A vida dura da vida real na escola
O que a trajetória de um grupo que discute hip-hop diz sobre o ensino de temas atuais
PorRodrigo RatierAlice Vasconcellos
12/05/2017
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Jornalismo
PorRodrigo RatierAlice Vasconcellos
12/05/2017
Oano era 2009 e Daniel Bruno, apelidado Diel, tinha 13 anos de idade. Sua entrada pelo portão da Lourenço Castanho, escola de elite paulistana, foi cercada de curiosidade. O lado nobre de São Paulo ele só conhecia quando acompanhava a mãe, empregada doméstica, ao trabalho. Daquela vez foi diferente. Estava ali, junto com outros quatro meninos do seu bairro - "a sua quebrada" -, o Jardim Ângela, para cantar para outros meninos e meninas da mesma idade. "Uma galera muito diferente", relembra. "O jeito de falar, as roupas, a cor... A sensação era de que a nossa pele era castigada."
Difícil mesmo foram os olhares de alunos e professores. Era como se perguntassem, em tom de acusação - nas palavras de Diel - o que aquela turma de boné de aba reta, calça larga e camisa esticada estava fazendo ali. O menino pensou em desistir. Acabou convencido do contrário por Marcelo Silva Rocha, o Dj Bola, organizador do evento - o "rolê". "Se você não estiver aqui pra representar nossa quebrada, quem vai estar? Levanta a cabeça que você é artista."
Na letra de Saudades, o grupo de rap Inquérito diz que todo morador de periferia é de concreto. Uns são muro, outros são ponte. "Eu tinha raiva que nem o Diel. Não convivia com ninguém de fora da quebrada", diz Bola, ex-entregador de farmácia e motoboy. "Mas, depois de um tempo, comecei a pensar: quem é que tá dialogando com essa galera playboy? Quem tá mostrando para eles a realidade da periferia que eles não veem na TV? Foi aí que eu mudei. Decidi ser a ponte", afirma. Bola é o fundador da Banca, um coletivo que começou fazendo eventos de hip-hop e hoje discute, em escolas de toda a cidade, sobre o que significa viver na periferia. Ao lado do fundador estão seu sócio, Marcio Teixeira da Silva, o Macarrão, músico e produtor cultural, Fabiana Ivo, pedagoga especializada em educação popular, e o próprio Diel - ainda rapper, mas hoje também historiador e professor.
Num certo sentido, o que a turma da Banca faz é uma dupla conexão. Primeiro, entre ricos e pobres. Em São Paulo, as pontes que cruzam os rios Tietê e Pinheiros separam, também, um centro relativamente bem estruturado e uma periferia violenta e carente. "O mundo é diferente da ponte pra cá", cantam os Racionais MCs sobre a vida no extremo sul da Zona Sul da cidade. É de lá que vem a turma da Banca. Geralmente, é no outro lado das águas que eles vão atuar.
O trabalho que a Banca faz recebe o nome de Educação não formal. E aí está a segunda ponte. Esse tipo de ensino se distingue, basicamente, por levar a realidade para a sala de aula. É diferente da instrução formal - aquela da escola, oferecida em horários específicos, com disciplinas padronizadas, que dá direito à diploma ao final de cada ciclo de ensino. Se distingue, ainda, da Educação informal, que acontece na família, com amigos, vizinhos, na igreja e na mídia. Mesmo que essas não sejam tarefas educativas, a gente sempre acaba aprendendo alguma coisa (boa ou ruim) nesses contatos do dia a dia.
Bola, DJ, educador e morador do Jardim Ângela: "Pensei: quem tá dialogando com essa galera playboy? Decidi ser a ponte".
Pois bem: a Educação não formal costuma ser um meio caminho entre essas duas modalidades. Ocorre em associações e coletivos e pode até estar nas escolas, mas está fora da estrutura de ensino tradicional. "Sua finalidade é abrir janelas de conhecimento sobre o mundo que circunda os indivíduos e suas relações sociais", escreve Maria da Gloria Gohn no artigo Educação Não-Formal, Participação da Sociedade Civil e Estruturas Colegiadas nas Escolas. Atualmente, ela é professora visitante da Universidade Federal do ABC (UFABC) e uma das maiores especialistas sobre o tema no Brasil.
