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Jornalismo

Educação Antirracista também é valorizar saberes das comunidades

Ação pode abrir espaço para o protagonismo dos alunos, reforçar os vínculos com as famílias e quebrar a ideia eurocêntrica de produção científica

PorLavini Castro

29/04/2024

Conhecer a cultura e as histórias do entorno ou localidades próximas da escola ajuda na valorização dos saberes das comunidades. Foto: Tete Silva/ NOVA ESCOLA

Você já parou para pensar que a produção do conhecimento esteve e ainda está atrelada a uma perspectiva racial branca europeia e, mais recentemente, norte-americana? Por mais que se fale de diversidade, quando essa produção é feita por outros povos - como negros e indígenas - ela passa a pairar no campo do exótico e artístico-cultural, mas não científico, como já deveria ser reconhecida. Ou seja, não atribuímos a alguns grupos raciais a sabedoria científica.

O conhecimento produzido por africanos, afro-brasileiros e indígenas, no caso brasileiro, por exemplo, não é tido como ciência. Mas, afinal, o que é ciência e por que alguns povos são descartados como representantes dela? 

Para responder a primeira pergunta precisamos, inclusive, mudar a epistemologia de como entendemos o conceito de ciência. Se por um lado o conhecimento científico advindo da modernidade continha a demarcação racial da humanidade, portanto, os saberes europeus foram julgados superiores aos demais saberes de outros tantos povos, por outro, os saberes foram traduzidos como de origem europeia quando, na verdade, os europeus aprenderam com outros povos não concedendo a eles o crédito. A ciência passou a ser um monopólio europeu, com regras e fundamentos definidos pela cultura europeia vista como universal. 

A partir daí, podemos responder à segunda pergunta, pois como os métodos científicos e todas as decisões do que é ciência ficou a cargo do pensamento científico europeu, outras formas de conceber o conhecimento sobre as coisas no mundo passou a ser desconsiderado como conhecimento científico. 

Ou seja, nós brasileiros, fomos ensinados a valorizar elementos das culturas europeia e norte-americana em detrimento da diversidade de conhecimentos dos povos indígenas e afro-brasileiros que compõem nossa sociedade. Tal realidade acabou interferindo na organização social, cultural, política, econômica de nossa sociedade afetando nossas relações e instituições, como foi o caso das escolas. 

Nossas escolas ensinam sobre a matemática de Pitágoras, filosofia de Platão e até a história de um Egito Antigo representado por atores sociais de fenótipo branco, mas desconhecem outras ciências, conceitos e teorias, como os saberes ancestrais dos  povos originários e das comunidades quilombolas. Criamos, assim, uma memória do conhecimento científico como exclusividade europeia/norte-americana, de caráter branco, elitista, urbano e masculino. 

A professora Bárbara Carine, em seu livro História Preta das Coisas, nos leva a raciocinar sobre a diversidade do conhecimento científico. Ela questiona: “por que em um planeta tão grande e diverso, com várias civilizações anteriores à Grécia, tudo ficou tão estático, apático e sem vida esperando a Grécia surgir e trazer ‘luz’ ao mundo?”, ou seja, o conhecimento greco-romano foi definido como responsável por dar significado às coisas e, com isso, se criou a noção de universalidade de uma visão centralizadora, especialmente eurocêntrica. 

O fato é que toda essa narrativa sobre a ciência moderna “única” acabou chegando ao ambiente escolar, não dando oportunidade para a escola ser um espaço que acolhesse uma variedade de saberes e experiências do conhecimento de diferentes grupos raciais ou povos que fazem parte da nossa sociedade.

Por onde começar a levar diversidade de saberes para as aulas?

Precisamos recontar a história do conhecimento humano em nossas salas de aulas, mostrando como ele é diverso. É um conhecimento que está na cidade e no campo, dentro e fora da escola, é desenvolvido por diferentes grupos raciais e pode ser aprendido tanto na teoria quanto na prática. Por isso, precisamos valorizar os diversos saberes no processo educativo e não aquele hegemônico que insiste em apagar ou silenciar a presença dos saberes dos povos não-brancos.

