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Jornalismo

Um sonho, um projeto, uma realização: voar

Há 100 anos, o brasileiro Alberto Santos Dumont levantou vôo com um aparelho mais pesado que o ar - o 14 Bis. A história desse ilustre personagem diz muito aos alunos do Ensino Fundamental

PorRicardo Falzetta

31/07/2006

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Ilustração: Martini
Ilustração: Martini

Paris, 12 de novembro de 1906. Para os padrões da época, o tráfego aéreo na cidade mais precisamente no Campo de Bagatelle promete movimento. Duas geringonças, ambas mais pesadas do que o ar, recebem os últimos preparativos para a disputa de um cobiçado prêmio oferecido pelo Aeroclube da França. O brasileiro Alberto Santos Dumont (1873-1932) é o piloto e criador de uma dessas máquinas, o 14 Bis. Elegante, ele dá a vez ao colega francês Gabriel Voisin (1880-1973), que tentará a proeza a bordo do Blériot IV, projetado e construído por Louis Blériot (1872-1936). Apesar de competirem, o clima entre eles é amigável. As peripécias de "Santô", como era chamado o brasileiro, famoso por ter tornado os balões dirigíveis em 1901, atraíam bom número de aficionados e curiosos, além das comissões previamente convocadas para garantir credibilidade aos fatos. O desafio naquele dia: voar 100 metros em linha reta, num avião capaz de decolar por meios próprios e pousar em segurança. 

Começa a prova. O Blériot IV faz barulho com seus dois potentes motores, acelera... e quase se desintegra. Ao avançar na "pista", bate em uma irregularidade e as duas hélices tocam o chão e se partem, comprometendo outras peças da estrutura. "Agora é com você, meu amigo", diz Voisin a Santô. O brasileiro é o centro das atenções, o que lhe serve de combustível extra. Ágil e franzino (apenas 50 quilos), escala a nacele (o cesto de vime, posto de comando do 14 Bis) e, com um movimento de braço, pede que os presentes abram caminho. Dá a partida, acelera... e na primeira tentativa fica 40 metros no ar. Em seguida, 60 metros e algumas peças danificadas no pouso. Após reparos, à tarde, alcança 82,6 metros (sempre a favor do vento). Na quarta oportunidade o relógio marca 16h45 , uma intuição: por que não decolar contra o vento?

Em instantes, o 14 Bis levanta vôo. Sobe 1 metro, 2, 3... Para evitar os observadores, boquiabertos e na mira do avião, Santos Dumont comanda uma leve inclinação do leme para cima e alcança espantosos 6 metros de altitude, passa sobre todos, evita um desastre e inicia uma curva sutil. Então desacelera (ninguém sabe se devido a um problema ou a um comando) e inicia a aterrissagem. Uma das asas toca o solo antes das rodas e sofre pequenas avarias. O piloto está bem, mas não pode pôr os pés no chão. A platéia em êxtase carrega nos ombros o autor do primeiro vôo homologado da história, registrado nos anais da Federação Aeronáutica Internacional: 220 metros.

Os pais da aviação

Cem anos depois, é tempo de homenagear esse brasileiro genial. Na escola, sua vida e obra rendem debates sobre a física do vôo e o método científico (leia o infográfico e a sugestão de aula na página 52) e também sobre design (leia o quadro na página 50). Diferentemente do que muitos pensam, Santos Dumont não foi, sozinho, o pai da aviação. A história seria outra se não existissem personagens como o brasileiro Bartolomeu Lourenço de Gusmão (1685-1724), inventor do balão de ar quente, o alemão Otto Lilienthal (1848-1896), o inglês Percy Pilcher (1866-1899), os americanos Samuel Langley (1834-1906) e os irmãos Orville (1871-1948) e Wilbur Wright (1867-1912), os franceses Clément Ader (1841-1926), Octave Chanute (1832-1910), Henry Farman (1874-1958), mais os já citados Voisin e Blériot, entre outros. Cada um a seu modo, uns mais idealistas, outros com inclinações bélicas ou de olho no retorno financeiro, todos foram importantes inventores e, como tal, devem ser considerados pais da aviação. Pesquisar esses nomes é uma tarefa estimulante e necessária.

De todos esses pais, Santos Dumont é o principal. Ele reuniu em seus aparelhos, de forma precisa, adequada e simples, a essência de tudo o que se produziu no campo aeronáutico na frenética virada do século 19 para o 20. "Conseguia isso porque tinha a capacidade de fazer uma análise crítica dos inventos de seus contemporâneos e antecessores, de aprender com os erros e acrescentar detalhes geniais, que faziam toda a diferença", afirma Henrique Lins de Barros, pesquisador titular do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas do Ministério da Ciência e Tecnologia e autor de três livros sobre a vida e obra do inventor.

