“Não defendemos o homeschooling como melhor sistema. Mas os pais têm que ter esse direito”
Em entrevista exclusiva à NOVA ESCOLA, Angela Vidal Gandra explica as motivações para o projeto de lei que pode dar aos pais o direito de educar seus filhos em casa
A medida é polêmica entre os educadores. A resistência à Educação Domiciliar (também chamada de Ensino domiciliar ou homeschooling, do original em inglês) se dá, principalmente, pela falta de garantia de interação e convivência com a diversidade de ideias, conhecimentos e valores. Além disso, a relação cotidiana entre alunos, professores e funcionários também proporciona espaço para ouvir o outro, argumentar e chegar a soluções conjuntas.
A lei brasileira hoje não proíbe a modalidade – e nem a permite. A falta de regulamentação têm gerado uma batalha jurídica para as famílias que desejam optar pela modalidade da Educação domiciliar. Em todo o país, estamos falando de pelo menos 7,5 mil famílias que são adeptas da modalidade, segundo estimativa da Associação Nacional De Educação Domiciliar (Aned).
Agora, o tema pode chegar a uma resolução. Como uma das medidas prioritárias dos primeiros 100 dias do Governo de Jair Bolsonaro (PSL), o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos apresentou no dia 11 de abril um projeto de lei para regulamentar o homeschooling (conheça o projeto aqui). Para entender melhor no que consiste a proposta e as principais discussões que envolvem o tema, NOVA ESCOLA entrevistou Angela Vidal Gandra, secretária nacional da Família.
Angela é professora de Direito em Filosofia, professora visitante e pesquisadora em Antropologia Filosófico-Jurídica na Universidade de Harvard (Estados Unidos), sócia do escritório de advocacia Gandra Martins e membro da Academia Brasileira de Filosofia. Dentro do ministério de Damares Alves, a Secretaria Nacional da Família, liderada por Angela é responsável pela pauta do homeschooling. Confira a seguir os principais trechos da entrevista:
Até o Governo Temer, as discussões sobre a regulamentação do homeschooling aconteciam dentro do Ministério da Educação. Em 2017, o então ministro Mendonça Filho sinalizou a possibilidade de regulamentação, inclusive pedindo um estudo aprofundado sobre o tema. Como e em que pontos o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos contribuiu para o avanço dessa discussão na área educacional? ÂNGELA VIDAL GANDRA O Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos tem essa secretaria nova, que é a Secretaria da Família. Uma demanda das famílias brasileiras é a possibilidade do homeschooling e entendemos isso como um direito humano. A preocupação deste ministério não é com uma política educativa. É a liberdade dos pais como protagonistas na condução da Educação de seus filhos. Por isso, a gente achou conveniente viabilizar esse direito. Fizemos isso em conjunto com o MEC porque para conseguir a regulamentação para prática do direito, precisamos do MEC. Mas este ministério achou como boa medida que a Secretaria da Família fortalecesse a liberdade dos pais na escolha do sistema educativo dos seus próprios filhos.
Qual foi o papel do Ministério da Educação no projeto de lei apresentado no dia 11 de abril? Foi muito bonito, um concerto a quatro mãos. Desde o primeiro momento, a gente teve um diálogo com o MEC. Fomos vendo o que poderia ser obstáculo, o que poderíamos colocar como o mínimo imprescindível para dar esse direito às famílias e, depois, regulamentar. Foram muitas reuniões, diálogos, estudos… Queríamos assegurar a viabilização do direito dos pais de uma forma prática, mas não extensiva.
Depois, abrimos diálogo ao público. A gente ouviu e conversou com famílias. Ficamos impressionados de ver quantas famílias no Brasil estão buscando atualmente esse sistema. Ouvimos também as famílias do Itamaraty [Ministério das Relações Exteriores], em que há muita transferência imprevista dos funcionários e eles gostariam também de ter o homeschooling como uma opção de Educação para os filhos.
Quando foi anunciado que o MDH lideraria essa pauta, circulou a notícia de que o texto-base da medida provisória (MP) seria elaborado pela Associação Nacional de Educação Domiciliar (Aned). Foi isso mesmo que aconteceu? Qual foi a participação do grupo na elaboração da proposta? A Aned ajudou com dados, estudos e nas conversamos com outras associações brasileiras e até mesmo fora do país sobre o tema. Ou seja, a Aned foi escutada, mas foi escutada como mais um grupo na escuta pública. Há 26 anos existem projetos de Educação domiciliar. O nosso projeto foi feito em cima de muito estudo, mas não só do pessoal da Aned. Tudo que nos foi fornecido como material, nós lemos. E, principalmente, escutamos as famílias para entender a expectativa delas em relação a esse direito.
