Vítimas da exploração e da violência são excluídos da escola
Retratos da Exclusão - Vítimas de exploração e violência
PorNOVA ESCOLACamila CamiloBruna Nicolielo
01/05/2014
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Jornalismo
PorNOVA ESCOLACamila CamiloBruna Nicolielo
01/05/2014
Meninos e meninas em situação de alta vulnerabilidade estão longe das salas de aula
Toda criança deve, por lei, ingressar na pré-escola aos 4 anos para uma trajetória de Educação Básica que só termina aos 17, no fim do Ensino Médio. O direito, porém, não é realidade para milhares de meninos e meninas que estão fora da escola por diferentes tipos de exploração e violência. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) 2009, 40.470 crianças e adolescentes de 5 a 14 anos trabalham e não estudam. Para compor um retrato mais fiel do problema, a estatística oficial é insuficiente. Ela não inclui parte dos 611.961 indivíduos da mesma faixa etária que realizam atividade remunerada e, a rigor, estão matriculados na escola, mas têm desempenho ruim ou faltas constantes. Nem contabiliza os afazeres domésticos, as atividades informais e o enorme contingente de crianças e adolescentes explorados sexualmente. Por ser uma atividade ilícita, a exploração é órfã de informações precisas. Os registros mais utilizados vêm de ligações do Disque 100, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Como a denúncia não ocorre sempre que o crime é cometido, muita gente fica de fora.
Antônio* é morador da periferia de Fortaleza e filho de pais usuários de drogas. Passava fome quando, aos 11 anos, largou a escola para vender doces no sinal. Foi abordado no local por uma mulher que passou a procurá-lo e a lhe dar presentes e dinheiro em troca de sexo. A partir daí, o menino ingressou na exploração sexual e não voltou aos estudos. José* nasceu em outra periferia, a de Belém. O garoto foi abusado na infância. Na adolescência, tinha conflitos com o pai, que não aceitava sua homossexualidade. Teve dificuldades para progredir na 5ª série e deixou a escola. Aos 11, já era explorado sexualmente. Quando os pais se separaram, a mãe o deixou em um abrigo. Atualmente tenta reconstruir a vida, namora e participa de um projeto para elevar sua escolaridade. "Hoje eu não faria sexo por dinheiro, a não ser que não tivesse outra opção", conta.
Entre as possíveis causas da exploração sexual, a pobreza e a ausência de uma boa estrutura familiar se destacam. "Há casos em que a família procura o conselho tutelar para entregar a criança e dizer que não consegue educá-la", relata Monalisa Cardoso, coordenadora de projetos da ONG Amici di Bambini. "O conselho acaba vendo outros problemas reunidos, como alcoolismo e violência doméstica", explica ela.
O abuso sexual que surge em casa é entendido pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) como uma porta de entrada para a exploração.
Maria* foi abusada pelo pai na infância, deixou a escola na 3ª série do Ensino Fundamental e passou a morar na rua, onde foi prostituída. Viveu assim até os 13 anos, quando o Ministério Público (MP) tomou conhecimento do caso e a encaminhou para uma casa de acolhimento. Lá, ela encontrou dificuldades para se adaptar à rotina e teve crises de abstinência alcoólica. Com o tratamento químico, a melhora foi parcial. A garota, hoje com 17 anos, está casada e tem um filho, mas não conseguiu mais retomar os estudos.
O preconceito piora a questão ao considerar o envolvimento com a prostituição uma ação voluntária de quem é preguiçoso. Não raro, a violação de seus direitos não é compreendida pelas vítimas. "Algumas demoram para entender que eram exploradas, que o direito existe e um adulto, maior e responsável, agiu contra ela", conta Marisa Mohedano, assessora de projetos sociais do Vira Vida, do Serviço Social da Indústria (Sesi).
*Para preservar a identidade dos entrevistados, os nomes são fictícios.
Veja o depoimento da especialista em Educação Maria de Salete Silva:
Exploração via trabalho
Outro tipo de violência que priva meninos e meninas da chance de estudar é o trabalho infantil, questão em que o papel da família também se destaca. Na zona rural, trabalhar desde cedo é cultural. É comum ajudar em casa, na lavoura ou no trato com os animais. Quem não faz nada é malvisto. Já nos centros urbanos, segundo Maria Cláudia Falcão, coordenadora do Programa Internacional para a Eliminação do Trabalho Infantil da OIT, os pais apoiam porque é um jeito de os filhos se ocuparem e complementarem a renda. "As políticas públicas para o setor são voltadas a quem vive na extrema pobreza, o que nem sempre é a realidade das cidades maiores, em que o jovem trabalha até para consumo próprio", diz.
Feira de Santana, a 116 quilômetros de Salvador, é o segundo município baiano com maior incidência de trabalho infantil, atrás apenas da capital do estado, segundo a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social. No Centro de Abastecimento, um mercado público da cidade, e nos arredores dele, crianças são vistas empurrando carrinhos de mão e vendendo produtos. Algumas, vestidas com o uniforme escolar, fazem jornada dupla, que atrapalha a aprendizagem. Pedro* tem 10 anos e chegou à cidade com a mãe, vindo da Paraíba. Ela trabalha na feira e ele a ajuda, além de cuidar das motos estacionadas no local. O garoto quer estudar, mas não pode porque, quando chegou, não havia vaga para transferência.
Papel da escola e desafios a superar
A escola raramente se responsabiliza por trazer esses alunos de volta às salas de aula. O problema se agrava pela distância entre o ambiente escolar e a realidade deles. O conteúdo em classe tem uma abordagem que não condiz com a vida de quem já circula em ambientes mais adultos e é explorado sexualmente. Isso não significa que eles não queiram estudar, mas, como conta Monalisa, se sentem envergonhados pela distorção idade-série e não se identificam com os colegas.
Em relação ao trabalho infantil, há ainda a permissividade das famílias, que veem na atividade remunerada uma boa alternativa à criança ou ao adolescente, mesmo que apenas no curto prazo. Essa visão tem de ser desconstruída. "Se a escola é atrativa, tem qualidade e os pais percebem que manter os filhos no estudo permite um futuro melhor, a perspectiva muda", explica Maria Cláudia. Ela defende que o ideal seria nunca precisar trabalhar e poder ingressar em uma boa universidade, como fazem os jovens de classe média. Mas a lei prevê o trabalho a partir dos 14 anos na condição de aprendiz, com jornada reduzida, tempo para atividades escolares e fiscalização do Ministério do Trabalho (MT). O modelo é uma solução possível, mas se restringe aos centros urbanos, sem chegar à zona rural, onde o trabalho infantil é aceito pela família com naturalidade.
A importância da escola na solução da questão é inegável. Muitos professores e gestores, no entanto, não sabem como lidar com trajetórias problemáticas. Há vontade de ajudar, mas falta preparo para saber como e políticas concretas voltadas ao problema. "A universalização da Educação de qualidade terá de tratar de forma particular os grupos excluídos, desenhando políticas específicas. Assegurar o direito de aprender é melhorar as condições de ensino, acompanhar cada um e combater os problemas que colocam em risco a permanência na escola. As crianças sob risco de violência e exploração precisam de atenção redobrada", destaca Silvio Kaloustian, coordenador do escritório de São Paulo do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef).
*Para preservar a identidade dos entrevistados, os nomes são fictícios.
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