Entrevista com Myriam Nemirovsky
A pesquisadora argentina, especialista em formação de leitores e escritores, explica por que projetos e sequências didáticas são fundamentais para organizar aulas em que todos possam aprender
01/10/2011
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Jornalismo
01/10/2011
Formadora de professores para o ensino de linguagem escrita há 45 anos, a argentina Myriam Nemirovsky se tornou uma referência para docentes interessados em se aprofundar na área. Mestre em Educação no Centro de Investigação e Estudos Avançados do Instituto Politécnico Nacional, no México - onde foi orientada por Emilia Ferreiro -, ela esteve no Brasil em outubro para ministrar uma palestra na Semana da Educação 2011, organizada pela Fundação Victor Civita (FVC). O tema: projetos e sequências didáticas de leitura e escrita. Nesta entrevista à NOVA ESCOLA, ela trata de alguns pontos de sua explanação, como as condições básicas para a formação de alunos leitores e escritores, e aponta as vantagens de trabalhar com modalidades organizativas. "Planejar a prática escolar dessa forma deixa evidente a ideia de processo, conceito que é fundamental hoje em Educação. Os alunos passam por todas as etapas de produção de texto e, no fim, conseguem enxergar o quanto aprenderam nesse caminho", explica a pesquisadora.
Que condições são essenciais para o ensino da linguagem escrita?
MYRIAM NEMIROVSKY Um aspecto central é a presença de uma boa biblioteca na classe e na escola. É preciso organizar, frequente e sistematicamente, trabalhos de leitura nos quais o docente lê textos de diferentes tipos em voz alta e dessa maneira compartilha comportamentos e procedimentos leitores com as crianças. Isso pode ser feito com toda a sala de uma vez, com uma única criança ou em duplas. Em outras situações, os alunos devem ser desafiados a ler sozinhos e a comentar com o professor e com os colegas o que acharam da leitura. Também é fundamental organizar múltiplas oportunidades para que a turma escreva seus próprios textos. O sucesso dessas situações depende muito de como o docente planeja - e é aí que entram os projetos e as sequências didáticas. Essas modalidades organizativas podem levar as crianças a elaborar contos, receitas culinárias ou anúncios publicitários, dependendo do contexto funcional que se quer promover em cada situação, ou seja, qual situação real de produção de texto se deseja trabalhar.
Como as crianças pequenas aprendem quando escrevem?
MYRIAM Por meio das intervenções do docente, os pequenos vão tomando consciência das diferenças entre a linguagem falada e a escrita à medida que leem e escrevem. Redigir não é grafar a linguagem oral, mas usar um tipo específico de linguagem, de vocabulário, de sintaxe, de estrutura etc. E isso eles vão notando quando se faz um trabalho sistemático com diferentes gêneros, por exemplo, o conto e a poesia.
Que mudanças traz o trabalho com projetos e sequências didáticas?
MYRIAM Assumir que as atividades em classe podem ser estruturadas em sequências implica organizar um processo didático por meio do qual desencadeamos uma série de ações sucessivas e com diferentes graus de complexidade, que têm um propósito explícito e claro e que ocorrem ao longo de várias semanas ou meses. Essa forma de organizar as aulas se difere do modo educativo transmissivo, que vigorou durante muito tempo e lamentavelmente continua vivo em muitos lugares. Nele, o professor apenas repassava conhecimentos para as turmas e não havia o princípio de processo para o ensino e para a aprendizagem. As atividades estavam organizadas com base em uma concepção aditiva, em que se propunha uma atividade após a outra para treinar os alunos. A função das crianças era apenas adquirir o conhecimento passado pelo mestre.
Quais os benefícios das modalidades organizativas para os estudantes?
MYRIAM Em primeiro lugar, a organização das atividades em sequências e projetos permite que os alunos se relacionem com o objeto de ensino e avancem em seus conhecimentos. Além disso, eles compartilham dos propósitos estabelecidos pelo professor. Ou seja, precisam saber o que será feito ao longo do tempo e por que farão isso. Assim, todos ficam cientes dos objetivos das atividades e do que se espera que aprendam com esse trabalho, o que dá muito mais sentido às atividades em classe.
Qual o impacto de comunicar os objetivos do trabalho aos alunos?
MYRIAM Isso deixa evidente para eles os processos que têm de percorrer para realizar determinadas tarefas. Vou explicar essa afirmação com um exemplo concreto: quando são desafiadas a concluir um produto final real - um livro com receitas para leitores que vivem em outra região, por exemplo -, as crianças têm de passar por uma série de ações leitoras e escritoras. Elas sabem que alguém vai ler o que fizeram e se empenham em dar conta dessa missão da melhor maneira possível. Ao longo do trabalho, a turma passa por diversas etapas e, ao finalizá-las, pode analisar o percurso e perceber tudo o que foi aprendido.
