Ensino enclausurado
Mesmo em unidades-modelo, Educação para jovens internados sofre para conjugar a aprendizagem de conteúdos e a preparação para a cidadania
PorNOVA ESCOLARodrigo RatierVictor MaltaBianca Bibiano
01/10/2010
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Jornalismo
PorNOVA ESCOLARodrigo RatierVictor MaltaBianca Bibiano
01/10/2010
Sefora Mileo Eisner, 49 anos, é professora de Educação Física em Ponta Grossa, a 113 quilômetros de Curitiba. Ela leciona num lugar com estrutura invejável, com campo de futebol, ginásio coberto, teatro de arena, consultório odontológico e médico à disposição. Mas também com muros altos, arame farpado e circulação controlada por seguranças. Sefora trabalha em uma instituição de internação de jovens, o Centro de Socioeducação (Cense) Ponta Grossa, considerado modelo. No fim da aula, em vez de ir para casa, cada um de seus alunos se recolhe a uma cela individual com chuveiro, privada e cama de alvenaria. Enclausurados por uma pesada porta de ferro com uma portinhola que dá vista para o corredor, eles fazem suas refeições e leem ou ouvem música até as 10 da noite, quando a luz se apaga e convida ao sono em finos colchonetes. "É uma estrutura mais digna que uma penitenciária, mas segue sendo uma privação de liberdade. Essa condição muda tudo no trabalho pedagógico", explica Sefora.
Há outras diferenças entre a escolarização regular e a de jovens que cumprem medidas socioeducativas, como a lei denomina as punições a adolescentes que cometeram delitos (a internação por até três anos é a mais severa delas). Em geral, os estudantes apresentam um histórico de abandono escolar e múltiplas repetências, pontuando trajetórias pessoais atravessadas pela violência e pelas drogas - de acordo com um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), 86% eram usuários antes da internação. O cenário apresenta uma tarefa complexa para os professores: além de abordar os conteúdos de cada disciplina, espera-se que eles discutam cidadania e ainda trabalhem valores e atitudes, ajudando os jovens a se afastar do crime quando voltarem à liberdade.
Para conhecer melhor a situação do ensino nas unidades de internação, lar de 14 mil jovens em todo o país - 96% homens -, NOVA ESCOLA visitou quatro instituições, duas no Paraná (o já citado Cense Ponta Grossa e o Cense Joana Miguel Richa, em Curitiba, exclusiva para meninas) e duas em São Paulo (uma delas para internações provisórias, de até 45 dias). Apesar de algumas práticas de destaque, ainda há um longo caminho a percorrer. Como resume Mário Volpi, coordenad or do Programa Cidadania dos Adolescentes do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef): "É raro encontrar unidades em que a Educação seja o eixo central para a discussão da vida em sociedade".
2. Apesar de problemático, panorama reflete avanços
Visto em perspectiva histórica, o panorama atual, apesar de problemático, reflete avanços recentes. A primeira lei a considerar crianças e adolescentes no Brasil foi o Código de Menores, criado em 1927 e atualizado em 1979. "Ainda que estabelecesse a obrigatoriedade de ‘escolarização e profissionalização’ nos centros de permanência, a lei gerou um sistema de atendimento baseado em um modelo correcional e opressivo", diz o pedagogo Antônio Carlos Gomes da Costa, especialista no assunto. Não por acaso, os internatos concebidos para abrigar menores infratores ou abandonados (órfãos ou filhos de pais sem condições de criá-los), ligados à Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (Funabem) ou à Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (Febem), ficaram tristemente celebrizados pelas rebeliões e denúncias de castigos corporais.
O quadro começou a mudar com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), de 1990. Ao estabelecer normas para a proteção dos direitos da população infanto-juvenil, o ECA determinou que as unidades de internação fossem "ambientes de respeito e dignidade". A regulamentação mais detalhada, porém, veio apenas em 2006, com a publicação do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase). Em linhas gerais, o documento criou parâmetros arquitetônicos para as novas unidades (menores, para até 40 adolescentes, possibilitando um atendimento individual) e indicou que cada uma elaborasse um projeto pedagógico para "contribuir para a formação de um cidadão autônomo e solidário".
