A Base transforma a abordagem do ensino de Ciências ao enxergar a criança e o jovem como protagonistas e agentes de construção de conceitos científicos. Lilian Bacich, assessora pedagógica de Ciências do Time de Autores de Nova Escola e coordenadora geral de pesquisa e de pós-graduação do Instituto Singularidades, fala sobre os avanços que a Base traz para o componente e como as escolas devem se preparar. Na entrevista a seguir, a especialista também comenta o que representa seguir uma perspectiva da investigação, atrelada ao letramento científico, para o trabalho do professor. Ela fala também sobre os demais desafios que devem surgir com a implementação do documento. Confira a entrevista:
NOVA ESCOLA: Como professores e escolas podem se preparar para implementar as mudanças indicadas na BNCC para a área?
Lilian Bacich: Em primeiro lugar, a equipe docente deve reservar um tempo em sua rotina para estudar a BNCC. Fazer uma leitura compartilhada para ter uma visão geral do documento, compreendendo qual a concepção de aluno, de aprendizagem e de professor que ele apresenta. Em seguida, começar a destrinchá-lo, entendendo como ele se organiza.
Em um próximo momento, começar a analisar a articulação entre as competências gerais, as específicas e as habilidades dos componentes curriculares. Não apenas em Ciências, mas em todos os componentes, é importante que os docentes compreendam a redação das habilidades da Base. Entender a relação entre o verbo, como mobilizador de um processo cognitivo, do objeto de conhecimento apresentado pela habilidade e do modificador leva os professores a um exercício de aproximação a uma lógica de construção de conceitos científicos por meio de processos e atividades. Ao organizar suas aulas com foco nas habilidades, há maior possibilidade de avanços conceituais conquistados no encadeamento, que é apresentado em um desenho em espiral. Por outro lado, é importante o exercício de leitura dessas habilidades para a identificação de oportunidades de contextualização, de complementação e de aprofundamento delas. A Base comentada, que pode ser baixada no site do MEC, oferece oportunidade de estudo, pela equipe docente, nas unidades escolares.
Além da leitura e estudo “vertical”, é importante dar início a uma leitura horizontal, identificando as possíveis articulações entre os componentes curriculares e, sempre que possível, mostrar ao aluno que o conhecimento não é fragmentado.
Quais são os avanços que a BNCC traz para Ciências?
A BNCC enfatiza o letramento científico que, apesar de não ser uma novidade no ensino do componente curricular, quando atrelado a uma proposta que privilegia a investigação, assume a possibilidade de ser construído por meio de um novo encaminhamento metodológico. Além disso, assim como ocorre em todo o documento, a preocupação com a formação integral do educando é algo evidente. As competências gerais da Base possibilitam a construção de um currículo de Ciências da Natureza que favorece o protagonismo do estudante ao estabelecer itens como pensamento científico, crítico e criativo; autoconhecimento e autocuidado; conhecimento, entre outros.
O documento enfatiza a questão da abordagem investigativa. Qual será o impacto desta opção para o trabalho do professor?
A abordagem investigativa é um divisor de águas: de um ensino de Ciências que privilegia a memorização e a transmissão de conhecimentos para uma proposta que entende o aluno como protagonista e agente de construção de conceitos científicos. Essa sistematização pressupõe a interação entre os conhecimentos já construídos pela criança e aqueles que são os objetivos da ação educativa. A preparação das experiências de aprendizagem, por parte do educador, torna-se mais desafiadora e, muitas vezes, imprevisível. Ao planejar uma aula apresentando um contexto que estimule os estudantes a assumir uma postura investigativa, por mais que ocorram direcionamentos para alcançar as habilidades previstas, as trilhas percorridas podem ser as mais variadas e isso exige do professor, mais do que um conhecimento amplo, uma flexibilidade para lidar com os “desvios de rota” que podem ocorrer nesse processo e, principalmente, uma habilidade de gestão do processo para possibilitar que crianças e jovens construam conhecimentos de forma colaborativa e em rede, mas com foco nos avanços conceituais.
Como você vê o uso dos espaços e materiais para o ensino de Ciências por investigação? As escolas estão preparadas?
