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Jornalismo

Meninos e meninas em situação de alta vulnerabilidade estão longe das salas de aula

Nas ruas de Fortaleza, adolescentes são explorados sexualmente em troca de dinheiro. Drawlio Joca
Nas ruas de Fortaleza, adolescentes são explorados sexualmente em troca de dinheiro

Toda criança deve, por lei, ingressar na pré-escola aos 4 anos para uma trajetória de Educação Básica que só termina aos 17, no fim do Ensino Médio. O direito, porém, não é realidade para milhares de meninos e meninas que estão fora da escola por diferentes tipos de exploração e violência. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) 2009, 40.470 crianças e adolescentes de 5 a 14 anos trabalham e não estudam. Para compor um retrato mais fiel do problema, a estatística oficial é insuficiente. Ela não inclui parte dos 611.961 indivíduos da mesma faixa etária que realizam atividade remunerada e, a rigor, estão matriculados na escola, mas têm desempenho ruim ou faltas constantes. Nem contabiliza os afazeres domésticos, as atividades informais e o enorme contingente de crianças e adolescentes explorados sexualmente. Por ser uma atividade ilícita, a exploração é órfã de informações precisas. Os registros mais utilizados vêm de ligações do Disque 100, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Como a denúncia não ocorre sempre que o crime é cometido, muita gente fica de fora.

Antônio* é morador da periferia de Fortaleza e filho de pais usuários de drogas. Passava fome quando, aos 11 anos, largou a escola para vender doces no sinal. Foi abordado no local por uma mulher que passou a procurá-lo e a lhe dar presentes e dinheiro em troca de sexo. A partir daí, o menino ingressou na exploração sexual e não voltou aos estudos. José* nasceu em outra periferia, a de Belém. O garoto foi abusado na infância. Na adolescência, tinha conflitos com o pai, que não aceitava sua homossexualidade. Teve dificuldades para progredir na 5ª série e deixou a escola. Aos 11, já era explorado sexualmente. Quando os pais se separaram, a mãe o deixou em um abrigo. Atualmente tenta reconstruir a vida, namora e participa de um projeto para elevar sua escolaridade. "Hoje eu não faria sexo por dinheiro, a não ser que não tivesse outra opção", conta.

Entre as possíveis causas da exploração sexual, a pobreza e a ausência de uma boa estrutura familiar se destacam. "Há casos em que a família procura o conselho tutelar para entregar a criança e dizer que não consegue educá-la", relata Monalisa Cardoso, coordenadora de projetos da ONG Amici di Bambini. "O conselho acaba vendo outros problemas reunidos, como alcoolismo e violência doméstica", explica ela.

O abuso sexual que surge em casa é entendido pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) como uma porta de entrada para a exploração.

Maria* foi abusada pelo pai na infância, deixou a escola na 3ª série do Ensino Fundamental e passou a morar na rua, onde foi prostituída. Viveu assim até os 13 anos, quando o Ministério Público (MP) tomou conhecimento do caso e a encaminhou para uma casa de acolhimento. Lá, ela encontrou dificuldades para se adaptar à rotina e teve crises de abstinência alcoólica. Com o tratamento químico, a melhora foi parcial. A garota, hoje com 17 anos, está casada e tem um filho, mas não conseguiu mais retomar os estudos.

O preconceito piora a questão ao considerar o envolvimento com a prostituição uma ação voluntária de quem é preguiçoso. Não raro, a violação de seus direitos não é compreendida pelas vítimas. "Algumas demoram para entender que eram exploradas, que o direito existe e um adulto, maior e responsável, agiu contra ela", conta Marisa Mohedano, assessora de projetos sociais do Vira Vida, do Serviço Social da Indústria (Sesi).

*Para preservar a identidade dos entrevistados, os nomes são fictícios.


Veja o depoimento da especialista em Educação Maria de Salete Silva:

Exploração via trabalho

Sem vaga na escola, Pedro* ajuda a mãe na feira e ganha para tomar conta de motos. Sérgio Ruiz
Sem vaga na escola, Pedro* ajuda a mãe na feira e ganha para tomar conta de motos

Outro tipo de violência que priva meninos e meninas da chance de estudar é o trabalho infantil, questão em que o papel da família também se destaca. Na zona rural, trabalhar desde cedo é cultural. É comum ajudar em casa, na lavoura ou no trato com os animais. Quem não faz nada é malvisto. Já nos centros urbanos, segundo Maria Cláudia Falcão, coordenadora do Programa Internacional para a Eliminação do Trabalho Infantil da OIT, os pais apoiam porque é um jeito de os filhos se ocuparem e complementarem a renda. "As políticas públicas para o setor são voltadas a quem vive na extrema pobreza, o que nem sempre é a realidade das cidades maiores, em que o jovem trabalha até para consumo próprio", diz.

Feira de Santana, a 116 quilômetros de Salvador, é o segundo município baiano com maior incidência de trabalho infantil, atrás apenas da capital do estado, segundo a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social. No Centro de Abastecimento, um mercado público da cidade, e nos arredores dele, crianças são vistas empurrando carrinhos de mão e vendendo produtos. Algumas, vestidas com o uniforme escolar, fazem jornada dupla, que atrapalha a aprendizagem. Pedro* tem 10 anos e chegou à cidade com a mãe, vindo da Paraíba. Ela trabalha na feira e ele a ajuda, além de cuidar das motos estacionadas no local. O garoto quer estudar, mas não pode porque, quando chegou, não havia vaga para transferência.

Papel da escola e desafios a superar

A escola raramente se responsabiliza por trazer esses alunos de volta às salas de aula. O problema se agrava pela distância entre o ambiente escolar e a realidade deles. O conteúdo em classe tem uma abordagem que não condiz com a vida de quem já circula em ambientes mais adultos e é explorado sexualmente. Isso não significa que eles não queiram estudar, mas, como conta Monalisa, se sentem envergonhados pela distorção idade-série e não se identificam com os colegas.

Em relação ao trabalho infantil, há ainda a permissividade das famílias, que veem na atividade remunerada uma boa alternativa à criança ou ao adolescente, mesmo que apenas no curto prazo. Essa visão tem de ser desconstruída. "Se a escola é atrativa, tem qualidade e os pais percebem que manter os filhos no estudo permite um futuro melhor, a perspectiva muda", explica Maria Cláudia. Ela defende que o ideal seria nunca precisar trabalhar e poder ingressar em uma boa universidade, como fazem os jovens de classe média. Mas a lei prevê o trabalho a partir dos 14 anos na condição de aprendiz, com jornada reduzida, tempo para atividades escolares e fiscalização do Ministério do Trabalho (MT). O modelo é uma solução possível, mas se restringe aos centros urbanos, sem chegar à zona rural, onde o trabalho infantil é aceito pela família com naturalidade.

A importância da escola na solução da questão é inegável. Muitos professores e gestores, no entanto, não sabem como lidar com trajetórias problemáticas. Há vontade de ajudar, mas falta preparo para saber como e políticas concretas voltadas ao problema. "A universalização da Educação de qualidade terá de tratar de forma particular os grupos excluídos, desenhando políticas específicas. Assegurar o direito de aprender é melhorar as condições de ensino, acompanhar cada um e combater os problemas que colocam em risco a permanência na escola. As crianças sob risco de violência e exploração precisam de atenção redobrada", destaca Silvio Kaloustian, coordenador do escritório de São Paulo do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef).

*Para preservar a identidade dos entrevistados, os nomes são fictícios.

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