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Jornalismo

Conhecer a cultura. Soltar a imaginação

O ensino da área se consolida nas escolas sobre o tripé apreciação, produção e reflexão

PorBeatriz Santomauro

17/10/2016

Durante muitos anos, o ensino de Arte se resumiu a tarefas pouco criativas e marcadamente repetitivas. Desvalorizadas na grade curricular, as aulas dificilmente tinham continuidade ao longo do ano letivo. "As atividades iam desde ligar pontos até copiar formas geométricas. A criança não era considerada uma produtora e, por isso, cabia ao professor dirigir seu trabalho e demonstrar o que deveria ser feito", afirma Rosa Iavelberg, diretora do Centro Universitário Maria Antonia, em São Paulo, e co-autora dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) sobre a disciplina.

Nas últimas duas décadas, essa situação vem mudando nas escolas brasileiras. Hoje, a tendência que guia a área é a chamada sociointeracionista, que prega a mistura de produção, reflexão e apreciação de obras artísticas. Como defendem os próprios PCNs, é papel da escola "ensinar a produção histórica e social da arte e, ao mesmo tempo, garantir ao aluno a liberdade de imaginar e edificar propostas artísticas pessoais ou grupais com base em intenções próprias".

Infelizmente, ainda há professores trabalhando na chamada metodologia tradicional, que supervaloriza os exercícios mecânicos e as cópias, por acreditar que a repetição leva os alunos a "fixar modelos". Sob essa ótica, o mais importante é o produto final (e ele é mais bem avaliado quanto mais próximo for do original). É por isso que, além de desenhos pré-preparados, tantas crianças tenham sido obrigadas ao longo dos tempos a apenas memorizar textos teatrais e partituras de música para se apresentar em datas comemorativas - sem falar no treino exaustivo e mecânico de habilidades manuais em atividades de tecelagem e bordado.

Só nos anos 1960, com o surgimento do movimento da Escola Nova, ideias modernizadoras começaram a influenciar as aulas de Arte. Na época, a proposta era romper totalmente com o jeito anterior de trabalhar. Segundo esse modelo, batizado de Escola Espontaneísta (ou Livre Expressão), os professores forneciam materiais, espaço e estrutura para os alunos criarem e não interferiam durante a produção. Tudo para permitir que a arte surgisse naturalmente nos estudantes, de dentro para fora e sem orientações que pudessem atrapalhar esse processo. "Achava-se que a criança tinha uma arte própria e o adulto não deveria interferir", lembra Rosa (saiba mais sobre a evolução do ensino da Arte na linha do tempo, abaixo).

 

A evolução dos conceitos que orientam as aulas

Alguns anos mais tarde, novas concepções foram sendo construídas, abrindo espaço para a consolidação da perspectiva sociointeracionista, a mais indicada pelos especialistas hoje por permitir que crianças e jovens não apenas conheçam as manifestações culturais da humanidade e da sociedade em que estão inseridas mas também soltem a imaginação e desenvolvam a criatividade, utilizando todos os equipamentos e ferramentas à sua disposição. Na década de 1990, duas importantes inovações pavimentaram o caminho para o modelo atual: na Espanha, Fernando Hernández defendeu o estudo da chamada cultura visual (muito além das artes visuais clássicas, era necessário, segundo ele, trabalhar com videoclipes, internet, histórias em quadrinhos, objetos populares e da cultura de massa, rótulos e outdoors nas salas de aula).

No Brasil, Ana Mae Barbosa formulou a metodologia da proposta triangular (inspirada em ideias norte-americanas e inglesas, recuperou conteúdos e objetivos que tinham sido abandonados pela escola espontaneísta). Ela mostrou que o professor deveria usar o seguinte tripé em classe: o fazer artístico, a história da arte e a leitura de obras (conheça um pouco mais sobre as principais metodologias do ensino da disciplina no quadro abaixo).

Esse tripé original é considerado uma "matriz" dos eixos de aprendizagem que dominam o ensino atualmente: a produção, a apreciação artística e a reflexão. O "novo" tripé ajuda a desmanchar alguns dos mitos que rondam as salas de Arte nas escolas brasileiras, como a confusão entre a necessidade de ter muito material e estrutura para obter uma resposta "de qualidade" dos alunos (leia mais no quadro abaixo).