Quais as principais vantagens de planejar as aulas por meio de projetos e sequências didáticas?
MYRIAM A primeira é poder prever com certa segurança o que será feito a cada aula e em todas as etapas seguintes. Isso ajuda a determinar com mais facilidade que materiais, situações ou fontes de informação são necessários para que esse processo possa ser levado a cabo. Um professor que sabe o que vai fazer chega à sala muito mais seguro e capaz de intervir para que os alunos aprendam. É claro que, enquanto estamos desenvolvendo uma sequência, podem surgir situações não previstas, que devem ser levadas em conta e incluídas entre as etapas do trabalho. Prever não quer dizer fechar alternativas, mas organizar melhor a prática, sempre e todo dia.
Como escolher que sequências e projetos realizar durante o ano letivo?
MYRIAM É preciso ter clareza sobre as contribuições do trabalho antes de começar a desenvolvê-lo. Ou seja, o professor deve saber o que a turma precisa aprender sobre determinado conteúdo e preparar uma série de atividades que atendam a esse objetivo. É fundamental prever que sequências didáticas serão desenvolvidas durante o curso logo no começo do ano.
Esse planejamento é fixo?
MYRIAM Não. É preciso ter consciência de que algumas sequências previstas não serão realizadas ou de que uma que estava prevista para maio na realidade se desenvolverá só em setembro. São as necessidades de aprendizagem dos alunos que determinarão isso. É importante tentar equilibrar quais serão os conteúdos e temas abordados ao longo do ano e da escolaridade dos estudantes. Por exemplo: se vou organizar uma sequência didática sobre notícias de jornal, tenho de planejar também o uso de outros gêneros textuais e temas. Se num projeto trabalho um assunto científico, em outro, devo buscar algo mais social. Digo isso porque vejo professores que num dado momento investigam aves e no mesmo ano desenvolvem projetos sobre ursos. Ora, se essas modalidades organizativas também têm por objetivo ampliar os conhecimentos e o universo cultural dos alunos, não dá para abordar sempre os mesmos temas e gêneros.
Há também o risco de os pequenos cansarem desse tipo de trabalho?
MYRIAM Sim. Dei o exemplo dos animais porque, como todo tema, e inesgotável e uma hora enjoa. Não é porque estão interessados que é válido abordá-lo. Se os pequenos se interessam por leões e depois de dois meses querem saber mais sobre as girafas, isso não significa que seja proveitoso fazer desses animais o foco de um projeto. Afinal, há muitos outros conhecimentos que estão ficando de fora e também são capazes de gerar interesse na garotada.
É um erro basear todos os projetos nos interesses dos alunos?
MYRIAM Sim. Lembre-se de que nem todo tema desperta o entusiasmo das crianças. Nosso papel é desenvolver o interesse delas por aqueles que são válidos e fazer com que se envolvam cada vez mais. Em geral, temos pouca vontade de saber sobre o que desconhecemos. É preciso ter informações básicas e iniciais para querer seguir descobrindo. Por exemplo: eu não posso me interessar por estudar a obra de Van Gogh (1853-1890) se não sei que ele existe. Quando são apresentadas a um tema ou a um problema e convidadas a descobrir mais sobre ele, as crianças são verdadeiramente cativadas pelo trabalho e aprendem a se interessar por assuntos novos.
É possível trabalhar quantos projetos em um único ano?
MYRIAM Creio que não podemos desenvolver mais de seis ou sete sequências ou projetos didáticos em um ano. Por isso mesmo, na hora de planejar, é necessário escolher temas que tenham grande relevância.
Todo docente consegue trabalhar com modalidades organizativas?
MYRIAM Alguns professores, com a ajuda da equipe gestora, podem perfeitamente organizar, decidir, planejar e levar a cabo projetos por si mesmos. Outros vão precisar de muito mais apoio e orientação dos coordenadores. Para alguém que vem de um modelo transmissivo de Educação, não adianta dizer: "Organize seis sequências ou projetos para desenvolver durante o ano". Ele não conseguirá fazer isso sem que alguém lhe dê por escrito, lhe proponha exemplos, lhe ofereça vídeos e documentos de registro com fotos, produções de outras crianças etc. Uma sequência didática dura várias semanas, tem muitas variáveis e implica tomar inúmeras decisões cotidianas. Por isso, um docente que acaba de se aproximar desse tipo de iniciativa não conseguirá dar conta de executá-la bem. O ideal é ir trabalhando dessa forma aos poucos. Primeiro, ele fará uma atividade de dez minutos em sala. O resto do tempo vai continuar atuando de modo como estava acostumado. Ele pode ir fazendo mudanças pontuais e lentas até se habituar com esse modelo de planejamento.
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