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Jornalismo

A escola e a vida nos rios do Amazonas

Os desafios ainda são grandes, mas modelos como a alternância e a Educação a distância levam aulas a comunidades ribeirinhas

PorAna Ligia Scachetti

01/08/2013

Na EM Victor Civita, em Novo Aripuanã, as turmas dos anos finais do Ensino Fundamental <i>(na foto)</i> e da EJA se alternam e ficam 15 dias direto na escola. O transporte diário dos alunos, que vêm de comunidades do Rio Mariepaua, é inviável. Foto: Manuela Novais A escola que é casa Na EM Victor Civita, em Novo Aripuanã, as turmas dos anos finais do Ensino Fundamental (na foto) e da EJA se alternam e ficam 15 dias direto na escola. O transporte diário dos alunos, que vêm de comunidades do Rio Mariepaua, é inviável A professora Mayara usa a criatividade para driblar a falta de materiais. Para dar uma aula sobre os ângulos, por exemplo, ela divide a turma em grupos e distribui os cinco transferidores que possui. Foto: Manuela Novais Matemática em dia A professora Mayara usa a criatividade para driblar a falta de materiais. Para dar uma aula sobre os ângulos, por exemplo, ela divide a turma em grupos e distribui os cinco transferidores que possui Na EM Victor Civita, um grupo de alunos apoia o gestor Lemos <i>(no centro)</i> na comunicação com os demais estudantes. Dificuldades dos jovens, como a falta que sentem dos pais, são discutidas entre eles antes de o assunto ser levado à equipe escolar. Manuela Novais Parceria Na EM Victor Civita, um grupo de alunos apoia o gestor Lemos (no centro) na comunicação com os demais estudantes. Dificuldades dos jovens, como a falta que sentem dos pais, são discutidas entre eles antes de o assunto ser levado à equipe escolar A disciplina faz parte do aprendizado. A cada dia, um grupo de adolescentes acompanhado por um professor tem de limpar o alojamento, tomado de redes, e as outras dependências da escola . Manuela Novais Internato na selva A disciplina faz parte do aprendizado. A cada dia, um grupo de adolescentes acompanhado por um professor tem de limpar o alojamento, tomado de redes, e as outras dependências da escola O hábito de ler é incentivado na classe multisseriada. Apesar de haver poucos livros nos dois cantinhos, a turma é ágil na escolha da obra preferida. Manuela Novais Canto da leitura O hábito de ler é incentivado na classe multisseriada. Apesar de haver poucos livros nos dois cantinhos, a turma é ágil na escolha da obra preferida Na Escola Nova Jerusalém, entre a comunidade do Abelha e a sede de Novo Aripuanã, o professor Santos trabalha sem energia elétrica e dorme na casa de um dos moradores da  vizinhança. Nas férias escolares, ele vai iniciar a graduação.Manuela Novais Multisseriadas Na Escola Nova Jerusalém, entre a comunidade do Abelha e a sede de Novo Aripuanã, o professor Santos trabalha sem energia elétrica e dorme na casa de um dos moradores da vizinhança. Nas férias escolares, ele vai iniciar a graduação Vera é professora presencial da turma que assiste às aulas pela internet, na comunidade do Tumbira. Ela acompanha a realização das atividades e garante que aconteçam mesmo quando há problemas de conexão, já que tem os arquivos gravados. Manuela Novais Mediação tecnológica Vera é professora presencial da turma que assiste às aulas pela internet, na comunidade do Tumbira. Ela acompanha a realização das atividades e garante que aconteçam mesmo quando há problemas de conexão, já que tem os arquivos gravados

"Eu não tive a oportunidade de estudar, mas sei que, hoje, o que tem valor é a sabedoria." Com essa certeza, João Paes Brazão, presidente da comunidade do Abelha, às margens do Rio Mariepaua, conseguiu que a prefeitura de Novo Aripuanã, a 228 quilômetros de Manaus, doasse uma área para a construção da EM Victor Civita. A quase cinco horas de barco da sede do município, a escola oferece, desde 2012, aulas do 6º ao 9º ano regulares (atualmente só há alunos de 6º e 7º) e de Educação de Jovens e Adultos (EJA).