Na perspectiva sociointeracionista, o fazer artístico (produção) permite que o aluno exercite e explore diversas formas de expressão. A análise das produções (apreciação) é o caminho para estabelecer ligações com o que já sabe e o pensar sobre a história daquele objeto de estudo (reflexão) é a forma de compreender os períodos e modelos produtivos.

 

As quatro grandes linguagens artísticas

Segundo os PCNs, as aulas de Arte devem contemplar atividades de quatro linguagens: dança, artes visuais, teatro e música. As diferentes manifestações culturais (das mais clássicas às mais vanguardistas) merecem ser analisadas como resultado de um conjunto de valores e uma maneira de os seres humanos interagirem com o mundo em que vivem (ou viveram). No dia-a-dia, a prática tem de combinar simultaneamente os três eixos citados anteriormente para que todos os estudantes avancem (leia no quadro abaixo entrevista com uma professora que faz isso em sua escola, no interior de São Paulo).

"Esses três momentos não são estanques. Mesmo que o trabalho dê ênfase mais para um agora e mais para outro daqui a pouco, é importante que fique claro que todos são interligados, fazem parte de um processo", diz Marisa Szpigel, coordenadora de Arte na Escola da Vila, em São Paulo. Segundo ela, é interessante variar as maneiras de estudar os conteúdos e programar as atividades ao longo do ano. "Assim como na prática artística há um pensar fazendo e um fazer pensando, quando ensinamos, a ação mobiliza para a reflexão e a reflexão transforma a ação."

 

Produção é chance para o aluno desenvolver percurso próprio

A etapa da produção é a oportunidade de o aluno testar, conhecer e escolher diferentes cores, formatos, gestos, movimentos corporais e sons. É o momento de mostrar suas escolhas, mudar de ideia, decidir novamente. "O estudante deve ter a chance de experimentar com diferentes formas e procedimentos para desenvolver um percurso próprio", comenta Rosa Iavelberg. "O caminho é favorecer a criação com propostas instigantes. Assim, a produção dialoga com diferentes referências e alimenta a poética pessoal", diz Mirian Celeste Martins, do programa de pós-graduação em Educação, Arte e História da Cultura da Universidade Mackenzie, na capital paulista.

Durante as atividades de apreciação, a turma aumenta o repertório. Ao ampliar a variedade de produções que conhece e analisar, o aluno estabelece ligações com o que já sabe e "constrói conhecimentos", conforme comenta Marisa Szpigel. Essa parte do trabalho é feita em visitas a instituições culturais, teatros e espaços para shows e outros tipos de apresentações artísticas que permitam desenvolver o pensamento crítico e perceber como a arte afeta cada um.

Já a fase da reflexão é uma espécie de complemento da apreciação. A diferença é sutil: ela tem lugar quando o estudante analisa o que viu e ouviu. Ao saber que aquele objeto artístico foi criado em determinado contexto e que faz parte de uma história, ele se torna capaz de entender os significados que lhe são atribuídos. Daí a importância das discussões em classe (e da leitura de críticas e resenhas) para todos observarem que há outras formas de entender a arte. Registros escritos também ajudam a expressão de ideias.

Compreender esse percurso é essencial para permitir que os estudantes progridam cada vez mais (confira no quadro abaixo as expectativas de aprendizagem definidas pela prefeitura de São Paulo). Entretanto, mais do que seguir cegamente uma ou outra perspectiva de ensino, o que realmente importa é ser coerente com as propostas de trabalho e com as atividades passadas para a turma durante o ano letivo. "Há professores que fazem um ótimo trabalho de livre expressão, por exemplo. O problema é quando não há uma intencionalidade clara", destaca Marisa.

Mitos pedagógicos

  • Reprodução e releitura Mostrar uma obra de arte, discutir suas características e pedir que cada aluno faça o mesmo desenho no caderno não é propor uma releitura. Isso é reprodução ou cópia. Na releitura, parte-se de uma obra para criar outro trabalho (ou seja, o estudante transforma e interpreta).
  • Sem material, não dá Qualidade não é quantidade. "Um trabalho que garanta uma aprendizagem significativa para os alunos não depende de riqueza de material, mas de conteúdo, estratégia e propostas que ofereçam oportunidades de participação", argumenta Karen Greif Amar, da Escola da Vila, em São Paulo.
  • Arte estimula criatividade A Arte desenvolve a criatividade - e outras habilidades - se os conteúdos são aprendidos. Mas o mesmo ocorre quando o aluno levanta uma hipótese na aula de Ciências ou pensa numa estratégia para um problema em Matemática. A criatividade independe da disciplina.

