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Jornalismo

O professor Meiji e a psicóloga Ana Verônica ajudaram na mudança de vida de Ravena. Foto: Ádon Bicalho

Esta reportagem começa com um aviso: o percurso de Ravena do Carmo Silva, 25 anos, é exceção no universo dos jovens que cumprem medida socioeducativa no Brasil. Ela não só conseguiu escapar da volta ao crime como seguiu nos estudos com sucesso. Anos depois, ingressou na graduação em uma instituição pública, a prestigiada Universidade de Brasília (UnB).

Antes de ser ponto fora da curva, a história de Ravena seguia o roteiro-padrão. O mergulho na criminalidade veio com um baseado dentro da escola, quando ela tinha apenas 12 anos. Em pouco tempo, Ravena já tinha um relacionamento amoroso com um traficante. Sumiu das aulas - que antes frequentava só esporadicamente - e passou a cometer delitos. "Comecei a traficar, roubar. Era uma adrenalina muito grande", conta.

Entre idas e vindas, ela passou por quase todas as medidas socioeducativas (veja a lista completa no quadro abaixo). Aos 15, atingiu a punição que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) - criado há 25 anos - reserva apenas a casos de reincidência ou de delitos graves, que é a internação. O motivo foi uma tentativa de homicídio.

Ravena fez parte de um grupo que passa da casa dos 100 mil jovens. De acordo com o Levantamento Anual dos Adolescentes em Cumprimento de Medida Socioeducativa, publicado em 2014 pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, havia em 2012 no país cerca de 20 mil adolescentes em regime de restrição ou privação de liberdade - que corresponde às medidas de internação, internação provisória e semiliberdade. Outros 88 mil cumpriam sanções disciplinares em meio aberto, com prestação de serviços ou em liberdade assistida. A capacidade dos sistemas de socioeducação de reintegrar esses jovens à sociedade é duvidosa. "As medidas não são executadas como foram pensadas. Um dos grandes gargalos é justamente o sistema educacional", analisa Liana de Paula, professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

Um panorama da punição de jovens

Seguindo as concepções do ECA, as medidas variam conforme a gravidade da infração. O número de internos e a taxa de reincidência infracional são altos

As medidas socioeducativas

  • Advertência por escrito
  • Reparação do dano
  • Prestação de serviço à comunidade
  • Liberdade assistida e internação

A socioeducação em números

  • 88.022 cumprem medidas em meio aberto
  • 20.532 estão em restrição ou privação de liberdade
  • 43% passaram por internação mais de uma vez

ECA: a base do sistema

  • O que é? Conjunto de normas que regulamenta os direitos das crianças e dos adolescentes baseando-se no conceito de proteção integral. Também prevê sanções para casos de infração.
  • Lançamento: 1990, pelo então presidente Fernando Collor de Mello.
  • O que mudou? Até então, vigorava a concepção da situação irregular, que via crianças infratoras ou em situação de vulnerabilidade como objeto de intervenção. Com o ECA, passa a valer o princípio da proteção integral, visando a garantia dos direitos fundamentais.
  • Saiba mais
"As medidas não são executadas como foram pensadas. Um dos grandes gargalos é justamente o sistema educacional."
Liana de Paula, professora da Unifesp
Fonte Levantamento SINASE 2012, Panorama Nacional: A Execução de Medidas Socioeducativas de Internação (CNJ) e ECA

Excluídos duas vezes

A história escolar de adolescentes em conflito com a lei é permeada por uma dupla exclusão. A primeira, geralmente, é anterior à prática do delito. "A gente vê que esses jovens têm um afastamento da escola muito antes de cometer o ato infracional", afirma Cynthia Bisinoto, professora de Psicologia do Desenvolvimento na UnB. As razões para isso, segundo a docente, são a distância entre o saber escolar e o cotidiano e a lógica de culpar os alunos que têm dificuldade em conseguir acompanhar os conteúdos.

A outra exclusão ocorre durante o cumprimento das medidas. O ECA estabelece a escolarização (em unidades regulares ou dentro das entidades de internação) como etapa obrigatória para todas as medidas socioeducativas. Essa norma nem sempre é cumprida. Praticamente todas as cerca de 20 pessoas ouvidas pela reportagem - pesquisadores, funcionários de serviços de atendimento aos jovens, professores e gestores - reconhecem que já presenciaram ou tiveram conhecimento da criação de dificuldades para a matrícula de alunos nesse regime. "Por vezes a escola arruma um jeito de dizer que não tem vaga", conta Liana. "Algumas pessoas têm a impressão de que aqui só há jovens perigosos. Muita gente fala que estudante em liberdade assistida tinha de estar na Febem", conta o sociólogo Leandro Gomes, que acompanha adolescentes em medida socioeducativa.