Concretamente, essas iniciativas trazem temas inovadores, polêmicos - ou os dois - para a escola. Drogas, sexualidade, mídia e redes sociais fazem parte do cardápio. O papo tem características específicas. Primeiro, quanto à adesão: a participação dos indivíduos é sempre optativa. Ou seja, o aluno tem de estar a fim. Segundo, quanto à finalidade. A ideia é trabalhar a identidade coletiva de um grupo e seus laços de pertencimento, independentemente do tema tratado.
A Banca faz isso por meio do hip-hop, movimento nascido nas comunidades negras de Nova York que inclui o rap, a dança do break e o grafite, mas pode ser a porta de entrada para debater racismo, cultura urbana, violência e gênero. Você já pode imaginar o enrosco que é levar uma proposta desse tipo para o ambiente escolar, muitas vezes engessado e outras tantas desconfiado com o que vem de fora dos muros. Basicamente, três coisas podem acontecer. A Banca é exemplar porque já passou por todas elas.
A primeira - mais comum - é dar com a porta a cara. No caso das escolas públicas, literalmente. "A maioria vive trancada e parece um presídio. Quando conseguimos ser recebidos, os diretores dizem que não têm horário na grade. Ou, veja só, que os alunos não têm interesse no projeto", conta Bola. Uma lembrança dolorida é de uma série de oficinas com a rede estadual que já estava paga, só precisava de instituições disponíveis para recebê-la. "Precisamos bater em 30 escolas para encontrar duas que topassem", diz.
Fabiana, pedagoga da Banca: "No Equipe, começamos com quatro oficinas. Hoje são nove. Conseguimos mostrar a consistência do projeto".
A segunda é conseguir entrar, mas ser visto como um corpo estranho no ambiente escolar. Nesses casos, os educadores são apenas um grupo de oficineiros sem relação com a identidade da escola. "Só querem saber das fotos para mostrar à secretaria de Educação um projeto extracurricular", afirma Bola. Nesses casos, a parceria não costuma durar ou se fragiliza quando muda algum rumo. "Numa escola municipal aqui da região, o novo diretor resolveu trocar um grafite que os alunos tinham feito sobre os tons de pele da região por... um mural da Turma da Mônica!", conta Fabiana.
A terceira - mais rara - é quando o parceiro conquista a confiança do corpo docente da escola a ponto de ser visto como parte dele. Acontece assim no Colégio Equipe, em Higienópolis, um dos bairros mais nobres de São Paulo. Por lá, a participação da Banca ocorre nos módulos temáticos de cidade e juventude, espécies de disciplinas optativas organizadas pelos professores de Sociologia e Geografia no Ensino Médio. A confiança não veio de uma vez. "Começamos com quatro oficinas, hoje são nove. Mostramos a consistência do projeto. Somos vistos como professores por nossos colegas e já debatemos o projeto político-pedagógico da escola", diz Fabiana.
NOVA ESCOLA acompanhou a primeira aula do curso de juventude. Para Diel e Fabiana, os formadores, a rotina começa por volta das 7 da manhã, no terminal de ônibus do Jardim Ângela. Ela mora ao lado. Ele vem de uma caminhada de 40 minutos, mesmo tempo que a linha Terminal Santo Amaro leva até a estação Socorro de trem. Oito paradas até a estação Pinheiros, mais quatro estações até a praça da República, nova mudança de linha e, em duas paradas, estamos na estação Marechal Deodoro. Quinze minutos a pé e surge o Colégio Equipe. Fabiana está de saia longa colorida, blusa branca e jaqueta jeans. Diel está como estava oito anos atrás: veste boné de aba reta, calça larga e camiseta esticada. São 9 horas da manhã e a aula vai começar.
Fabiana inicia organizando um círculo com os 16 jovens da classe. Adepta da pedagogia freireana, ela trouxe para a Banca atividades que privilegiam o diálogo e o trabalho em grupo. Quando todo mundo é convidado a dizer como se sente, um dos meninos se espanta. "Obrigado. É a primeira vez que me perguntam isso na escola", diz.