O ensino de Arte no Brasil

  • 1816 Durante o governo de dom João VI, chega ao Rio de Janeiro a Missão Artística Francesa e é criada a Academia Imperial de Belas-Artes. Seguindo modelos europeus, é instalado oficialmente o ensino de Arte nas escolas.
  • 1900 Até o início do século 20, o ensino do desenho é visto como uma preparação para o trabalho em fábricas e serviços artesanais. São valorizados o traço, a repetição de modelos e o desenho geométrico.
  • 1922 Apesar da efervescência das manifestações da Semana de Arte Moderna, o ensino segue as tendências da escola tradicional, que defende a necessidade de copiar modelos para treinar habilidades manuais.
  • 1930 O compositor Heitor Villa-Lobos, no governo de Getúlio Vargas, institui o projeto de canto orfeônico nas escolas. São formados corais, que se desenvolvem pela memorização de letras de músicas de caráter folclórico e cívico.
  • 1935 O escritor Mario de Andrade, então diretor do Departamento de Cultura do município de São Paulo, promove um concurso de desenho para crianças com tema livre. O ganhador recebe uma quantia em dinheiro.
  • 1948 É criada no Rio de Janeiro a primeira "Escolinha de Arte", com a intenção de propor atividades para o aluno desenvolver a autoexpressão e a prática. Em 1971, chega a 32 o número de instituições particulares desse tipo no país.
  • 1960 As experimentações que marcam a sociedade, como o movimento da bossa nova, influenciam o ensino de Arte nas escolas de todo o país. É a época da tendência da livre expressão se expandir pelas redes de ensino.
  • 1971 Segundo a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), a Educação Artística (que inclui artes plásticas, educação musical e artes cênicas) passa a fazer parte do currículo escolar do Ensino Fundamental e Médio.
  • 1973 Criação dos primeiros cursos de licenciatura em Arte, com dois anos de duração e voltados à formação de professores capazes de lecionar música, teatro, artes visuais, desenho, dança e desenho geométrico.
  • 1989 Desde 1982 desenvolvendo pesquisas sobre três ideias (fazer, ler imagens e estudar a história da arte), Ana Mae Barbosa cria a proposta triangular, que inova ao colocar obras como referência para os alunos.
  • 1996 A LDB passa a considerar a Arte como disciplina obrigatória da Educação Básica. Os Parâmetros Curriculares Nacionais definem que ela é composta de quatro linguagens: artes visuais, dança, música e teatro.

Fonte Parâmetros Curriculares Nacionais, Metodologia do Ensino da Arte, Maria Heloísa C. de T. Ferraz e Maria. F. de Rezende e Fusari, e Para Gostar de Aprender Arte: Sala de Aula e Formação de Professores, Rosa Iavelberg

Metodologias mais comuns

O ensino de Arte passou por muitas transformações ao longo da história. Confira as principais tendências da área.

  • Tradicional Unânime na maneira de ensinar desde o fim do século 19 até a década de 1950. Ainda está presente em muitas escolas.

Foco Aprendizado de técnicas e desenvolvimento de habilidades manuais, coordenação motora e precisão de movimentos para o preparo de um produto final.
Estratégia de ensino Repetição de atividades, cópia de modelos e memorização. O professor adota a postura de transmissor do conhecimento. Ao aluno, basta absorver o que é ensinado sem espaço para a contestação. A turma era bem avaliada quando conseguia reproduzir com rigor as obras de artistas consagrados.

  • Livre expressão Nasceu por volta de 1960 sob a influência das ideias do movimento da Escola Nova.

Foco O que importa não é o resultado, mas o processo e, principalmente, a experiência. Há a valorização do desenvolvimento criador e da iniciativa do aluno durante as atividades em classe.
Estratégia de ensino Desenho livre e uso variado de materiais. Não há certo ou errado na maneira de fazer de cada estudante. Ao professor, não cabe corrigir ou orientar os trabalhos nem mesmo utilizar outras produções artísticas para influenciar a turma. A ideia é que o estudante exponha suas inspirações internas.

  • Sociointeracionista É a tendência atual para o ensino da disciplina. A ideia de considerar a relação da cultura com os conhecimentos do aluno e as produções artísticas surgiu na década de 1980.