Inicialmente, foi anunciado de que o homeschooling tramitaria como MP, mas o MDH apresentou a medida como projeto de lei (PL). Por quê? Logo que foi falado em medida provisória, eu liguei para o ministro [e presidente do Supremo Tribunal Federal] Dias Toffoli e falei que queria trabalhar dentro do estado democrático de direito porque nós queríamos estar alinhados ao Legislativo e Judiciário. Depois, dentro do Ministério de Direitos Humanos, estudamos qual seria o melhor instrumento em termos de eficácia e respeito aos outros poderes. Tendo em conta que há outros projetos de alto interesse nacional, como, por exemplo, a [reforma da] Previdência, se o homeschooling fosse apresentado como medida provisória e travasse [o andamento das pautas], não daria o direito. Com o amadurecimento da proposta, a gente achou que o projeto de lei seria o melhor instrumento para viabilizar mais rapidamente a concessão do direito dos pais.
Mesmo considerando que uma MP teria uma tramitação mais rápida? Poderia ou não ser mais rápida. Se [a pauta do homeschooling] fosse travada, acabou o projeto. E poderia também não ser a tramitação mais rápida. Há outras pautas em discussão e, se acabasse o prazo da MP sem que fosse resolvida, a gente perdia. Durante anos e anos, projetos de lei passaram pela Câmara projetos sem serem devidamente discutidos ou aprovados. Mas o que a gente percebe é que há força no Congresso para apoiar o projeto. Vários parlamentares presentes à comemoração dos 100 Dias [de Governo Bolsonaro] no Planalto disseram que aprovariam o projeto.
No início de abril foi formada a Frente Parlamentar pelo Homeschooling. Ao mesmo tempo, no final de 2018, tivemos a definição do Supremo em relação à constitucionalidade desse meio educativo, mas com a determinação de que deveria ser conversado no Congresso. Mas três dias antes da comemoração dos 100 Dias mudou o ministro [da Educação]. Apresentamos o texto ao novo ministro [Abraham Weintraub] e pedimos para que estudasse o projeto para continuarmos o diálogo.
O MHD passou a liderar essa pauta por entender que se trata de um direito de liberdade das famílias e não uma questão de política educacional. Por que pesou mais a questão familiar frente à educacional, considerando que, tirando o direito da família em optar por uma modalidade como o homeschooling, todas as determinações passam por uma discussão educacional e envolvem o MEC? O diálogo com o MEC é óbvio porque nós não podemos regulamentar e o MEC precisa viabilizar esse projeto de forma prática. Ao mesmo tempo, nesse governo, o presidente [Jair Bolsonaro] tem falado que a família é um tema transversal. Portanto, é um tema interministerial e fundamental para cada secretaria dentro do Ministério de Direitos Humanos. É um tema do presidente, do Governo e vamos sempre recorrer a outros ministérios para assegurar esse direito à família. Por isso, a presença forte do MEC.
Aprofundando na família, entendemos também que os primeiros interessados na Educação dos filhos são os pais. Deveríamos ter os pais mais presentes, não só que deleguem a Educação e ponto. Nós não defendemos, em absoluto, o homeschooling como melhor sistema [de Educação]. Mas a gente vê que os pais têm que ter esse direito porque é uma forma que pode ser eficaz, não é ilícito ou errado… é a liberdade. Então, por quê não? Nós vemos os pais como primeiros protagonistas na Educação dos filhos.
Ao mesmo tempo, pela Constituição Federal (CF) e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a gente sabe que o Estado também tem um interesse na Educação porque estamos falando de cidadãos. A CF e o ECA têm uma absoluta preocupação com a convivência familiar e comunitária que eu, particularmente, também tenho, e que estava prevista desde o início do projeto de lei. Há uma responsabilidade à qual os pais precisam estar atentos se resolverem instituir a Educação domiciliar como sua via.
Os contrários à liberação do homeschooling defendem que a convivência social com grupos diversos e interação com opiniões diferentes proporcionada pelo ambiente escolar é de grande importância e não é necessariamente garantida por quem opta pelo ensino domiciliar. A diversidade também é uma competência estabelecida pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Pelo projeto de lei, entendo que a questão esteja contemplada no Art. 2, quando fala em “assegurar a convivência familiar e comunitária”. No entanto, a convivência familiar e comunitária tende a agregar pessoas com interesses e valores próximos. Como garantir a diversidade para essas crianças e adolescentes que estudam em casa e assegurar que estejam aptos a se adaptar bem e sem conflitos a outros espaços onde há pluralidade de ideias, de modo que como a universidade e o mercado de trabalho? A gente tem que considerar que o objetivo primeiro do homeschooling é a Educação de qualidade. A convivência, as pessoas têm de uma forma ou de outra porque ninguém vive em uma bolha. As famílias se relacionam e convivem com outras comunidades na sociedade civil. A responsabilidade de assegurar a convivência familiar e comunitária é prevista em nossa Constituição e no ECA e está atrelada como algo que vem como consequência, mas não é prioritário. Como é um fator decorrente, mas não prioritário, nós vamos acompanhar para ver também como desempenhar essa vertente da convivência familiar e comunitária.
