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Jornalismo

Alunos guaranis aprendem danças indígenas na escola

"Jajeroky jevy javya jova haguã." Em português, ''dancemos novamente para sermos felizes''. Em guarani, foi o jeito que um professor de Educação Física encontrou para mexer com a garotada de 1ª a 4ª série e recuperar antigas tradições indígenas adormecidas

PorRicardo Falzetta

01/03/2007

O combate ao preconceito em relação à cultura guarani

Foto: Marie Ange Bordas
Foto: Marie Ange Bordas

"Tudo começou quando eu, ainda adolescente, dançava com minha mãe em frente à nossa casa num dia de festa", conta o professor. Até então, ele seguia preceitos religiosos que nada tinham a ver com a tradição guarani, pois havia sido educado numa escola mantida por religiosos nas cercanias da aldeia. Surpreendido e reprimido por outras pessoas da igreja, que consideraram a cena uma ofensa, o jovem sentiu que aquela postura feria demais a cultura de seus antepassados. "Acho que superei um conflito interno e, naquele dia, resolvi abandonar tudo e decidi passar uma temporada fora para estudar." Da vizinha Dourados, alguns anos depois, Ismael voltou formado professor de Educação Física."Fui para a cidade com o objetivo de retornar e fazer algo por minha aldeia", lembra.

Com a vaga garantida na escola indígena (ainda há poucos professores graduados na comunidade), Ismael começou a pôr em prática seus planos. Numa viagem a São Paulo, a convite de uma colega de faculdade, ele conheceu o trabalho de índios guaranis que ainda preservam as danças. Na volta para casa, levava na mala um CD e um vídeo com as canções e as coreografias. Na primeira oportunidade, mostrou o material aos alunos. Foi o começo de uma batalha quase solitária com sua própria gente.

"Alguns pais, quando souberam que eu estava ensinando dança, proibiram os filhos de participar. Me acusaram de ser macumbeiro e fazer magia negra", relembra. Ismael, em várias ocasiões, esteve a ponto de desistir. Mas a alegria e o interesse do grupo que se formou deram impulso ao trabalho.

Depois de assistir ao vídeo repetidas vezes, a turma debateu as diferenças entre a língua que falam em Mato Grosso do Sul e em São Paulo. Obstinado, Ismael procurou as pessoas mais velhas da comunidade, que ainda preservam costumes, mesmo que apenas no ambiente familiar, e promoveu encontros entre os alunos e esses antigos líderes, bem menos influentes que outrora. "Minha intenção foi colocar as crianças em contato com eles para que ouvissem as histórias, vissem como é importante conhecer nossa cultura e não tivessem vergonha de ser índios", revela Ismael. A tática deu certo. "Os estudantes ficavam perplexos com a sabedoria dos idosos", conta. Nesses encontros, pessoas como dona Élida, 62 anos, e o pajé Ramon, 60, fizeram verdadeiras palestras sobre rezas, danças e outros hábitos. A moçada anotava tudo no caderno. Ou quase tudo." Algumas tradições não podem ser escritas, apenas transmitidas oralmente, como nos ensinou o pajé", explica Ismael.

Ramon também esteve na escola. Em contato com o material de São Paulo, ele apontou pequenas mudanças que deveriam ser feitas de acordo com a tradição caiová, um dos três subgrupos guaranis (os outros são o ñandeva e o mbya). "Fiquei muito feliz em poder falar com as crianças", diz Ramon. "A gente faz o que pode. Nossa casa de rezas foi queimada alguns anos atrás e já não há mais madeira nem disposição para erguer outra. Para sobreviver, eu tenho de ir para a roça todos os dias e já não sobra mais tempo para a pajelança."

Os alunos aprenderam a dançar jerojy, gauchiré e guahú

O pajé ainda mostrou como produzir a taquara decorada que os meninos empunham na jerojy, dança de defesa corporal que deveria ser ensinada na pré-adolescência. Instrumentos musicais, como o chocalho, e a pintura da pele com tinta à base de sementes já haviam caído no esquecimento. Mas Ismael, que também lecionava Arte em 2005, recuperou esse tipo de técnica, essencial para o guachiré (dança da alegria) e o guahú (dança ao som de uma melodia mais triste, que sustenta o lamento do pajé quando algo de ruim acontece).

