Ritalina: a escola esqueceu que é melhor prevenir do que remediar
O aumento na venda de metilfanidato, o princípio ativo da Ritalina, alerta para os riscos da medicalização do ensino
01/06/2013
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Jornalismo
01/06/2013
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Um estudo divulgado recentemente pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) com base em dados do Sistema Nacional de Gerenciamento de Produtos Controlados (SNGPC) alerta para um problema que deveria alarmar o país. Em três anos, o consumo do metilfanidato, princípio ativo de remédios como Ritalina, Concerta e Ritalina LA, teve um aumento de 73,5% entre crianças e jovens de 6 a 16 anos (leia a tabela abaixo). A substância é muito empregada no tratamento do Transtorno de Déficit de Atenção com ou sem Hiperatividade (TDAH), além de outros distúrbios comportamentais atribuídos a questões cognitivas.
Há duas alternativas possíveis para um aumento tão expressivo: a primeira, é o Brasil estar diante de uma epidemia repentina de transtornos de comportamento, que passaram a atingir crianças e jovens de 2009 para cá (o que não é verdade); a segunda (e mais provável), é que se tornou rotina tratar com remédio problemas que não são necessariamente de saúde. O TDAH é uma doença que atinge de 8% a 12% de crianças no mundo, mas nos últimos anos virou justificativa para o fracasso escolar. Muitos docentes e pais se satisfazem com o diagnóstico e veem no remédio o único meio para controlar um "aluno-problema". A comprovação aparece nos dados da Anvisa. Segundo o relatório, nos três anos estudados, o consumo de medicamentos caiu nos períodos de férias escolares (julho, dezembro e janeiro).
Recorrer à farmácia pode parecer a solução mais simples, mas a medicalização é uma opção custosa e arriscada. Entre as reações adversas do uso de medicamentos à base de metilfanidato são citadas desordens psiquiátricas, redução do apetite, depressão, crise de mania, tendência à agressividade, morte súbita, eventos cardiovasculares graves e excessiva sonolência. O remédio, portanto, deve ser a última alternativa. E sua indicação tem de ser feita de maneira cuidadosa, por um profissional competente.
Em geral, quem primeiro nota uma possível particularidade na criança é o professor, que é orientado pela escola ou pela rede a fazer uma análise inicial. Como não existe um exame clínico, a avaliação é feita por meio de questionários. Um deles é o chamado Snap-IV, construído com base nos sintomas descritos no Manual de Diagnóstico e Estatística - IV Edição - da Associação Americana de Psiquiatria. O docente lê 18 frases sobre o comportamento do aluno e se selecionar muitas vezes as opções "bastante" ou "demais" o encaminha a um psicopedagogo. Os itens, no entanto, são demasiado abrangentes, podendo ser aplicáveis a qualquer pessoa: "Tem dificuldade de esperar sua vez", "Parece não estar ouvindo quando se fala diretamente com ele". E é aí que os problemas surgem.
Conforme alerta a Associação Brasileira de Déficit de Atenção (ABDA), os questionários não fornecem um diagnóstico, apenas apontam a presença ou não de alguns sintomas. Para dizer que uma criança tem TDAH é preciso saber quando os sintomas surgiram, se ela tem outros problemas psicológicos, se as reações se manifestam em pelo menos dois contextos diferentes e se realmente têm causado dano a ela. Quando só aparecem na escola, ou em uma disciplina específica, é hora de os educadores fazerem uma autoavaliação e analisarem quanto suas práticas influenciam o comportamento de cada estudante.
Em alguns casos, a forma como o docente se comunica com a turma ou a maneira como organiza a aula pode causar irritação num estudante. Em outras situações, algo que ocorre em classe (uma atividade específica, a postura de um colega etc.) faz com que ele se manifeste de maneira inadequada. Há casos, ainda, em que a criança está passando por um momento difícil, que se reflete em seu comportamento escolar. Monitorar de forma constante esses três pontos de vista permite antecipar conflitos e fazer modificações no planejamento para amenizar os atritos em classe. A observação ajuda também a descobrir ferramentas que estimulem as potencialidades daquele aluno que é movido por mecanismos distintos da maioria. Se depois de tentativas persistentes nenhuma ação surtir efeito, é necessária uma conversa franca com os pais e o encaminhamento dele para avaliação médica e psicológica.
Mesmo quando isso se mostra imprescindível, no entanto, é fundamental ter em mente que não é possível tratar uma doença cujos sintomas são comportamentais somente com um remédio que deixa a pessoa mais calma. O texto da Anvisa reforça essa instrução: "O medicamento deve funcionar como um adjuvante (auxiliar) no estabelecimento do equilíbrio comportamental do indivíduo, aliado a outras medidas educacionais, sociais e psicológicas". Usar a medicação como única ferramenta para solucionar dificuldades de comportamento e/ou de aprendizagem é tratar questões comportamentais como algo exclusivamente biológico, desconsiderando a sua subjetividade e a maneira como o estudante é impactado pela realidade que o cerca - o que não traz bons resultados. Ele, assim como os demais colegas, tem o direito e a capacidade de aprender. E, mais do que uma intervenção medicamentosa, o que falta é descobrir os melhores caminhos para ensinar.
No livro Educação Impossível (320 págs., Ed. Francisco Alves, tel. 21/2240-7989, edição esgotada), publicado no Brasil em 1988, a psicanalista francesa Maud Mannoni (1923-1998) já afirmava que: "Em vez de revolucionar o ensino e sua estrutura, o Ocidente prefere, pelo contrário, remediar os efeitos das anomalias geradas por um ensino inadequado à nossa época. Remediar os efeitos significa, neste caso, encarregar a medicina de responder onde o ensino fracassou". A fala não poderia ser mais atual. O que se vê, em alguns casos, é docente abrindo mão do seu papel de especialista em Educação e pedindo que a área médica lhe diga o que fazer, como se ele e a escola fossem incapazes de garantir a aprendizagem.
Em vez de medicalizar o ensino, é preciso solucionar seus problemas. Cabe à escola, em parceria com o aluno e a família, identificar a parcela de responsabilidade de cada um para que, ao final, o professor consiga ensinar, o restante da turma não se prejudique e a criança em questão aprenda.
Remédio para quê?
Aumento no número de caixas de metilfanidato vendidas no Brasil de 2009 a 2011
27,4% Para a população de 6 a 59 anos
73,5% Para crianças e adolescentes (de 6 a 16 anos)
Fonte SNGPC - Boletim de Farmacoepidemiologia - Ano 2, nº 2 | jul./dez. de 2012
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