As pessoas falam que vai ser um problema, mas não necessariamente. Vamos fazer essa experiência e ver se isso será uma dificuldade. Nos outros países não está sendo um problema. Mas é interessante pensar: qual é o tipo de convivência que as pessoas têm com tanto celular? A gente pode focar também em convivências deficitárias de outra forma na sociedade. Mas o foco do homeschooling é na Educação e, como consequência, que a gente garanta também a vida comunitária.
O projeto de lei tem alguns pontos de direcionamento ainda bem amplos e que não atacam todos os problemas educacionais. Um exemplo é que o PL prevê que os pais perderão o direito ao ensino domiciliar caso não seja feito ou renovado o cadastramento anual de quem optar pela modalidade. Senti falta, por exemplo, de instrumentos para garantir que os alunos tenham o seu direito à Educação garantido ao longo do ano e não apenas ao final de um ciclo anual. O acompanhamento anual pode aumentar o problema de distorção idade-série e de abandono escolar. Há perspectiva de que esses direcionamentos sejam complementados ao longo do seu processo no Congresso ou essa responsabilidade caberia em diretrizes do Conselho Nacional de Educação ou mesmo às Secretarias de Educação? Quando a gente dá uma liberdade e pauta uma política pública a partir da liberdade, ela faz parte do processo em termos de coerência. Liberdade tem um binômio que é responsabilidade. Quando temos liberdade, temos de ter também responsabilidade. É responsabilidade dos pais a matrícula, bem como fazer um planejamento de estudos dentro da BNCC e encaminhar seu conteúdo e o cronograma para o MEC e garantir a vida comunitária. A liberdade se dá também com confiança. O controle pode até afogar essa liberdade. Estão previstos prazos que são razoáveis e que não sufocam os pais. Ao mesmo tempo, também há opções no Artigo 11 que dão aos pais a possibilidade de serem mais acompanhados e poderem fazer avaliações formativas ao longo do ano.
Pode ser que daqui a um ano a gente decida mudar isso porque não se mostrou eficaz. Vamos acompanhar e depois fazer as ponderações para ver se é preciso modificar algo. Como o MEC vai veicular isso, eu não posso dizer. O nosso dever de casa é dar esse direito aos pais. Todas as determinações de regulamentação cabem ao MEC.
O projeto de lei determina que seja feita uma avaliação anual a partir do 2º ano do Fundamental para certificar a aprendizagem. Caso o estudante seja reprovado em dois anos consecutivos ou três anos não consecutivos, os pais ou responsáveis perdem o direito ao ensino domiciliar. Atualmente, as taxas de distorção idade-série na Educação Básica são grandes. É difícil que o professor consiga recuperar o aprendizado de outros anos escolares paralelamente ao conteúdo do ano em que o aluno se encontra. Com um prazo de reprovação de dois a três anos na modalidade de Educação domiciliar, não corremos o risco de aumentar ainda mais a distorção idade-série nas escolas públicas, a evasão e, consequentemente, o número de jovens a partir de 15 anos na EJA? Os pais que procuram o homeschooling estão preocupados com a Educação dos filhos. Homeschooling não é uma tarefa fácil. Vamos ver como será a experiência. Se pegarmos dados estatísticos fora do Brasil, não existe essa situação. Em alguns países, o controle é muito menor. Os pais têm tanto interesse que não precisa nem de controle.
Se não der certo no primeiro ano, vamos tentar mais um ano. No segundo ano, não deu certo, aí precisamos de atenção. Aí, realmente, temos que reformular e talvez a criança tenha que voltar para escola. Mas quem sabe a gente nem tenha essa preocupação? O que eu tenho visto com as famílias adeptas do homeschooling é uma excelência [na Educação]. Acho que precisamos experimentar para ver. Mas acho razoável, como tentativa, dar o direito e, depois tirar o direito, se se mostrar ineficiente.
