Conhecimento para intervir na realidade
Saber científico colabora para resolver problemas identificados no entorno
PorBruno MazzocoFernanda SallaPatrick Cassimiro
08/11/2015
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Jornalismo
PorBruno MazzocoFernanda SallaPatrick Cassimiro
08/11/2015
Quem navega pelo Rio Tracajá, na zona rural de Parintins, a 370 quilômetros de Manaus, deslumbra-se com o cenário. Até pouco tempo atrás, nem passava pela cabeça dos moradores de Santo Antônio do Rio Tracajá - e de outras dez comunidades próximas - que o consumo de água do rio poderia ser a causa dos surtos de diarreia e vômito que assolavam a região, afetando as famílias, que não tinham saneamento básico. Atento a isso, o professor Valter Menezes investigou a questão nas aulas de Ciências com o 9º ano.
Licenciado em Ciências pela Ufam, com pós-graduação em Ensino de Biologia para o Nível Superior pela Uniaselvi.
"A Amazônia é um laboratório a céu aberto. Ao sair do espaço formal de aprendizagem, os alunos assimilam muito mais conhecimento ."
O trabalho iniciou com pesquisas e seminários em que os alunos abordaram os usos da água, as formas de tratar e distribuir e os problemas de saúde decorrentes do consumo direto de fontes contaminadas. Mesmo após as discussões, a relação entre o aumento do índice de doenças em um período do ano e as alterações no entorno não era feita pela turma. O docente, então, destacou o fato de que, nas épocas de enchente, os fazendeiros transportam a boiada em balsas em busca de melhores áreas de pasto. Depois, elas são lavadas e os dejetos despejados na água. Isso e o desmatamento da mata ciliar seriam os grandes responsáveis pelas enfermidades. "Essa vegetação atua como um filtro. Sem ela, os resíduos que estão nas partes mais elevadas vão para o rio", diz José Camilo Ramos de Souza, professor da pós-graduação da Universidade do Estado do Amazonas (UEA).
Para tentar confirmar com dados a hipótese levantada, um grupo de alunos que mora na área mais afetada mapeou os hábitos de consumo e de higiene dos ribeirinhos. Ao visitar as casas, aplicavam um questionário com perguntas como: "Você bebe água do poço ou do rio?", "Como lava os vegetais?", "Faz suas necessidades na privada ou a céu aberto?". As respostas revelaram que muitos usavam a água do rio sem tratamento ou se valiam de técnicas primitivas, como a decantação.
Para Luciana Hubner, consultora pedagógica de NOVA ESCOLA e selecionadora de Ciências do Prêmio Educador Nota 10, com a pesquisa de campo, os jovens foram despertados para uma questão até então ignorada. "Eles não sabiam o porquê dos casos de diarreia. A pesquisa transforma esse fato em objeto de reflexão." As informações foram tabuladas e serviram de subsídio para que a sala discutisse como resolver a questão.
Além de apresentar conteúdos adequados às expectativas de aprendizagem para o ano, Valter saiu da área convencional da escola para construir o conhecimento de modo mais significativo. "Eu vi uma forma de usar a realidade do local para trabalhar a ciência em um espaço não formal, em que ela seria aplicada para a resolução de um problema da comunidade", conta o educador.
Com os dados em mãos, a garotada percebeu que era preciso encontrar uma alternativa de tratamento para a água. Pensaram no filtro de barro, mas não tinham como comprar um para cada família. Todos, então, pesquisaram opções com os materiais disponíveis na região. O primeiro protótipo foi inspirado em uma atividade descrita no livro didático e construído com um garrafão de plástico, pedra e areia. Os alunos fizeram diferentes experimentos até chegar ao modelo ideal.
O grande desafio foi encontrar elementos adequados, já que boa parte da areia da região era muito fina, imprópria para a filtragem por se misturar ao líquido. Por isso, os jovens se engajaram na busca de matérias-primas e testaram diferentes versões de filtros. "Quando estudam as possibilidades de filtração, eles estão pensando na aplicação prática disso, que é o que um cientista faz na realidade", diz Mário Donizeti Domingos, doutor em Ciências da Engenharia Ambiental pela Universidade de São Paulo (USP).
A cada teste, eram feitas comparações visuais das amostras da água filtrada. Ficou definido que a composição ideal deveria ter uma camada fina de seixo (pedrisco), sucedida por outra de areia grossa na mesma proporção e, por fim, uma mais espessa de areia fina. Os materiais são responsáveis por reter as impurezas e conservar a temperatura interna do recipiente baixa, dificultando a proliferação de microrganismos. "O grande acerto do professor foi aproveitar a realidade local para, ao mesmo tempo, ensinar os conteúdos e melhorar a vida da comunidade", diz Mário.
Com tudo funcionando, a etapa seguinte consistiu na montagem e instalação dos filtros nas casas. Duas ONGs que atuam na região cederam recipientes apropriados. Divididos em grupos, os alunos percorreram as moradias fora do centro do povoado para fazer o equipamento e explicar o funcionamento, mostrando sobre os cuidados e a maneira de utilizá-lo.
Com isso, os jovens passaram a atuar como agentes comunitários, orientando e ajudando a população. "A gente percebeu que muitas pessoas não têm outra água para consumir. Esse projeto é importante porque está colocando em prática o que aprendemos para melhorar a nossa saúde", conta Eduarda Araújo Cruz, 14 anos. Ao final dessa etapa, 180 famílias passaram a ter uma alternativa segura para tratar a água a ser tomada. "Antes, a garrafa ficava com aquela borra amarela. A do filtro não, vem bem limpinha", conta a agricultora Ariane Natielly de Souza Batista.
Mesmo com os filtros, Valter sabia que o problema de tratamento de água não estava resolvido. Tradicionalmente, as moradias locais contavam apenas com um tipo rústico de banheiro, chamado de fossa negra, composta de um buraco cavado no chão cercado por uma "casinha" de palha. Além do alto potencial contaminante - já que coloca em risco o lençol freático, de onde vem o abastecimento das 70 casas e da escola -, quando ela enche é preciso abrir outra.
Em busca de alternativas, Valter conheceu as fossas biológicas (veja acima). Depois de explicar o funcionamento delas à turma, toda a comunidade foi reunida para um mutirão. As instituições parceiras cederam o material e os alunos instruíram os moradores. Também visitaram as casas próximas à escola para explicar sobre o uso. Ao todo, foram instaladas 50 fossas biológicas. "É a primeira vez que eu tenho banheiro em casa. Nós não conseguiríamos sem os alunos e o professor", diz a agricultora Iranici Monteiro de Jesus.
Com o projeto, a turma teve acesso ao saber aplicado à prática e transformou a realidade local. "Esse trabalho cria uma conexão para os alunos entre o que se aprende na escola e o que se vive fora dela, dando sentido ao esforço intelectual dispensado durante o estudo", elogia Luciana. "Depois da sequência, eles passaram a olhar para o entorno e ver as necessidades da comunidade", comemora o diretor Walcy Soares Batista.
Fotos: Pedro Coelho. Ilustração: Camaleão
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