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Jornalismo

O que dizer à turma sobre o fome zero

Não faltam alimentos no Brasil. O que falta é dinheiro nas mãos de todos

PorRicardo Prado

01/04/2003

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Nos últimos meses, um tema entrou na pauta das discussões: a fome. Ocupou as manchetes e virou enredo de escola de samba. Por isso deve ser levado para a escola. Seus alunos precisam saber que, na origem desse grave problema, existe outro, a distribuição de renda. Estudos mostram que dispomos de 2960 quilocalorias por habitante por dia (bem mais do que o mínimo de 1900 recomendado por parâmetros internacionais). Da mesma forma, perto de 80% da população mundial tem, em média, menos renda do que nós, brasileiros (ou seja, tampouco podemos ser considerados um país verdadeiramente pobre). Por isso, o grande nó é a distribuição de renda. A imagem acima mostra como a renda é concentrada. Tal qual uma pirâmide invertida, os 10% mais ricos detêm quase 50% dos recursos, enquanto os 50% mais pobres ficam com pouco mais de 10% do total de dinheiro disponível. Ou seja, o topo ganha quase 25 vezes mais do que a base. E sempre foi assim. "Nunca atacamos o espectro da desigualdade", analisa Pedro Demo, professor da Universidade de Brasília. Resultado: estamos na quarta pior colocação em termos de distribuição de renda do planeta.

Quem é pobre, afinal?

Se não faltam alimentos, mas dinheiro na mão de quem precisa, o primeiro passo é saber quantas são essas pessoas. Parece fácil, mas há muita controvérsia entre os especialistas. "Deveria haver um só padrão, reconhecido pelo Estado com base em critérios internacionais, para definir a linha de miséria, de modo que passemos da discussão de ?quantos são? para ?o que fazer?", defende Marcelo Néri, do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Ocorre, porém, que há vários indicadores.

A FGV estabelece que é pobre todo aquele que vive com menos de 160 reais por mês e indigente, com metade desse valor.

O Programa Fome Zero, lançado no início deste ano pelo governo federal, utiliza o mesmo cálculo do Banco Mundial: é indigente a pessoa que ganha até 1 dólar por dia.

Já o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), órgão ligado ao Ministério do Planejamento, trabalha com uma cesta básica familiar (cujo valor varia de região para região) com os requerimentos nuticionais sugeridos pelo Fundo para a Alimentação e Agricultura (FAO) da Organização das Nações Unidas (leia o texto Biografia, na pág. ao lado). Toda família que recebe menos do que o necessário para comprar a tal cesta é considerada pobre. Em 1993 o instituto montou o Mapa da Fome ? o mais detalhado estudo estatístico já feito no país sobre a questão ? e concluiu que perto de 32% dos brasileiros, ou 54 milhões de pessoas, estão abaixo da linha da pobreza. Desse total, 23 milhões são indigentes.

Onde está a pobreza

O Mapa da Fome do Ipea indica que dois terços dos 23 milhões de indigentes vivem na Bahia, em Minas Gerais, no Ceará, em Pernambuco e no Maranhão. Em termos percentuais, o Piauí é o estado em pior situação, com 57% da população composta de indigentes. Seguem-se Paraíba, Ceará e Maranhão. "Isso não significa que toda essa população esteja passando fome, mas que não tem renda suficiente para viver dignamente. Muitas crianças recebem merenda na escola e alguns trabalhadores almoçam no local de trabalho", ressalva Anna Peliano, coordenadora de Projetos Especiais do instituto e uma das autoras do estudo. Para ela, o Conselho de Alimentação Escolar deveria ser tratado pela sociedade como um órgão estratégico, por estender uma malha protetora a quem mais precisa.

Outro dado revelador de que o problema da fome não é de produção é que cerca de 39 mil toneladas de comida são desperdiçadas diariamente no país. Estima-se que seriam suficientes para alimentar 19 milhões de pessoas. Um dos entraves para essa comida chegar a quem precisa é a questão civil e criminal por dano ou morte que incide sobre quem doa alimentos. Se alguém passa mal com a comida que ganhou, o doador é responsável juridicamente pelos danos ? uma espécie de contra-senso, pois que dono de restaurante ou supermercado vai correr o risco de ser processado por um gesto de solidariedade? Um projeto de lei em discussão desde 1997 no Congresso Nacional pretende transferir essa responsabilidade para quem recebe a doação.

No início da década de 1990 o Movimento pela Ética na Política montou uma grande rede de entidades e uma verdadeira cruzada contra a fome. Capitaneado pelo sociólogo Herbet de Souza, o Betinho, ele revelou a força da sociedade civil organizada como parceira do Estado. Os comitês da Ação pela Cidadania Contra a Miséria e pela Vida mostraram que muito pode ser feito sem a intervenção oficial.