Em seguida, na fala de Diel, o Ângela ganha cores e valores. O estereótipo de bairro mais violento do mundo, uma realidade imortalizada pelos programas policialescos nos anos 1990, é substituído pela imagem de um distrito com 600 mil habitantes que cruzam a cidade para trabalhar. "Ainda vivemos num bairro violento, o terceiro da cidade. Mas o trabalho de diversas entidades sociais e políticas públicas como o estatuto do desarmamento mudaram para melhor nosso cotidiano", diz Fabiana. Um lugar pobre, mas de comércio dinâmico e uma cena musical fortíssima. Um dos representantes é o próprio Diel. No clipe de De Onde Eu Venho, ele versa para a turma:
De onde eu venho
de onde pra chegar só quem manja
quilombola tribo maloca
do tijolo laranja na dobra
onde o asfalto acaba
e as ruas de terra começam
as casas mal rebocadas
e família à beça
O rap surge como ponto de identificação entre os bairros. "Por mais que seja uma cultura periférica, a gente identificou que mesmo nos colégios de elite bastante gente escuta rap. Jovem é jovem em qualquer lugar", diz Fabiana. Em seguida, os professores combinam como será a avaliação. Não há prova, mas tem nota. Ela depende da participação em sala, da reflexão sobre os textos, da presença em atividades práticas e de produções textuais. Para encerrar, o oficineiro Deivison ensina alguns passinhos de dancehall, estilo popular jamaicano que nasceu no fim dos anos 1970. Toca o sinal. O clima na turma é de descontração.
O ponto máximo da formação está programado para ocorrer dali a dois meses. É o intercâmbio social cultural, quando os alunos de áreas ricas cruzam a ponte para a periferia - e vice-versa. "Não é turismo. Sempre tem um aluno da região que serve como anfitrião de quem chega e mostra o que acha significativo para ele", explica Bola. Tudo começa com uma troca de cartas, momento em que os anfitriões se apresentam uns aos outros. Um exemplo de carta do Ângela:
Não tenho muito o que falar mas vamos ver no que vai dar. Gosto de ouvir muito rap, gosto muito de reggae e gosto um pouco de samba. Mas, mano, se eu falar que eu não gosto de funk, tô mentindo. Mano, da minha parte espero que você venha para cá sem medo da nossa quebrada, porque aqui é um lugar de paz. É uma quebrada humilde. Cresci aqui e não desejo sair. Espero que você não venha com medo, e sim curioso.
Agora, um trecho de uma anfitriã do Equipe:
Toco violino, canto e amo atuar. Apesar de tocar música clássica, gosto de ouvir música brasileira, funk, jazz, pop, rap e sertanejo. Moro em Higienópolis. Nunca saí dessa parte de São Paulo, na verdade. Morei em dois lugares na minha vida, os dois basicamente no mesmo bairro. Sinceramente, não sei o que espero do Jardim Ângela. Não vou ficar me baseando no que as pessoas falam. Tô completamente aberta a conhecer tudo e discutir com a galera.
A experiência, para usar a expressão de Rafael Gama Passos, o Rafão, 19 anos, costuma ser "sensacional". No intercâmbio do ano passado, o que mais marcou foi o contato com a natureza ("fomos para um lugar incrível, com vista para a represa") e do contato social no Ângela. "As pessoas se cumprimentam, se conhecem. Me senti seguro e fui superbem recebido por lá. Tanto que já voltei outras vezes para os eventos culturais da Banca. E de transporte público", conta. Já Stephanie Lauren Silva Santos, 15 anos, fez o caminho contrário. Visitou a Praça da Sé e o Museu da Língua Portuguesa durante as oficinas da Banca na EMEF Professor Clemente Pastore, em 2015. "Até então, o centro para mim era o comércio das barracas no bairro. A visita rompeu barreiras e mudou minha visão sobre a cidade em que vivo."
As pontes podem estar mais sólidas, mas alguns muros seguem de pé. De boné de aba reta, calça larga e camisa esticada, Diel hoje entra confiante pela porta da frente para dar aula nos colégios de elite da cidade. "Não vou mentir, o desconforto com os olhares ainda está ali. Mas é como o Bola me disse quando era pivete: se eu não representar minha quebrada, ninguém vai. Vou ficar."
Fotos: Alfredo Brant
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