Professores de Matemática insistem em falar de Pitágoras sem mencionar a matemática egípcia, bem como citar os conhecimentos matemáticos dos povos incas e astecas. Nas Ciências Biológicas, vale a pena ressaltar a história de Imhotep que, atualmente, está sendo reconhecido como o Pai da Medicina -  título atribuído primeiramente ao grego Hipócrates.  Imhontep pode ser tratado como um cientista egípcio que quase três mil anos antes de Cristo já praticava técnicas básicas da medicina. 

Professores de História podem pesquisar sobre o conhecimento biológico dos egípcios para explicar as técnicas de mumificação no Egito Antigo, desmistificando a ideia de que os africanos não tinham ciência. E se houver alguma dúvida sobre a negritude egípcia, pois nossos alunos assistem a novelas e filmes em que os egípcios são representados como brancos, vale a pena evidenciar o conhecimento de Cheikh Anta Diop, um cientista senegalês que, por meio do  método de datação radiométrica, que ele mesmo inventou, não deixou dúvidas sobre o fenótipo negro dos egípcios. 

Se nós professores formos em busca do verdadeiro conhecimento, um conhecimento plural dos diversos povos da humanidade, poderemos auxiliar na superação de como a história da ciência tem sido mal contada. Um grande equívoco que precisamos ajudar a desconstruir é da classificação do conhecimento africano e indígena como pertencentes à magia ou ao curandeirismo, ou a surreal narrativa da ajuda extraterrestre, quando na verdade o que existe é um conhecimento científico acumulado por esses povos.

Saberes locais em sintonia com o saber dito científico

Compreender a diversidade dos saberes como uma riqueza da humanidade é fundamental para promover uma aliança entre o conhecimento científico, que já transita comumente no chão da escola, com outros tantos saberes potentes, que ainda são ignorados no ambiente escolar. 

Com isso, não podemos deixar de falar da hierarquia de saberes que ainda existe e que legitima o saber acadêmico/científico ser aceito como aquele que deve ser ensinado, em detrimento da diversidade de saberes não contemplados como conhecimentos a serem aprendidos. 

Nós professores não só devemos ampliar o repertório do saber em sala de aula, apresentando conhecimento plural, como temos a obrigação de tratar esses conhecimentos em prol dos benefícios da humanidade, como legítimos saberes plurais que, ensinados na escola, permitem o crescimento de nossa autonomia e criatividade.

É imprescindível valorizar os saberes locais em sintonia com o saber dito científico no chão da escola, pois são os saberes mais próximos de nossos alunos. Muitas vezes, é o saber do dia a dia de vida deles e a escola precisa se impor como um espaço socioeducativo, pois ali convivem diferentes grupos raciais com suas histórias e culturas, sejam eles os alunos e suas famílias, professores, corpo pedagógico e administrativo, dentre outros funcionários, bem como a comunidade do entorno, que acaba sendo atendida e/ou afetada em grande ou menor medida pelo processo ensino e aprendizagem. 

Professor, pense na escola em que trabalha, pense no entorno e nas famílias atendidas, pense no bairro e perceba que essa unidade escolar está situada em uma comunidade com especificidades culturais, saberes, valores, práticas e crenças, e pense o quanto legitimar a cultura local pode ser enriquecedor para seus alunos, pelo fato deles passarem a ter protagonismo, lugar de fala e ação durante as aulas. 

Aqui, precisamos pensar na importância de estimular o diálogo constante entre culturas. Não se esqueça que uma das características da educação é proporcionar um ambiente seguro e possível para aprender e ressignificar conhecimentos, tecnologias, saberes e práticas. 

Então, professor, reflita: qual é a importância dos conhecimentos locais na educação escolar? Como esses conhecimentos podem contribuir para a formação dos estudantes? De que forma podemos valorizar os saberes locais como legítimos no ambiente escolar? 