Hoje, a Educação Básica é obrigatória dos 4 aos 17 anos de idade, de acordo com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB). Aos 4 anos, a criança ainda está na Educação Infantil. O projeto de lei entregue prevê apenas que a certificação da aprendizagem passe por uma avaliação anual. Como garantir que as crianças até o 2º ano do Fundamental também estejam com seus direitos de aprendizagem e desenvolvimento garantidos? A avaliação na Educação Infantil é muito mais subjetiva e é resultado do acompanhamento e da evolução individual de cada criança. Às vezes, um pai não tem a referência de outras crianças para até mesmo comparar o desenvolvimento dos filhos. É, muitas vezes, na escola que se descobre que a criança tem algum tipo de atraso. Em termos de isonomia, não existe, de fato, avaliação até o 2º ano.
Avaliação escrita, não. Mas existe uma avaliação do desenvolvimento individual da criança, que é feita pelo professor. Aí fica na responsabilidade dos pais de estar promovendo algo de Educação e algo de convivência comunitária. Eu acho, filosoficamente, que o outro nos leva ao conhecimento próprio. Na experiência prática, os pais que são interessados no homeschooling têm uma visão da Educação como personalizada e parte dela inclui a convivência no esporte, no clube, na família… Eu vejo muito menos omissão do que pais que colocam o filho na escola para resolver alguma situação. Aqui na Secretaria da Família queremos acompanhar essas famílias de alguma forma e promover e assegurar a convivência familiar.
Como no Brasil a Educação domiciliar não é regulamentada, não temos muitas informações sobre o perfil desses estudantes. Nos estudos feitos pelo MDH para a formulação do PL, foi identificado um perfil de família dominante entre os adeptos da modalidade? Não. Até pessoas falaram que é porque a família tem muitos filhos ou porque querem Educação cristã. Mas não é esse o perfil. São famílias que têm uma preocupação com a Educação, estão engajadas e vão assumindo porque veem que a escola pública, muitas vezes, não está alinhada com o pensamento [da família]. Em outras situações, as escolas não estão à altura do que os pais desejam. A gente sabe que Educação [particular] no Brasil, uma escola boa é muito cara.
Há ainda o bullying, falta de respeito, os próprios professores com pouca delicadeza… isso choca alguns pais que prefeririam ter melhores tutores, melhores exemplos, melhores convivências. Mas eu não posso te dizer “todos pensam assim”. Cada família é uma família. Cada porque é um porque. Cada razão é uma razão.
Mas há sequer um perfil social, como classe econômica? Não. Em geral, tem todo tipo de famílias. Isso é muito interessante, porque às vezes se pensa que são pessoas de uma classe econômica menos elevada que têm muita preocupação [com a qualidade do ensino]. Mas tem pessoas que poderiam estar pagando uma escola e querem excelência para os filhos e optam pelo homeschooling. Não dá para traçar um perfil.
A PL não fala sobre a possibilidade dos pais contratarem um professor tutor para realizar a Educação domiciliar. Há alguma restrição quanto à contratação de professores? Não, os pais é que vão escolher a forma. A responsabilidade deles é completa nesse sentido.
Existe uma reclamação mútua na relação escola-família. Do lado da família, a reclamação é que a escola não cumpre tudo o que poderia. Do lado da escola, que a família não participa o suficiente da vida escolar dos filhos. Você comentou do interesse do MDH de se aproximar das famílias no sentido do acompanhamento escolar e de trabalhar de forma interministerial. Como o MDH poderia ajudar nessa relação escola-família, considerando que é um desafio para os professores e para os pais e responsáveis? Nós [a Secretaria da Família] estamos nascendo agora, estamos começando a levantar dados estatísticos e temos várias pautas a serem encaminhadas. Há uma preocupação em maior foco dos pais na própria família. Mas há, de fato, uma grande omissão hoje dos pais na Educação. Há uma delegação para a escola. Primeiro, a gente quer identificar em que lugares existe essa omissão e em que ambientes isso é mais forte. Ao mesmo tempo, temos visto pais que vêm buscando – até fora do Brasil – entidades às quais possam se associar e atender de forma personalizada seus próprios filhos. Então, a gente tem quase um pêndulo: um que é de omissão e outro que é de uma boa preocupação. A gente quer através do Observatório da Família – se Deus quiser – identificar melhor essa situação.
Queremos uma mudança cultural no sentido de potencializar, através da Secretaria da Família, o empoderamento da família a partir da própria liberdade. A gente não vai encaminhar as pessoas para o que achamos melhor. Mas reflexão sempre leva a pessoa a tomar as atitudes dentro da sua autonomia. Eu espero que isso possa iluminar a família porque a escola vai estar no MEC. Se o MEC quiser ter ideias conjuntas, nós vamos trabalhar juntos.
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