Foco Favorecer a formação do aluno por meio do ensino das quatro linguagens de Arte: dança, artes visuais, música e teatro.
Estratégia de ensino A experiência do aluno e o saber trazido de fora da escola são considerados importantes e o professor deve fazer a intermediação entre eles. O ensino é baseado em três eixos interligados: produção (fazer e desenvolver um percurso de criação), apreciação (interpretar obras artísticas) e reflexão sobre a arte (contextualizar e pesquisar). Apesar dessa divisão, não deve haver uma ordem rígida ou uma priorização desses elementos ao longo do ano letivo.

3 perguntas | Maria José Falcão

Professora de 6º e 9º anos do Ensino Fundamental e dos três anos do Ensino Médio na EE Adherbal de Paula Ferreira, em Itapetininga, a 174 quilômetros de São Paulo.

Qual foi o modelo de ensino que guiou a sua formação?
Sou formada há 22 anos em Artes Plásticas. Aprendi a ensinar pelas ideias que eram de vanguarda na época. Mas até hoje são poucos os que aplicam isso na prática. O contato com a obra de arte é primordial, além da produção e da contextualização. Sei que é essencial fazer a apreciação das obras e também do trabalho dos estudantes.

Como foi seu início na carreira?
Todos os meus colegas ensinavam da maneira tradicional. As aulas eram reduzidas à preparação de atividades em datas comemorativas e à pintura de desenhos mimeografados. O que eu aprendi na faculdade estava distante do que eu via na escola.

Foi fácil mudar essa situação?
Aos poucos, mostrei a importância de promover a criação feita pelos alunos, o contato com outras obras e o estudo do contexto da produção. Fui malvista, mas hoje outros docentes comungam minhas propostas.

Expectativas de aprendizagem

As orientações curriculares da prefeitura de São Paulo recomendam, entre outros itens, que ao fim do 5º ano os alunos sejam capazes de:

  • Reconhecer em paisagens naturais e artificiais, seres e objetos características expressivas das artes visuais e musicais.
  • Reconhecer diferentes ritmos musicais.
  • Experimentar, selecionar e utilizar diversos suportes, materiais e técnicas.
  • Criar manifestações e produções das artes visuais partindo de estímulos diversos.
  • Manipular objetos e explorar espaços variados a fim de conhecer sua forma, textura, temperatura, dimensão etc., interessando-se em agir sobre eles.
  • Criar diferentes gestos com base em danças vivenciadas, compreendendo a possibilidade de transformação da expressão corporal.
  • Improvisar cenas teatrais com os colegas, integrando-se com eles, sabendo ouvir e esperar a hora de falar.
  • Compreender que as manifestações e produções culturais fazem parte do patrimônio cultural das pessoas.


O documento prevê ainda que os estudantes, ao fim do 9º ano, saibam:

  • Perceber as pequenas variações dos elementos da linguagem visual, tais como tons e semitons das cores, as diferenças de textura e forma etc.
  • Valorizar o(s) autor(es) dos objetos culturais, intérpretes das músicas e canções apreciadas, conhecendo sua biografia e suas principais obras.
  • Produzir objetos culturais visuais, individualmente e em grupo, utilizando suportes, materiais e técnicas variados.
  • Reconhecer diferentes ritmos musicais.
  • Apreciar peças teatrais da comunidade e pertencentes ao contexto jovem
  • Criar e construir cenas que contenham enredo/história/conflito dramático, personagens/diálogos, local e ação dramática definidos.

Quer saber mais?

Contatos


Bibliografia

  • A Educação do Olhar no Ensino das Artes, Analice Dutra Pillar (org.), 208 págs., Ed. Mediação, tel. (51) 3330-8105, 39 reais
  • Desenho Cultivado da Criança: Prática e Formação de Educadores, Rosa Iavelberg, 112 págs., Ed. Zouk, tel. (51) 3024-7554, 23 reais
  • Didática de Ensino de Arte: a Língua do Mundo, Mirian Celeste Martins e outros, 200 págs., Ed. FTD, tel. (11) 3611-3055, 76,50 reais
  • Inquietações e Mudanças no Ensino da Arte, Ana Mae Barbosa (org.), 184 págs., Ed. Cortez, tel. (11) 3611-9616, 31 reais
  • Metodologia do Ensino da Arte, Maria Heloísa C. de T. Ferraz e Maria F. de Rezende e Fusari, 136 págs., Ed. Cortez, 38 reais
  • Para Gostar de Aprender Arte: Sala de Aula e Formação de Professores, Rosa Iavelberg, 128 págs., Ed. Artmed, tel. 0800-703-3444, 42 reais


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