Além de conversar com as pessoas mais velhas da comunidade, as crianças foram estimuladas a entrevistar os pais e a procurar informações sobre a formação da aldeia, sua localização e os problemas atuais. A poluição da água, por exemplo, é resultado do não-tratamento de efluentes despejados rio acima por frigoríficos e matadouros de porcos. Na sala de aula, os alunos leram e ouviram mais histórias sobre o tekoha (local onde vivem) e produziram textos.

Com as informações levantadas e as coreografias preparadas, a turma passou para os ensaios até a primeira grande apresentação, no dia 19 de abril de 2005. "Foi um sucesso.Vieram muitas pessoas da cidade e os pais dos alunos que dançaram ficaram muito contentes", comenta Ismael. Depois disso, o grupo passou a se apresentar em todas as festas comemorativas da região, inclusive no aniversário de Amambai.

A situação na aldeia, no entanto, não mudou muito. Ismael ainda enfrenta olhares atravessados de alguns moradores, mas ele e as crianças se tornaram referência. Se não consegue provocar mudanças imediatas no atual modelo social da comunidade, o Educador Nota 10 certamente está garantindo um futuro melhor para os guaranis. Até hoje, quando se pintam e se preparam para as apresentações, os jovens demonstram certa timidez no contato com os karai (brancos). Mal sabem eles que estes é que ficam tímidos frente à beleza e sabedoria de sua história.

Passo a passo do projeto de danças indígenas

Foto: Marie Ange Bordas

1. A lição dos mais velhos

O sol quente não tirou o ânimo de dona Élida, que, em seguida, dançou e cantou sem parar o guachiré, uma das danças que mais tarde seriam reproduzidas nas aulas de Ismael.

 

Foto: Marie Ange Bordas

Assim que começou a ensinar dança nas aulas de Educação Física, Ismael promoveu o contato da turma com antigos líderes da aldeia, como dona Élida. A sábia senhora falou durante horas com os alunos...

 

Foto: Marie Ange Bordas

...que, em guarani, anotavam suas impressões no caderno para depois produzir textos em sala de aula.

 

Foto: Marie Ange Bordas

2. As histórias do pajé

A pesquisa prosseguiu com o pajé Ramon, que, na escola, revelou lendas e mitos às crianças e ensinou a produzir adereços, como a taquara adornada para o jerojy, dança de defesa corporal. O primeiro passo é descascar o desenho que se quer.Em seguida, ensina o pajé, queima-se toda a superfície numa fogueira para escurecê-la.

 

Foto: Marie Ange Bordas

O resultado esperado surge ao retirar a parte que não havia sido descascada, criando um fundo claro e deixando o desenho em destaque.

 

Foto: Marie Ange Bordas

3. Os ensaios

Assim que começaram os ensaios na quadra da escola, a comunidade estranhou. A dança já não era mais algo típico dos guaranis de Amambai. Mas Ismael encontrou força na empolgação das crianças e seguiu adiante.

 

Foto: Marie Ange Bordas

4. A pintura

Pintar a pele com tinta à base de sementes também havia caído no esquecimento da aldeia. O professor fez reviver a tradição: traços paralelos para os meninos e circulares para as meninas.

 

Foto: Marie Ange Bordas

5. As apresentações

Como um diretor teatral, Ismael se afasta na hora da apresentação e deixa as crianças à vontade para mostrar a coreografia ensaiada. Mas não resiste e cai na dança também.

 

Quem é Ismael

Ismael Morel tem 26 anos, é filho de mãe indígena e pai paraguaio. Formado em Educação Física pela Unigran, de Dourados (MS), tem pós-graduação em Psicomotricidade e agora batalha por uma vaga de mestrado. Entre as diversas qualidades que apresenta, uma se destaca: jamais levanta a voz. Reside na argumentação clara e objetiva seu poder de convencer as pessoas e, sobretudo, seus alunos. Por mais que a turma esteja na maior algazarra, comandos rápidos e certeiros como uma flecha, disparados em guarani pelo professor, recuperam a ordem e a disciplina. Neste ano, Ismael foi convidado para uma conversa com o prefeito de Amambai, que pediu que ele se dedique em tempo integral ao trabalho com dança. E as conquistas continuam. Recentemente, ele foi eleito um dos vencedores do Prêmio Culturas Indígenas, promovido pelo Ministério da Cultura, e viaja em breve a Brasília para receber o troféu. 

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CONTATOS
Ismael Morel, thingpuques@bol.com.br
Escola Indígena Mbo'eroy Guarani/Kaiowá, Rod. Amambai- Ponta Porã, km 5, 79990-000, Amambai, MS, tel. (67) 3481-1810 

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