Essas questões levam a uma abordagem educacional que reconhece a diversidade de conhecimentos, a constante evolução do ser humano e a análise crítica do mundo. Para responder a essas perguntas, é fundamental reconhecer a educação como um meio livre para aprendizagem plural de diferentes criações culturais, fazendo com que a escola seja um lugar de integração de saberes populares, experiências comunitárias e conhecimentos formais. Todos conhecimentos legítimos! 

Essa cultura da integração dos saberes no ambiente escolar promove o olhar do acolhimento entre professores e alunos, ambos como protagonistas e responsáveis pela promoção de conhecimento, proporcionando espaços de reflexão crítica sobre os próprios conhecimentos ensinados e aprendidos.

Educação antirracista para aproximar a família da escola

Os saberes locais são importantes, pois são os conhecimentos advindos dos alunos, seus familiares, ou comunidade. Isso muda a cultura escolar e a dinâmica que envolve a produção de conhecimento, superando a visão da transmissão de informações exclusivamente promovida pelo professor, com sua vivência acadêmica, que hierarquiza e confunde o aluno com um elemento vazio a ser preenchido e passa a ser uma nova experiência em que há uma aprendizagem coletiva em que o professor é articulador e mediador, mas está integrado e construindo junto com o aluno. 

Respeitar os saberes locais, advindos das experiências da comunidade da qual o aluno faz parte é a melhor maneira de promover uma aprendizagem que faça sentido para ele, mobiliza a comunidade, permite a visibilidade, representatividade participativa das lideranças locais, ressaltando  o aspectos do conhecimento comunitário, que valoriza o local em que vivemos, rompendo com formas pejorativas pela qual o conhecimento local, em grande medida, nas mãos de grupos raciais discriminados, são tratados. 

Ao reconhecer valor nos saberes das comunidades onde estão inseridas as escolas, podemos criar uma ponte com a família dos alunos. Convidá-los para contar memórias locais, falar de atividades que realizam ou ações que desenvolvem a autoestima dos familiares,  assim como o sentimento de pertencimento e vontade de conhecer e estar mais presente na escola. É importante abrir esse espaço, afinal, sempre dizemos que a educação dos alunos é uma ação compartilhada entre escola e família, não é mesmo?

Como valorizar os saberes das comunidades locais?

Um bom exemplo de atividade prática é promover valor ao território em que está inserida a escola. Muitas vezes, a realidade do entorno escolar, principalmente das escolas públicas, é descrita na mídia como desprestigiada, de baixo poder aquisitivo, muito violenta, todas narrativas que reduzem tais localidades a esses contextos. 

Temos que lembrar que nem todas as escolas são de fácil acesso, não estão em zonas privilegiadas de nossa sociedade e são frequentadas por um público afro-brasileiro e indígena. Nesse caso, reforçar aspectos negativos não colabora para a vontade do pertencimento dos alunos. Portanto, precisamos entender que nosso trabalho enquanto professores é reforçar positivamente a relação da escola com a comunidade local e seus saberes para criar memórias afetivas positivas em  nossos alunos.

Assim, ajudamos a reforçar a identidade local permitindo que os estudantes  sejam a próxima geração que vai lutar para as melhorias junto aos órgãos responsáveis. Nesse caso, a educação está para além de uma simples aprendizagem, ela acaba sendo um espaço para pensar projetos mais amplos de sociedade.

Então, promover um trabalho de reconhecimento de lideranças locais é um importante caminho para a atividade prática. Esse trabalho pode ser feito por meio de investigação e entrevistas com os moradores mais antigos. Com isso, será possível ter acesso a narrativas, fotografias, cartas, matérias de jornal e revista, por exemplo. O material coletado pode contribuir para a produção de um museu da história local 

Outra forma de fazer com que os saberes locais tradicionais adentrem as escolas foi apresentado na reportagem Feira de Ciências antirracista: inovações e saberes negros e indígenas que traz a experiência pedagógica da professora Rosa Maria Duarte Veloso do Centro Educa Mais Professor Ribamar Torres, que fica na cidade de Pastos Bons (MA) por meio  dos conhecimentos da etnobotânica. É uma forma como os saberes locais podem ser trazidos para dentro da escola com um caráter de conhecimento científico e não como uma visão mitológica ou folclórica atrelada a esses conhecimentos. 