A história do 14 Bis é prova dessa competência. Asas biplanas já haviam sido propostas por Chanute antes da virada do século. Dumont incorporou o conceito das células de Hargrave, pipas em formato de caixa criadas pelo australiano Lawrence Hargrave (1850-1915). Com isso, aumentou a resistência e a estabilidade. Para obter equilíbrio, optou por um diedro positivo acentuado (a inclinação das asas em forma de V), como já havia feito Lilienthal em seus planadores. O aileron, aba colocada na ponta das asas para evitar o giro longitudinal do avião, já havia sido empregado, ainda que sem sucesso, pelo neozelandês Richard Pearse (1877-1953). O motor a gasolina, então novidade, era um Antoinette de oito cilindros, que equipava lanchas e foi adaptado pelo fabricante, Léon Levavasseur (1863-1922), a pedido do brasileiro. Para ajustar esse mosaico, Santô brilhou na definição das medidas. A grandeza quase desproporcional das asas e a envergadura de 11,46 metros era o segredo da sustentação, que se completava com a escolha precisa do centro de gravidade, pouco atrás da posição do piloto.

Sucessão de acertos...

Além disso, Dumont era mestre na seleção de materiais. Com cana- da-índia, um tipo de bambu, ele armou a estrutura das células. Com freijó, madeira nobre da Amazônia, construiu o caixão central. Para os estais (tirantes que travavam o esqueleto do avião), empregou cordas de aço (de piano). Da experiência de balonista, tirou a idéia de entelar o avião com seda japonesa, impermeabilizada com cera de abelha e parafina, para reduzir o atrito. Uma roda de bicicleta, ao alcance da mão esquerda, comandava o leme horizontalmente. Um manete servia de acelerador. Duas rodas maiores eram o trem de pouso. Apesar do aparente improviso, o projeto era preciso. E de execução rápida: apenas três meses de trabalho até a conclusão, em 19 de julho de 1906.

Antes da façanha de 12 de novembro, o 14 Bis já havia realizado vôos mais curtos. Em 23 de outubro, Dumont reuniu imprensa, convidados e a sempre presente Comissão do Aeroclube da França. A todos avisou que tentaria ganhar o Prêmio Archdeacon, de 3 mil francos, proposto pelo advogado em 1904, ao aviador que conseguisse completar 25 metros acima do solo num aparelho capaz de decolar por meios próprios em terreno plano. E voou 60 metros.

...e alguns erros também

Se acertou em muitos pontos, Santos Dumont errou em outros, que faziam do 14 Bis um projeto fadado ao abandono (o que se deu em abril de 1907, após uma queda que praticamente o desmontou). A decolagem estava resolvida com o leme à frente, mas o equilíbrio em vôo era precário. A configuração canard (pato, em francês), com a asa atrás e o leme à frente, não foi uma boa escolha. "É como atirar uma flecha ao contrário", afirmava. Mas essa era a intuição coletiva da época. Para levantar vôo, acreditava-se que o caminho era criar uma força para cima na parte frontal da aeronave. Era difícil imaginar, naquele tempo, a atual concepção: o leme fica na parte de trás e, ao ser inclinado para cima, provoca uma força para baixo. Como numa gangorra, a frente do avião se ergue, aumentando o ângulo de ataque das asas. Ainda sem dominar esse conceito, mas certo de que o leme traseiro oferecia mais equilíbrio durante o vôo, Dumont inverteu a configuração nos modelos seguintes. Porém, como o trem de pouso ficava muito à frente, não permitindo o efeito gangorra, os aviões (o 15 e o 17) não decolaram.

De uma aposta entre amigos, sobre quem construiria o veículo mais veloz para deslizar na água, saiu o 18, um hidroplanador e, com ele, a solução para a decolagem. O 18 possuía asas e leme submersos. "Ao rebocá-lo com uma lancha num teste no rio Sena, Dumont deve ter notado que a inclinação causada pelo reboque fazia o aparelho 'levantar vôo'", arrisca o pesquisador Henrique Lins. Nos modelos seguintes (19 e 20), batizados de Demoiselle (libélula ou senhorita, em francês), o inventor instalou asas inclinadas, que, na posição de decolagem, ofereciam o ataque necessário à subida. O 20 foi o primeiro avião produzido em série.

