Eram ex-alunos com idades entre 16 e 19 anos, prontos para ajudar. "Nossa escola sempre foi boa. Temos de lutar por ela", disse um deles. Chamando-os pelo nome, Pimentel agradeceu a ajuda. Olhos cheios d'água, duas alunas do 7º ano se aproximaram. O simples "Como estão?" foi a senha para as lágrimas verterem. Numa cena que se repetiria muitas vezes ao longo do dia, Pimentel as enlaçou com força, dizendo: "Conto com vocês. Contem comigo. Juntos, vamos superar isso".
Estudantes, pais, professores, equipe gestora e moradores da região tomaram a escola pelas mãos depois que o ex-aluno Wellington Menezes de Oliveira invadiu duas salas de aula, assassinou a tiros 12 crianças e se suicidou. A dor, expressa em cartazes, flores, discursos de homenagem, no choro e nos semblantes de tristeza, era imensa. Mas o espírito de reconstrução também era. Havia muito para reerguer. Naquele 13 de abril, uma celebração ecumênica encerrou simbolicamente o luto de sete dias e devolveu a escola à sua comunidade.
Foi o marco da retomada da Tasso, como é chamada pelo pessoal de Realengo, na zona oeste do Rio de Janeiro. Distante 40 quilômetros do centro da cidade, o bairro de 236 mil habitantes, que Gilberto Gil ensinou o país a abraçar, tem o quinto pior indicador de crimes fatais entre as 33 regiões administrativas da capital fluminense. Áreas dominadas pelo tráfico, como Fumacê e Vila Vintém, ficam a dez minutos de carro da escola. Mas seu entorno, conhecido como Piraquara, é tranquilo. Nos dias de verão, lembra uma cidade do interior, com moradores conversando do lado de fora das casas e dos conjuntos habitacionais. Como se lia em num cartaz colado no muro da escola: "Nosso bairro é pacífico. Respeitem Realengo".
A Tasso combina bem com esse ambiente. Inaugurada em 1971, registrou no início do ano 1.163 matrículas no Ensino Fundamental e na Educação de Jovens e Adultos. Nas avaliações externas, não é nenhum prodígio, mas também não faz feio: média 4,9 no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) na 4ª série (0,1 abaixo da nota do bairro e 0,3 acima da do município) e 3,9 para a 8ª série (0,5 melhor que a do bairro e 0,1 superior à do município). Seu ponto forte, garantem os professores, é o clima de trabalho. Boa parte deles tem mais de 20 anos de casa. Uma equipe com baixa rotatividade, como se sabe, é um importante requisito para implantar (e acompanhar) mudanças duradouras e melhorar a qualidade do ensino.
Auxílio psicológico contra o trauma
"A tragédia vai contra o espírito pacífico
e solidário em que vivíamos até então.
Tenho a certeza de que, por meio do apoio
que temos recebido, seremos capazes de
transformar a dor em algo positivo
para os alunos."
Carlos Pimentel, professor de Arte da
EM Tasso da Silveira há 20 anos
O contraste com esse cenário de paz amplificou o choque causado pela tragédia. Os mais afetados, como era de esperar, são os estudantes que presenciaram o atentado. Alguns relatam o medo de voltar à escola. "Meu filho não dorme à noite e quase não come. Ele chora sempre e diz que não quer mais estudar lá", afirma Luciana da Silva, mãe de um aluno do 6º ano. "É um comportamento que deve ser tolerado nas primeiras semanas", afirma o psiquiatra Felipe Corchs, do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (USP). "Para algumas pessoas, o contato imediato com estímulos relacionados ao trauma pode atrapalhar a recuperação." Depois desse período mais agudo, o ensino pode ser retomado aos poucos, já que a rotina de estudos ajuda a trazer certo conforto contra o horror e o choque.
Ao passar por eventos que representam uma séria ameaça à vida, a maioria das pessoas consegue melhorar sozinha. Uma parcela, porém, desenvolve algum tipo de transtorno de estresse e precisa de tratamento. Depois da tragédia de Realengo, amigos e parentes das crianças assassinadas apresentaram quadros de estresse agudo, com sintomas como lembranças indesejáveis e pesadelos recorrentes, medo de sons, cheiros e imagens que lembrem o crime, insônia e irritabilidade. Acompanhados por médicos e psicólogos, eles passam períodos do dia na Clínica da Família Olímpia Esteves, no bairro de Padre Miguel, participando das chamadas oficinas de brincação. Parte delas recebe medicação.
Desde que os mais de 60 tiros nas salas das turmas 1801 e 1803 mudaram para sempre a história da Educação brasileira, especialistas tentam montar o quebra-cabeça da tragédia. Bullying, facilidade de acesso a armas, banalização da violência, ausência da família, o efeito viral dos tiroteios, repressão sexual, fundamentalismo religioso, associação com o terrorismo... A única certeza é que esse foi um episódio isolado, fruto de um grave transtorno mental. "Uma condição patológica como a de Wellington é resultado de uma conjunção única de fatores genéticos e ambientais, específicos da história de vida dele", explica Telma Vinha, especialista em Psicologia Educacional da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e colunista de NOVA ESCOLA.