Os alunos moram ao longo do rio. Ir e voltar todo dia é inviável por causa da distância. Por isso, ficam 15 dias na instituição e, depois, igual período em casa, com tarefas para executar. Quando a turma do Ensino Fundamental está com a família, a da EJA ocupa as salas. A alternância funciona de dezembro a agosto, quando o rio seca, dificultando o transporte. Os professores, então, visitam as comunidades para acompanhar as lições.

Quando estão na escola, os alunos acordam por volta das 6 horas. Diariamente, eles são responsáveis por lavar suas roupas e varrer os alojamentos e as classes. Para organizar essas e outras tarefas, o gestor da escola, José Ruy Nunes Lemos, dividiu todos em grupos, liderados pelos professores. Lemos também criou o "apoio técnico", uma comissão de cinco adolescentes que fazem a ponte entre ele e os demais jovens. Valderlene Correa Rodrigues, 17 anos, do 7º ano, é uma das integrantes. "É melhor que os alunos falem primeiro com a gente, pois nos entendemos", diz.

As aulas de Língua Portuguesa, Matemática, História, Geografia, Religião, Inglês, Ciências, Educação Ambiental, Arte e Educação Física ocorrem das 7 às 17 horas, com intervalos para as refeições. Depois, há espaço para o futebol e o banho de rio, mas às 21h45, todos têm de estar na rede, nos alojamentos feminino e masculino.

No Ensino Fundamental, há estudantes de 11 a 17 anos. Muitos são irmãos ou primos, mas a distância dos pais causa sofrimento. "Eu chorava muito", lembra Lailson Palheta, 14 anos, do 7º ano. Até 2011, esses adolescentes estudaram em classes multisseriadas onde viviam. Depois dos anos iniciais, teriam de ir para a cidade para ter aula, mas em muitos casos isso não era possível. Por conta disso, Lailson fez o 5º ano duas vezes para não ficar sem estudar.

Os docentes - quatro no Ensino Fundamental e três na EJA - também passam 15 dias longe da família, em casas destinadas à equipe, e dispõem de poucos recursos para as aulas. Há livros didáticos apenas para os professores e uma biblioteca pequena montada com doações. Para Mayara Costa Martins, que é formada em Matemática e dá aulas dessa disciplina e de Inglês, apesar da saudade, vale a pena ficar tanto tempo longe do marido e da filha de 10 anos, já que ganha um salário maior do que se lecionasse na cidade. Além disso, na escola em que trabalhava antes não havia alojamento e ela tinha de ficar na casa de um morador da comunidade. "A estrutura agora é melhor, o que facilita o trabalho", diz.

A EM Victor Civita pertence à rede de Novo Aripuanã, mas foi construída pela Fundação Amazonas Sustentável (FAS), que atua em 15 unidades de conservação no estado e criou escolas em sete delas. A gestão e os gastos são compartilhados com o poder público. José Camilo Ramos de Souza, formador de professores na Universidade Estadual do Amazonas (UEA), ressalta que os benefícios da parceria são importantes, mas localizados. "As experiências diferem das do resto do estado", avalia. Para ele, faltam investimentos públicos duradouros na Educação. Além disso, a formação de docentes não tem atendido à demanda, apesar do esforço das universidades. Assim, surgem situações como a de Mayara, que leciona uma disciplina para a qual não é licenciada.

Valderlene, 17, aluna da EM Victor Civita. Foto: Manuela Novais

"Antes de vir para cá, fiquei três anos sem estudar. Apesar disso, não achei difícil retomar as aulas. Foi uma felicidade! No começo, era cansativo (estudar o dia todo), mas já nos acostumamos."
 Valderlene, 17, aluna da EM Victor Civita

No meio do caminho, escolas fechadas

No trecho do rio que liga a comunidade do Abelha à sede do município há várias outras escolas. Em quase todas existe uma classe municipal, sem banheiro e muitas vezes sem energia. Nelas, um educador leciona da Educação Infantil ao 5º ano. De cinco áreas visitadas por NOVA ESCOLA, quatro tinham a escola fechada. Na Escola Nova Jerusalém, a aula acontecia sob a responsabilidade de Hudson Alves dos Santos, que tem 16 alunos de 4 a 17 anos. Na sala com dois cantinhos de leitura e vários cartazes, ele desenvolve atividades para a etapa em que cada um está. Em uma aula de Matemática, por exemplo, alguns somavam unidades e outros multiplicavam centenas.