O idealista e sonhador Dumont, herdeiro de uma enorme fortuna, jamais patenteou suas criações. O projeto do Demoiselle foi publicado numa revista científica e oferecido a qualquer empresa que quisesse construí-lo. Apesar de não precisar trabalhar para se sustentar, produziu intensamente. Entre 1898 e 1908, desenhou 26 projetos, dos quais 23 foram construídos e testados. Conquistou os céus e o respeito de todos. Quando abandonou a carreira, passou a divulgar a importância da aviação como meio capaz de aproximar os povos e encurtar distâncias.

Infelizmente, teve um fim prematuro. Já na década de 1910 o corpo acusava sinais de esclerose múltipla. Testemunhou a Primeira Guerra e em conversas íntimas expressava seu desgosto com o uso militar do avião. No auge de uma crise de depressão, suicidou-se num quarto de hotel no Guarujá, litoral paulista, em 23 de julho de 1932, aos 59 anos.

100 anos e ainda voa

Se restava dúvida sobre o suposto pioneirismo dos irmãos Wright, que afirmavam ter voado antes de Santos Dumont, em 1903, com o Flyer, a questão foi esclarecida há três anos. Numa cerimônia promovida pelo presidente George W. Bush na Carolina do Norte, para celebrar o centenário (deles), uma réplica do Flyer alçaria vôo na presença de convidados ilustres. Motor acionado, o aeroplano acelerou, deslizou na plataforma de lançamento... e atolou na lama, alguns metros à frente.

Um ano antes, o empresário e piloto goiano Alan Calassa, fã de Santos Dumont, iniciou um ambicioso projeto: criar uma réplica perfeita do 14 Bis. Ou melhor, quatro. A primeira foi doada ao Musée de L'Air, na França, em 2005. A segunda percorre hoje as capitais brasileiras numa mostra itinerante. A terceira está nos Estados Unidos, para a EAA Air Venture Oshkosh, mais famosa exposição anual de aeronáutica do mundo. A quarta réplica, de treinamento (sim, todas voam, como você pode comprovar em www.novaescola.org.br, fica no hangar de Calassa, no aeroporto de Caldas Novas, a 180 quilômetros de Goiânia. 

ALBERTO SANTOS DUMONT

Foto: arquivo pessoal
Foto: Arquivo pessoal
 

O criador do 14 Bis nasceu em 20 de julho de 1873, no sítio Cabangu, então distrito de João Gomes, em Barbacena (MG). Hoje a cidade se chama Santos Dumont. Morreu em 23 de julho de 1932, no Hotel de La Plage, no Guarujá (SP).

AO INFINITO E ALÉM

A imagem desta página é um belo trabalho artístico do ilustrador Martini para mostrar como os esboços do avião se transformaram, de fato, numa fabulosa máquina de voar. A ilustração foi feita em cima de uma foto histórica: a do primeiro vôo do 14 Bis, realizado em 23 de outubro de 1906, no Campo de Bagatelle, em Paris.

MARCA DURADOURA

O nome e a imagem de Santos Dumont se espalharam pelo mundo de diversas formas. No Brasil, é tema até hoje de uma série de selos comemorativos dos Correios.

No início do século 20, os feitos do inventor ilustraram as estampas que impulsionavam as vendas do sabonete Eucalol.

Em 1973, ano do centenário de seu nascimento, a imagem clássica, com o chapéu de abas caídas, foi gravada em placas de licenciamento de veículos. 

Quer saber mais?

BIBLIOGRAFIA
Conexão Wright-Santos Dumont, Salvador Nogueira, 380 págs, Ed. Record, tel. (21) 2585-2000, 42,90 reais

Santô e os Pais da Aviação, Spacca, 168 págs., Ed. Cia. das Letras, tel. (11)3707-3500, 41 reais

Santos Dumont e a Invenção do Vôo, Henrique Lins de Barros, 190 págs., Ed. Jorge Zahar, tel. (21) 2240-0226, 52 reais

Santos Dumont O Homem Voa!, Henrique Lins de Barros, 63 págs., Ed. Contraponto, tel. (21) 2544-0206, 15 reais

Santos Dumont, Um Herói Brasileiro, Antonio Sodré, 240 págs, Ed. Arindiuva, tel. (11) 5505-1500, 29 reais

CINEMA
Santos Dumont O Homem Pode Voar, documentário de Nelson Hoineff, tem estréia prevista para este mês nos cinemas

INTERNET
Consulte o site www.santosdumontdesigner.com.br para saber mais sobre a exposição montada pelo artista plástico Guto Lacaz

No site www.cabangu.com.br/pai_da_aviacao, você pode baixara íntegra do livro O Que Eu Vi, o Que Nós Veremos, escrito por Santos Dumont em 1918

Na página www.calassaaviation.com.br, você encontra mais detalhes sobre a construção das réplicas do 14 Bis  

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