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Jornalismo

Receitas e desafios na medida certa

Meninos e meninas foram levados a mensurar ingredientes e mudar quantidades

PorPaula PeresElisa Meirelles

19/08/2015

As receitas são um material rico para as aulas de Matemática. Discussões sobre unidades de medida, diferentes grandezas, medições convencionais e não convencionais podem surgir com base na análise dos números colocados em um simples copo medidor ou na comparação entre colheres de ingredientes diversos. Esse foi o foco do trabalho da professora Andréa de Fátima Dias Tambelli, da Escola da Vila, em São Paulo.

Ela tinha de discutir grandezas e medidas com o 2º ano e optou por aproveitar o universo da culinária. A docente começou pensando quais conteúdos queria ensinar e que atividades seriam ideais na busca por esse objetivo. "Para que os alunos possam refletir sobre as questões que envolvem essa temática, é preciso apresentar problemas que apoiem a construção de sentido por parte deles", explica. O primeiro desafio era colocá-los em contato com diferentes unidades e instrumentos de medida e levá-los a pensar sobre como e quando utilizá-los. A professora pediu ajuda à nutricionista da escola e, juntas, escolheram cinco pratos de fácil preparo que continham diferentes ingredientes. Os eleitos foram: leite com achocolatado, bolinhas de abacate, biscoito de laranja, mistura de cereais e bolo de caneca.

Andréa apresentou à turma diferentes instrumentos e unidades de medida. Fotos: Ramón Vasconcellos. Ilustrações: Marcella Briotto

Andréa apresentou a proposta de preparar as comidas e pediu que cada criança se inscrevesse no grupo que faria a que mais lhe interessou. Reunidas, todas prepararam os pratos, buscando opções de como utilizar os instrumentos de medida para calcular as quantidades de componentes que cada uma demandava.

Para conseguir acompanhar de perto as discussões, a professora optou por trabalhar com a turma dividida. As mesas foram agrupadas e distribuídas e, enquanto parte dos alunos discutia a receita, os demais participavam de outras atividades que não estavam relacionadas às medidas.

Em cada prato, Andréa havia elencado pontos importantes de serem debatidos pelas crianças. Nas receitas, apareciam números fracionários, escolhidos propositalmente pela docente para que a turma tivesse um contato inicial com o tema, mas sem dar destaque a ele (leia o quadro abaixo).

Frações no 2º ano?

"Os números racionais podem ser trabalhados de forma introdutória nos anos iniciais do Ensino Fundamental", defende Suzete de Souza Morelli, doutoranda em Educação Matemática e professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). O ideal, para isso, é aproveitar as frações mais usuais, presentes no cotidiano da turma: 1/2, 1/3, 1/4, etc. Com base nelas, podem ser propostas atividades com diferentes contextos. "Uma opção interessante para crianças pequenas é propor que pensem sobre uma divisão em que não fornecemos uma unidade exata", sugere Suzete. Elas podem ser desafiadas a dividir de maneira equitativa 15 chocolates para quatro pessoas, por exemplo. Ao passar um problema como esse, o docente tira o foco do resultado e faz as crianças refletirem sobre o resto, e é isso que dá a dimensão dos números racionais. O mesmo vale para as receitas culinárias. Ao buscar a metade de uma xícara, a turma começa a ter contato com frações, sem ser preciso teorizar sobre isso.

O grupo que fez o leite com achocolatado teve de comprovar a diferença entre medir alimentos sólidos e líquidos e relacionar litros e mililitros. Os responsáveis pelo biscoito de laranja discutiram, entre outros pontos, quais alimentos possuem o mesmo volume, mas massas diferentes. "O açúcar é mais pesado que a aveia porque é pequenininho, então cabe bem mais na colher do que a aveia, que é em flocos", explicou Amanda D'?Oliveira Gheti Kao, 7 anos.

Discussão semelhante foi feita pelos alunos que ficaram com a mistura de cereais. Eles deveriam analisar a medição e a pesagem de alimentos com diferentes texturas: óleo, aveia em flocos, e uvas-passas, entre outros.

Quem estava encarregado de produzir as bolinhas de abacate foi desafiado a utilizar a balança e fazer estimativas, calculando a massa da fruta com caroço e depois somente o caroço, criando hipóteses sobre a massa da polpa. O grupo do bolo de caneca aproveitou que as quantidades apresentadas na receita estavam em colheres para conversar sobre a diferença entre colher cheia e rasa, e quando é necessário ou não saber a medida exata de um ingrediente.

Enquanto trabalhava com os estudantes, a professora anotava questões interessantes que gostaria de retomar adiante, na discussão coletiva. Depois que as crianças prepararam os diferentes alimentos, ela pediu que compartilhassem com os colegas o que descobriram. Durante a conversa, o copo medidor foi bastante citado pela turma. "Essa ferramenta indica a quantidade de um ingrediente em xícaras ou gramas. A classe pôde conversar sobre as diferentes experiências com o mesmo instrumento e estabelecer essas relações entre as medidas convencionais e não convencionais", lembra Andréa.

