Práticas reais de jogos virtuais
Ao transpor games para a quadra, a classe elabora estratégias e movimenta o corpo
PorFernanda SallaAnna Rachel FerreiraLucia de Menezes
03/09/2015
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Jornalismo
PorFernanda SallaAnna Rachel FerreiraLucia de Menezes
03/09/2015
Imagine a seguinte cena: um garoto sentado, o tronco inclinado para a frente e os olhos fixos em direção a uma tela que projeta cores diversas no rosto dele. Os braços semiflexionados e os dedos das mãos apertando botões insistentemente. Já dá para saber o que ele está fazendo? No computador, celular, tablet ou videogame, os jogos eletrônicos despertam o interesse de crianças e adolescentes. Desde que surgiram, nos anos 1960, aparecem novas atualizações e modalidades para manter a garotada imersa no ambiente virtual, com os dedinhos (só eles) em ação. Apesar de a prática parecer algo discrepante da Educação Física, o trabalho com esse tipo de atividade está contemplado nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) da disciplina e pode ser usado a favor do desenvolvimento cultural e corporal. "Os jogos virtuais fazem parte do cotidiano dos alunos, e a escola precisa estabelecer um diálogo com essa vivência deles", diz Marcelo Barros Jabu, coautor dos PCN da área.
Muitas das estratégias utilizadas pelos jogadores e vários dos gestos praticados pelos personagens nos games podem ser transpostos para o mundo real, o que gera uma gama de possibilidades pedagógicas. O professor Pedro Henrique Carbone Vidotti aproveitou essa oportunidade e incluiu o tema nas aulas do 8º ano da EM Professora Ruth Correia Leite Cardoso, em Ilhabela, a 210 quilômetros de São Paulo.
A sequência começou com uma discussão sobre o que caracteriza os games. Os estudantes disseram que eles são eletrônicos e o praticante se torna uma figura dentro de uma realidade virtual. Em seguida, a turma listou seus preferidos e entre eles apareceram Pac-Man, Angry Birds e Mario Bros. Essa conversa pode continuar, debatendo as ações utilizadas para ter sucesso e se jogam sozinhos ou acompanhados. Tudo isso contribui com as adaptações que serão feitas.
Pedro pediu para os estudantes que levassem seus jogos virtuais e aparelhos para a aula. Ele também disponibilizou televisores, projetores e computadores, alguns emprestados e outros da escola, para que todos experimentassem. "Havia jovens que não tinham o hábito de jogar. Outros não conheciam muitos games. Essa etapa foi importante para que todos se familiarizassem com eles e tivessem repertório para realizar a etapa seguinte", conta ele.
Hora de sair do virtual
Para que a garotada entendesse a proposta, o professor fez a primeira trasformação e escolheu para isso o Angry Birds. Popular em tablets e celulares, o jogo consiste em lançar passarinhos de tamanhos diferentes com um estilingue para derrubar a proteção dos porcos verdes, que haviam roubado os ovos deles. Na quadra, duas câmaras de bicicleta presas às traves do gol e unidas por uma camiseta formaram um estilingue. A bola de handebol fez as vezes das aves e era lançada em direção a garrafas PET - no lugar dos porcos -, sobre mesas e cadeiras. Depois de algumas jogadas, a altura dos alvos foi modificada.
Segundo Caio Costa, coordenador do Instituto Esporte e Educação, em São Paulo, é interessante que os estudantes reflitam sobre as duas versões e levantem as alterações que foram necessárias. Nessa conversa, o docente pode questionar, por exemplo, se as características principais do jogo eletrônico foram mantidas e se as ações usadas na tela e na quadra são iguais. "Além de levar os meninos e as meninas para o movimento, as adaptações permitem que eles trabalhem habilidades de comparação e estratégia", explica.
Depois da atividade inicial na quadra, a turma do professor Pedro foi dividida em grupos de cinco alunos e cada um teve de criar uma brincadeira com base em um jogo eletrônico. Eles deveriam levar em conta os elementos do original, a presença de desafios e de tomadas de decisão, além da quantidade de pessoas envolvidas. Entre os games escolhidos pelos adolescentes estavam Pac-Man, Mortal Kombat e Resident Evil. Os estudantes planejaram o ambiente, as regras e as estratégias das partidas realizadas fora da tela.
Nem todos os games têm as características necessárias para possibilitar uma riqueza de movimentos e de planejamento na recriação. O Fifa Soccer, por exemplo, já é baseado em um jogo de futebol de campo regular. Quando isso ocorre, os estudantes devem verificar se há aspectos adicionados ao virtual que podem ser incluídos à versão adaptada por eles. Se ainda assim não conseguirem algo diferente, talvez essa não seja uma boa escolha para esse tipo de trabalho e a garotada deve eleger outro produto para a transposição. O monitoramento dos grupos pelo professor é importante para garantir que esses elementos estejam presentes nas propostas desenvolvidas por eles e gerem aprendizados táticos e motores.
No caso do Pac-Man, assim como existe na versão eletrônica, o grupo construiu um labirinto com cadeiras. Nelas, foram amarradas fitas para simbolizar as bolinhas que são comidas no digital. Um aluno era o comedor e outros três faziam os fantasminhas que, quando o atingiam, tiravam dele uma vida. A cada apito do professor, o jogo invertia: ora o comedor caçava os fantasmas ora ele era o perseguido. O objetivo era sair do labirinto sem ser pego e com o maior número de fitinhas. Nessa adaptação, foram trabalhadas a corrida, o desvio e a agilidade de decisão.
Ao transpor o Mortal Kombat - uma competição de luta -, houve a preocupação com a segurança. "Perguntei à classe como não machucar o colega", diz Pedro. Os alunos sugeriram que os lutadores tivessem três pregadores presos à camiseta, que eram as vidas de cada um. Em vez de acertar golpes, ganhava quem retirasse todos os prendedores do oponente. "O contato físico foi excluído, mas competências de defesa e ataque, que caracterizam as lutas, foram mantidas", aponta Caio. Na versão de Resident Evil - em que humanos fogem de zumbis e os matam -, os jovens tinham de atravessar a quadra, pegar uma mochila e voltar sem ser tocados pelos mortos-vivos. Para que os zumbis andassem devagar (como no virtual), os pés dos que interpretavam esses personagens foram amarrados.
Ao avaliar a evolução dos alunos, vale fazer uma roda de conversa e questionar que alterações funcionaram e quais não e por quê. Não se trata de eleger a melhor, mas analisar criticamente as escolhas feitas. Ao fim do trabalho, os dedos ligeiros da garotada ganharam a companhia de outros movimentos, como correr e lançar, além de uma sensação bem real de satisfação. "Ao vivo, eu ficava ainda mais empolgado com as vitórias", conta o aluno Luciano Fabrizio Blandi, 14 anos.
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