A matrícula, porém, não elimina o preconceito, expresso em atitudes que vão da condescendência ao rigor excessivo. Nem sempre é fácil perceber esse estigma, como ilustra o dialógo de nossa reportagem com Jonas (nome fictício), 17 anos, interno em medida de semiliberdade na Fundação Casa da Vila Guilherme, na capital paulista. A entrevista é acompanhada o tempo todo pela diretora da unidade. O olhar sempre baixo e o jeito de falar do rapaz - pontuado com "sim, senhor" e "não, senhor" - tornam a conversa truncada. Apesar do discurso pronto sobre a importância da Educação, Jonas admite que só frequenta a escola porque é obrigado. No entanto, afirma se sentir bem lá e nega ser vítima de preconceito.

Nem todos têm a mesma opinião. Domingos Ditano Júnior, professor de Matemática, diz que sempre que ocorre algo de errado na escola, as suspeitas recaem nos ombros do garoto. A defensora pública da Unidade de Infância e da Juventude de São Paulo Gabriela Galetti Pimenta conta um exemplo parecido sobre um adolescente em liberdade assistida acusado de ter colocado uma bomba na sala. "Havia provas fartas de que foi outro aluno. A diretoria já tinha a intenção prévia de transferi-lo. Isso é uma forma de expulsão", afirma. Célia do Carmo Carioca, vice-diretora de uma escola da rede estadual paulista que tem adolescentes nessas condições, diz que eles são sempre os primeiros suspeitos.

A atitude dos colegas também não costuma contribuir. Em alguns casos, o estudante que cumpre medida socioeducativa é glamorizado pelos pares, visto como um insider, alguém que integra o mundo do crime. Essa parece ser a realidade de Jonas. "O que atrapalha são companhias que o cercam para falar de assuntos errados, querendo mostrar que são maus. Alimentam essa postura, que ele acaba assumindo", diz Domingos.

Ravena também não via a escola como saída. "Não tinha nada que despertasse o meu interesse. Eu ia para não ter problemas na liberdade assistida, mas aquilo não fazia sentido para mim. Foi um fracasso", confessa. Com uma atitude rebelde dentro da unidade, ela não dava sinais de que pretendia mudar de vida. Paradoxalmente, a situação começou a se modificar durante a internação. Em 2006, o professor de Matemática Meiji Ito tinha acabado de iniciar seu trabalho no Centro de Atendimento Juvenil Especializado (Caje), em Planaltina, a 38 quilômetros de Brasília. Ravena estava na primeira classe dele. "Tratei de estabelecer uma relação de amizade", conta ele. Juntamente com a construção de vínculos, o educador relacionou a Matemática com os interesses dos alunos. Em paralelo, a psicóloga Ana Verônica Pires de Azevedo tentava dissolver os vínculos de Ravena com o crime e fortalecer a relação de confiança dela com a mãe. "A Ana Verônica teve mais autoridade do que eu. Me ajudou a impor limites e a voltar a confiar na Ravena", conta Fátima Aparecida do Carmo, mãe da jovem.

 

Influência decisiva para mudar

Conforme o trabalho evoluía, o interesse de Ravena pelos estudos aumentava. Os profissionais enxergaram o potencial dela e resolveram fomentar o sonho do ingresso em uma universidade pública. Ao sair da internação, em dezembro de 2007, o retorno ao local em que se envolvera com o crime não abalou a decisão. "Lembrava de tudo que passei e das conversas com a Ana Verônica e o Meiji. Percebi que o melhor era não voltar para aquela vida." A reação dela foi mergulhar nos estudos. Investiu as economias do trabalho numa loja de cosméticos em aulas particulares de Física e Química. Quando o dinheiro acabou e a aprovação não veio, seguiu estudando sozinha.

Em 2013, depois de alguns anos sem contato com a ex-interna, Ana Verônica recebeu, no celular, uma mensagem surpreendente: "Oi, Ana. Venho aqui com muita alegria te falar que há mais ou menos cinco anos você plantou em meu coração um grande desejo de estudar. Disse-me que um dia gostaria de ver meu nome na lista de aprovados da UnB. Pois quero te falar que esse dia chegou. Obrigada, mais uma vez, por tudo! Passei em primeiro lugar!", contava a jovem, aprovada em Ciências Naturais, depois de duas tentativas. "Quando li a mensagem, vi que valeu a pena todo o trabalho e as dificuldades. Ela deu um novo fim para uma história que poderia ser muito ruim. Tenho orgulho de ter contribuído para um desfecho diferente", diz a psicóloga.

"O preconceito existe. Nas escolas, quando alguma coisa dá errado, o aluno em medida socioeducativa é sempre o primeiro suspeito."
Célia do Carmo Carioca, vice-diretora de uma escola da rede estadual paulista

"A conquista de Ravena fez valer a pena todo o trabalho e as dificuldades. Tenho orgulho de ter ajudado nesse desfecho diferente."
Ana Verônica Pires de Azevedo, psicóloga do Caje, em Planaltina

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