Nas unidades de internação, três desafios para o trabalho docente
Enquanto a questão do acesso à escolarização vem avançando (segundo o levantamento mais recente sobre o tema, de 2003, o Ensino Fundamental era assegurado a 99% das unidades de internação e o Médio a 63%), a qualidade ainda deixa muito a desejar. No que diz respeito ao trabalho docente, os especialistas enumeram três desafios principais. O primeiro deles - nada simples - é cumprir o currículo e atenuar a distorção idade-série. Para isso, a maioria das instituições aposta em algum tipo de aceleração do conteúdo. No Paraná, a escolarização segue o currículo da Educação de Jovens e Adultos (EJA). Em São Paulo, onde 97% dos internos estão pelo menos um ano atrasado nos estudos, as classes estão divididas em três módulos: 1º ao 5º ano, 6º ao 9º e Ensino Médio. Para docentes como Janaina Aparecida dos Santos, o desafio é escolher os conceitos essenciais para que os alunos se saiam bem nas provas semestrais preparadas em conjunto com a Secretaria Estadual de Educação (veja imagem na página 2).
Juntamente com a adaptação curricular, é preciso ajudar os adolescentes a planejar sua vida quando retornarem à liberdade. Para os professores das disciplinas tradicionais, isso significa a necessidade de discutir temas como justiça, trabalho, educação, saúde e cidadania ao mesmo tempo em que ensinam os conteúdos (veja imagem acima). "Nesse ambiente, além de ser especialista e conhecer as didáticas de sua área, o professor precisa mostrar a implicação do que ensina na vida cotidiana", afirma Volpi. Utilizar recursos que façam parte do repertório dos alunos ajuda a promover a discussão. "Um rap, por exemplo, serve tanto para trabalhar poesia como para debater problemas sociais das periferias", sugere Gomes da Costa.
O terceiro desafio é a reflexão sobre valores e atitudes. A ideia central é que, se o jovem for capaz de definir uma relação saudável consigo próprio e com os outros, diminui a chance da reincidir nas drogas e na criminalidade. Nesse sentido, discutir a elaboração de regras e incentivar os estudantes a resolver os problemas por meio de conversas é tarefa de todos os educadores, sobretudo quando surgem conflitos (veja imagem acima).
Exemplos de instituições que dão conta dessas três tarefas ainda são poucos. Segundo dados da Secretaria de Direitos Humanos do Governo Federal, só 15% das unidades foram construídas após a publicação do Sinase. No restante da rede, a precariedade dá o tom, como aponta um relatório nacional de 2009 organizado pela Rede Nacional de Defesa do Adolescente em Conflito com a Lei (Renade). De acordo com o documento, há irregularidades em pelo menos 11 estados: superlotação, agressões, violência psicológica, negligência no atendimento médico, celas sem ventilação, falta de higiene e alimentação de péssima qualidade. No campo da Educação, as queixas vão da falta de espaço e material para as aulas à ausência de professores. Que os casos positivos impulsionem uma mudança generalizada e duradoura.
Reportagem sugerida por 4 leitoras: Aelen Cristina Alves Cardoso, Marabá, PA, Alessandra Cristina Reis, Franca, SP, Fernanda Rodrigues de Oliveira, São Paulo, SP, e Vera Rozane Alves, Parnamirim, RN
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CONTATOS
Antônio Carlos Gomes da Costa
Cense Joana Miguel Richa, tel. (41) 3335-4145
Cense Ponta Grossa, tel. (42) 3224-7131
Mário Volpi
Unidade de Internação São Paulo
Unidade de Internação Provisória Rio Turiassu
INTERNET
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