A exceção que provoca debates amplos
"Crianças, adultos, idosos... O bairro
todo participou da pintura do muro
no dia 16 de abril. A Tasso sempre foi
uma boa escola. Quero colaborar
para que ela volte a ser o que era."
Hercilei Antunes, pai de uma aluna
do 5º ano, vizinho e voluntário
da escola há 15 anos
O caráter de exceção, porém, não impede que o episódio suscite reflexões - como sobre a necessidade (ou não) de reforço na segurança escolar. É evidente que, por uma questão de proteção, instituições onde circulam crianças precisam de controle de acesso. "Mas exigir aparatos de segurança é decretar a falência dos instrumentos pedagógicos para lidar com o problema", argumenta Renato Alves, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP. A Tasso da Silveira, felizmente, não embarcou integralmente na paranoia: a prefeitura deslocou um guarda municipal para a porta da escola, mas descartou a elevação dos muros e a instalação de detectores de metal.
Entretanto, a polêmica mais acalorada foi sobre a influência do bullying no massacre. Por quê, entre tantos lugares, o atirador elegeu justo uma escola - a sua escola - para perpetrar barbaridades? Para Telma, não se pode afirmar que eventuais maus tratos tenham determinado a tragédia. "Mas a escola tinha significado para o atirador. Não se destrói um lugar em que se sente acolhido", diz a especialista. Também impressiona o fato de quase nenhum professor se lembrar de Wellington como aluno. O perfil de aluno bonzinho, que não pergunta nada, não atrapalha a aula e nunca se mete em confusão em geral esconde uma personalidade submissa, que faz de tudo para não entrar em conflito. "Por não darem trabalho, essas pessoas são as que menos recebem atenção", explica Telma. Acabam atravessando a trajetória escolar como se fossem invisíveis, torcendo para que a rotina de humilhações tenha fim.
O resultado é que, em vez de favorecer a convivência e o aprendizado, a escola se transforma num lugar do qual se quer fugir e, se possível, apagar da memória. De alguma forma, a dor e o absurdo nos levam a perguntar: que tipo de ambiente educativo estamos oferecendo a nossas crianças e jovens? A tarefa inadiável, nesse ponto, é a formação de identidades. "Esse trabalho deve ser feito no dia a dia, com a criação de espaços de diálogo e expressão de sentimentos. A escola precisa incentivar a assertividade, situação em que o indivíduo considera a perspectiva do outro, mas não anula a sua própria", diz Telma, que defende a inclusão na grade horária de assembleias de resolução de conflitos e momentos de reflexão sobre a relação entre a comunidade escolar.
Discussões desse tipo têm aparecido nas reuniões de professores durante a retomada das atividades. A reconstrução vem acompanhada de altas doses de incerteza: ninguém sabe muito bem o que fazer após o período de readaptação nas primeiras semanas, dedicadas a oficinas e atividades artísticas. Algumas mudanças mais simbólicas já estão definidas: as salas que foram palco do tiroteio virarão espaços de apoio pedagógico e de informática, e as turmas (que, a princípio, não serão reorganizadas) serão chamadas por cores em vez de números. Por se tratar de uma situação extrema, a equipe pensa em esperar a reação dos alunos - e a dos próprios docentes - para decidir rumos. "Vamos primeiro avaliar a resposta em relação à superação da tragédia. Só depois retornaremos com os conteúdos curriculares", conta Marduk. Para Corchs, da USP, essa é, de fato, a opção mais indicada. "Os alunos podem melhorar mais rapidamente se sentirem que a escola está ali para acolher", destaca.
Essa não foi a primeira vez que a Tasso precisou de ajuda. Na década de 1990, o prédio da escola estava condenado. "Moradores protestaram na prefeitura, e nós organizamos aulas no meio da rua. Sem essa união, a reforma não teria saído do papel", conta Leila D'Angelo, professora de Língua Portuguesa, que estava na primeira sala invadida pelo atirador. O desafio, agora, é infinitamente mais difícil: ir adiante sem os sorrisos de Luiza, Milena, Igor, Rafael, Géssica, Laryssa, Ana Carolina, Bianca, Samira, Mariana, Karine e Larissa. A mobilização está à altura da tarefa. Envolve todo o Realengo. O Rio. E milhões de brasileiros que sofreram e agora torcem pela retomada. No dia 18 de abril, os alunos iniciaram o retorno à escola. Na saída, abraçados, pulando e cantando: "Uh! É a Tasso!", pareciam confirmar as palavras de Pimentel quando indagado sobre sua permanência: "É claro que vamos em frente".
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CONTATOS
EM Tasso da Silveira, tel. (21) 3465-9242
Felipe Corchs
Renato Alves
Telma Vinha
BIBLIOGRAFIA
Formação e Rompimento de Vínculos - O Dilema das Perdas na Atualidade, Maria Helena Pereira Franco (org.), 288 págs., Ed. Summus, tel. (11) 3872-3322, 63,90 reais