confio nelas como confio no pediatra."

Quer saber mais?

Centro Educacional Anísio Teixeira, R. Almirante Alexandrino, 4098, CEP 20241-262, Rio de Janeiro, RJ, tel. (21) 2556-2999

Colégio Albert Sabin, Av. Darci Reis, 1901, CEP 05396-450, São Paulo, SP, tel. (11) 3712-0713

Escola Municipal Lauro Rodrigues, R. Marino Abraão, 240, CEP 91230-260, Porto Alegre, RS, tel. (51) 3348-1132

Escola Quintal, R. Joaquim Cândido de Azevedo Marques, 1234, CEP 05688-021, São Paulo, SP, tel. (11) 3742-5899  

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