O movimento sobreviveu à morte de seu principal articulador e sedimentou-se em torno do Comitê de Entidades no Combate à Fome e pela Vida (Coep), integrado por cerca de 700 entidades, entre as quais muitas escolas. No site da instituição (www.coepbrasil.org.br) você encontra 650 projetos, textos e material pedagógico. E também o regulamento de um concurso de cartas para alunos de 5ª a 8ª série cujas inscrições se encerram em junho.

Biografia 

O primeiro presidente da FAO, o Fundo para a Alimentação e Agricultura da ONU, foi o médico e geógrafo pernambucano Josué de Castro, duas vezes indicado para o Prêmio Nobel da Paz e morto em 1973, quando vivia exilado em Paris. Ele é autor de Geografia da Fome (1949) e Geopolítica da Fome (1951), nos quais afirma, com evidências extraídas de várias áreas do conhecimento, como Biologia, História e Economia, que a fome no Brasil é questão de distribuição de renda, não de produção de alimentos. Há mais de 50 anos apontava como regiões de fome endêmica (permanente) o Norte e o Nordeste.

A escola entra em cena

"Algumas ações para combater a fome dependem da comunidade, enquanto outras só deslancham com uma atuação do governo, seja ele municipal, estadual ou federal", diz Anna Peliano, do Ipea. "Para o estudante, é importante aprender a identificar aquilo que está ao alcance da escola e pode ser enfrentado localmente, com soluções criativas em associação com empresas ou organizações não governamentais."

Em sala de aula, não faltam idéias e abordagens. Em Ciências, um bom caminho é explorar as relações entre crescimento e nutrição ou os efeitos da carência de nutrientes e da subnutrição, sem falar de um estudo sobre como incrementar a merenda escolar. Em História e Geografia é fácil mergulhar nas raízes de nossa desigualdade social e estudar os locais onde ela é mais grave ou desvendar os mecanismos da "indústria da seca" e as alternativas econômicas de regiões com bolsões de miséria, como o Polígono das Secas, no Nordeste, a Zona da Mata e os vales do Jequitinhonha, em Minas Gerais, e do Ribeira, em São Paulo.

O professor de Matemática encontrará um farto material de estudo nas estatísticas, revelando para a turma a realidade que os números mostram (leia o exemplo abaixo). O de Língua Portuguesa pode trabalhar com textos como Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, e Vidas Secas, de Graciliano Ramos. Como se pode ver, a fome é multidisciplinar e está na ordem do dia. Josué de Castro dizia que ela "é uma criação tão humana como a guerra, sem obedecer a qualquer lei natural". O sociólogo Herbet de Souza, o Betinho, completou: "Quem tem fome tem pressa". Que tal, então, juntar a fome com a vontade de saber e levar esse tema para a escola?

Distribuindo a renda: um exemplo 

O Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas calculou quanto cada cidadão que esteja acima da linha da pobreza teria de desembolsar mensalmente para girar uma utópica engrenagem de justiça social. A FGV usou dados do Censo 2000, que apontou 50 milhões de pessoas (29,3% da população) com renda mensal inferior a 80 reais. Mostre aos alunos como isso funcionaria. Veja o exemplo abaixo, de um grupo com cinco pessoas, e suas respectivas rendas:

Se a linha de pobreza for de 154 reais e a de indigência, de 76 reais, Luiz e Antônio seriam pobres, mas apenas Antônio, miserável. Para atingir a linha de pobreza faltam

12 reais para Luiz e 142 reais para Antônio. Portanto, redistribuir a renda e erradicar a pobreza nessa "sociedade" custaria 154 reais. Segundo o relatório do Ipea, a erradicação da miséria exigiria a transferência de 10,49 reais por brasileiro situado acima da linha de pobreza a cada mês.

Um trabalho eficiente de redistribuição de renda, porém, é obra política, e de longo prazo. "Se ficarmos na questão meramente monetária, não atacamos as razões da concentração de renda", alerta Pedro Demo, da UnB. Como gerar renda para que Luiz e Antônio não precisem receber ajuda em dinheiro? Debata com a turma como desatar esse nó que deixa tanta gente com um buraco no estômago.

Quer saber mais?

Comitê de Entidades no Combate à Fome e pela Vida, R. Real Grandeza, 219, bl. O, sala 208, 22283-900, Rio de Janeiro, RJ, tel. (21) 2528-4381

Mapa do Fim da Fome, elaborado pelo Centro de Políticas Sociais da Fundação Getulio Vargas, pode ser acessado pelo site www.fgv.br/cps

Geografia da Fome - O Dilema Brasileiro, Josué de Castro, 318 págs., Ed. Civilização Brasileira, tel. (21) 263-2082, 31,20 reais

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