O Censo Escolar de 2011 indica que o Amazonas tem 1.566 escolas urbanas e 4.021 rurais. Dessas últimas, 1.392 não têm energia. Secretária de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão do Ministério da Educação (MEC), Macaé Maria Evaristo dos Santos diz que é necessário fortalecer as pequenas escolas rurais com o georreferenciamento das unidades (que permite localizá-las), a destinação de recursos para reformas e construção de alojamentos, o fornecimento de energia e a formação dos docentes.

Brazão, presidente da comunidade do Abelha. Foto: Manuela Novais

"Nossa comunidade tem só três famílias, mas atende quase 90 alunos. Com isso, conseguimos que meus filhos e netos e os dos outros tenham escola." 
Brazão, presidente da comunidade do Abelha

Pela internet, a mesma aula para todos

Ainda no Amazonas, mas agora no Rio Negro, outra escola construída pela FAS em 2010 é a EE Tomas Lovejoy, na comunidade do Tumbira, que pertence a Iranduba, a 9 quilômetros de Manaus (duas horas de barco). Nela, há 64 alunos do 6º ao 9º ano e do Ensino Médio, integrados ao sistema estadual de mediação tecnológica.

Vera Lúcia Garrido da Silva é professora do 7º ano. Ao lado da mesa dela, a TV conectada à internet transmite as aulas ao vivo. Ao fim de cada sessão, as classes que acompanham a transmissão em todo o estado podem se inscrever para apresentar suas conclusões para as demais pela webcam. Os conteúdos são apresentados por módulos que duram várias semanas e uma disciplina só é iniciada quando a anterior estiver concluída. Para João Victor Veloso, 14 anos, do 9º ano, essa é a maior diferença em relação ao que conhecia.



Rossieli Soares da Silva, secretário estadual de Educação, explica que esse sistema tornou possível atender, em regiões remotas, à demanda por aulas com professores especialistas. "O docente que está no estúdio expõe o conteúdo e o que está na classe acompanha as tarefas", diz.

Uma parte dos estudantes da EE Tomas Lovejoy vive em áreas vizinhas. E, como às vezes é impossível se locomover de barco, há um alojamento na escola. "Na seca, alguns não conseguem chegar", comenta a gestora Inês Cristina Alencar. Essas dificuldades e a necessidade de se dedicar ao trabalho já causaram algumas desistências, mas Inês se esforça para resgatar todos os alunos.

Segundo o Censo Demográfico de 2010, a Região Norte é a que tem mais crianças de 6 a 14 anos fora da escola, com um índice de 6,1%. E, nas áreas rurais, a porcentagem sobe para 10,6%. As histórias desta reportagem mostram que o esforço de instituições públicas e privadas, docentes, gestores, pais e alunos precisa continuar para ampliar o acesso à Educação nas curvas desses rios.

Agradecimentos Fundação Amazonas Sustentável e área de Relações Corporativas do Grupo Abril.

Inês, gestora da
EE Tomas Lovejoy. Foto: Manuela Novais

"Nossos alunos enfrentam temporais, animais e até piratas no rio. Poucos desistem, mas quando isso acontece vou até a casa e tento resgatar o estudante." 
Inês, gestora da EE Tomas Lovejoy

João Victor, 14, aluno da EE Tomas Lovejoy. Foto: Manuela Novais

"Em Manaus, minha sala era maior e tinha mais bagunça. Aqui são só dez alunos e o professor presencial nos acompanha. Sempre que tenho dúvidas, pergunto." 
João Victor, 14, aluno da EE Tomas Lovejoy

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