Conforme os alunos falavam, a professora fazia uma lista no quadro, tomando o cuidado de escrever com uma linguagem fiel à explicação deles para que a sistematização fizesse mais sentido. "Nós aprendemos que os gramas fazem parte do quilo, e que o mililitro faz parte do litro", explicou André de Lara Pinto, 7 anos. Os itens levantados foram passados para o computador, impressos e colados no caderno das crianças.

"O ponto mais importante dessa etapa é ouvir e registrar os conhecimentos adquiridos pela classe", explica Ivonildes Milan, formadora do programa Ler e Escrever, do governo do estado de São Paulo. "Quando o educador sistematiza saberes que foram aparecendo ao longo do desafio proposto à classe, dá um novo status ao conhecimento, socializando as aprendizagens entre todos e podendo retomá-las sempre que necessário", complementa.

Dobrar e reduzir à metade cada receita

No segundo bloco de atividades, Andréa constatou que podia avançar nas discussões sobre grandezas e medidas. Seu objetivo era que os estudantes pensassem sobre como dobrar e dividir as quantidades, passando pela análise dos números racionais presentes nas receitas. A ideia era que as crianças tivessem um primeiro contato com contas envolvendo frações, tema que será explorado mais fortemente nos anos seguintes.

Para tanto, ela selecionou intencionalmente, com a ajuda da nutricionista, uma receita de bolo de cenoura que continha quantidades quebradas, que poderiam levantar discussões (1½ xícara, por exemplo). O texto foi levado à classe, lido em voz alta e analisado coletivamente. As crianças mediram os ingredientes e prepararam o bolo. "Dessa vez, elas já sabiam os instrumentos que deveriam usar para mensurar cada item".

Andréa propôs, então, que os alunos preparassem bolos para outras turmas da escola. Ela escolheu duas: uma que tinha duas vezes o número de crianças da sala e outra com a metade. Os estudantes foram colocados em quatro grupos escolhidos pela professora com base nos diferentes níveis de conceitualização que possuíam. Dois deveriam preparar o bolo para a turma maior e dois para a menor. "Quem já conseguia pensar em números como ½, ¼ ficou nos grupos que tinham de cortar a receita pela metade. Aqueles para quem o pensamento ainda era um desafio um pouco distante foram responsáveis por duplicá-la", explica a educadora.

Os estudantes discutiram com a receita em mãos, fazendo anotações. "Para dobrar 250 mililitros de leite, eu somei 250 com 250. Primeiro, soma o 50 com o 50, que dá 100. Depois, soma o 200 com o 200, e dá 400. No fim, junta os 400 com os 100 e dá 500", disse Cléo Costa, 7 anos. Para pensar na metade de 3 colheres, as crianças lançaram mão de diferentes estratégias. "Tenho três, aí eu preciso tirar uma e meia. Eu tiro uma, depois eu tiro meia, e fica sobrando uma e meia", disse Marina de Jesus Gonçalves Damirdjian, 7 anos, indicando com os dedos a representação de um e meio, com o segundo dedo dobrado.

Reunidos em grupos, os alunos debateram como duplicar a receita do bolo de cenoura

Nesse momento, Andréa incentivou as crianças a compartilharem as resoluções com os colegas do grupo e a justificarem, perguntando se foram convencidos pelo argumento exposto. "É interessante notar que a professora não está falando do número racional com crianças de 7 anos. Está fazendo com que elas observem a ideia de dobro e metade, que na vida prática é bem fácil de ser encontrada", ressalta Suzete, da PUC-SP. As explicações aconteceram de diversas maneiras. Alguns alunos desenharam palitos ou barras para representar a divisão equitativa de números ímpares, outros demonstraram com os dedos ou com objetos o conceito de metade de um número inteiro. Assim, explicavam o próprio raciocínio e entravam em contato com as estratégias usadas pelos outros, revendo suas hipóteses.

Mabel Panizza explica no livro Ensinar Matemática na Educação Infantil e nas Séries Iniciais (188 págs., Ed. Penso, tel. 0800-703-3444, 60 reais) que quando o educador reconhece as diferentes resoluções das crianças consegue planejar os próximos desafios e fazê-las refletir sobre suas estratégias. "O professor tem condições de partir desses conhecimentos e de planejar intencionalmente oportunidades para que os alunos mostrem representações e procedimentos não convencionais, estabeleçam a validade dos mesmos, analisem os que são pertinentes, abandonem uns e escolham outros."

Para finalizar, as receitas foram preparadas e compartilhadas com as outras salas. Toda essa discussão introdutória sobre o dobro e a metade ajudou a dar uma primeira base para as crianças, que vão continuar os estudos sobre o tema nas demais etapas da Educação Básica. "Os alunos aprendem conhecimentos ligados à resolução de problemas da vida diária, em ocasiões em que a medida resolve efetivamente o desafio colocado", comemora a professora. 

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