Outro bom exemplo  são as comunidades quilombolas que reúnem saberes ancestrais e tradicionais sobre conhecimentos e técnicas de cultivo e criação de animais, como é o caso da reprodução de sementes crioulas promovida por quilombolas junto aos povos indígenas, ajudando a perpetuar um rico material genético sem uso de agrotóxico.

Impactos de levar o conhecimento das comunidades para dentro da escola

Trazer os saberes locais para dentro da sala de aula, abre espaço para que nossos alunos assumam seus lugares de fala, como narradores das suas próprias histórias e, com isso, quem sabe, possam vir a reivindicar o protagonismo sobre seus territórios, motivados em valorizar e cuidar do bem-estar do sua comunidade.

Os saberes locais acabam sendo uma ferramenta importante para o desenvolvimento da educação antirracista, pois:

  • Incentivam a pesquisa e valorização dos saberes não hegemônicos produzidos por negros e indígenas. 
  • Promovem o reconhecimento da diversidade, valorizando as vivências de povos africanos, afro-brasileiros e indígenas como um saber legítimo a ser aprendido em sala de aula. Ao incorporar os saberes das comunidades locais no currículo escolar, reconhece-se e celebra-se a diversidade cultural presente na sociedade, incluindo as contribuições das comunidades racializadas que, muitas vezes, são marginalizadas.
  • Permitem aos alunos a formação de uma memória afetiva positiva com a comunidade local, ressignificando a narrativa como comumente algumas localidades aparecem na mídia oficial e hegemônica.
  • Facilitam a promoção de pertencimento e protagonismo dos alunos negros e indígenas com sua história local que muitas vezes não está contada nos materiais pedagógicos e curriculares (livros didáticos e literatura) adquiridos pela escola.
  • Reforçam vínculo identitário com o local e aproximam as famílias da escola.
  • Promovem a equidade educacional, pois ao valorizar os saberes das comunidades locais, promove-se uma educação mais inclusiva e equitativa, que reconhece e respeita as diversas formas de conhecimento e expressão cultural.

Considerando que a ciência e a tecnologia são campos do conhecimento utilizados para lidar e compreender o ambiente, podemos afirmar que todos os povos desenvolveram tecnologias em diferentes contextos históricos e naturais apresentando peculiaridades enquanto ao método e conceitos empregados para atender suas necessidades de vida, sem que isso ferisse a integridade de sua inteligência ou aptidão no desenvolvimento dos diversos saberes existentes. As teorias racistas tentaram explicar isso criando hierarquias quando, na verdade, era diversidade do conhecimento. 

Assim, gosto de pensar que a valorização dos saberes das comunidades locais na educação é importante não apenas para enriquecer o processo educacional, mas também contribui para a construção de uma sociedade mais justa, igualitária e antirracista, onde todas as vozes e experiências são valorizadas.

Quer saber mais sobre Educação Antirracista? Clique aqui e confira outros conteúdos para entender e levar práticas antirracistas para suas aulas. 

Lavini Castro é educadora antirracista. Doutoranda em História Comparada pelo PPGHC/UFRJ. Mestre em Relações Étnico Raciais pelo PPRE/CEFET-RJ. Historiadora pela UFRJ. Professora de História do Ensino Fundamental e Ensino Médio das redes pública e particular do estado do Rio de Janeiro. Idealizadora e coordenadora da Rede de Professores Antirracistas. Ganhadora do Prêmio Sim à Igualdade Racial do ID_BR em 2021.

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