Espaços e materiais não são um empecilho! Não há necessidade de laboratórios de ponta e equipados com materiais caros e frágeis. As propostas do ensino de Ciências por investigação estimulam a utilização do que estiver disponível: como sucata e objetos do dia a dia, utensílios de cozinha ou ferramentas, por exemplo. Ter oportunidades de explorar materiais e objetos comuns no cotidiano aproxima ainda mais o ensino de Ciências da realidade dos estudantes e desmistifica a ideia de que quem faz ciência é um cientista, de jaleco branco, fechado em um laboratório cheio de vidrarias. As escolas devem focar em preparar pessoas, e não espaços ou equipamentos. A formação de profissionais que compreendam como lidar com a ciência em contexto, no cotidiano, deve ser o foco das instituições.
Na introdução da área, o documento aponta também a necessidade de desenvolvimento do letramento científico. Como os professores podem trabalhar isso ao longo do Ensino Fundamental?
Ao privilegiar a investigação, os docentes levarão os alunos a identificar problemas para serem analisados e solucionados. Esse processo vai envolver: coletar dados, interpretar informação, analisar os resultados e comunicar suas conquistas, sempre com foco na intervenção possível, no entorno, no ambiente e na sociedade. Ao realizar essas propostas, o letramento científico é possibilitado. Entendendo que a finalidade do letramento é o desenvolvimento da capacidade de atuação no e sobre o mundo, favorecendo o pleno exercício da cidadania.
A Base estabelece uma progressão dos conteúdos em espiral. O que significa trabalhar com essa concepção?
Trabalhar em espiral significa que as habilidades vão aparecendo em maior nível de complexidade durante a escolaridade, com o intuito de avançar conceitualmente de forma cada vez mais ampla. Nos anos iniciais, há habilidades que estimulam a identificação, nos anos seguintes, em relação ao mesmo objeto de conhecimento. Espera-se que os alunos comparem e, em anos subsequentes, analisem elementos relacionados àquele mesmo objeto.
A Base propõe conteúdos de Química e Física para todos os anos do Fundamental. O que essa mudança exigirá dos docentes? E dos coordenadores pedagógicos?
Física e Química eram abordadas, com maior frequência, nos anos finais do fundamental e, agora, devem ser trabalhadas em todos os anos da escolaridade. O ensino de Ciências não tem um foco tão grande em Biologia, como ocorria anteriormente. Nesse sentido, haverá a necessidade de investimento na formação continuada dos professores deste componente curricular, estabelecendo uma troca entre os docentes especialistas em Física, Química e Biologia para que os objetos de conhecimentos dessas áreas possam ser articulados adequadamente e não sejam incorporados de maneira estanque aos currículos.
Em relação a formação do professor de Ciências, quais os principais desafios para auxiliá-los na implementação da BNCC na sala de aula?
Os principais desafios a ser vencidos são: 1) a adequação, nos anos iniciais de implementação, das novas habilidades para não gerar lacunas que dificultem a progressão. Ou seja, se um objeto de conhecimento, que era tradicionalmente trabalhado no 9º ano, passou a ser estudado no 8º ano, o aluno que chegou ao 9º ano no primeiro ano de implantação não pode deixar de ter contato com esse objeto; 2) apropriação de novas temáticas, que não eram usualmente trabalhadas nos segmentos e que devem ser incorporadas sob a ótica da investigação.
Como professores e gestores podem integrar assuntos de interesse local ao construírem seus currículos inspirados pela BNCC?
Com um olhar centrado na resolução de problemas, em paralelo à organização curricular desenhada para a instituição. Ao focar na resolução de problemas serão mais evidentes as questões locais e essa contextualização do conhecimento científico favorecerá o letramento científico.
Neste componente curricular, a relação ciência-tecnologia surge como objeto de estudo. Mas há também, no documento, a indicação da utilização de tecnologias digitais de informação e comunicação para produzir conhecimento e resolver problemas das Ciências. Como desenvolver isso na prática para que o uso da tecnologia seja realmente pedagógico?
O desafio que encontramos, hoje, de acordo com o que identificamos em algumas pesquisas nacionais e internacionais, é que, apesar das escolas implementarem as tecnologias digitais em sua rotina, adotando computadores, tabletes e outros equipamentos, elas ainda têm dificuldade em modificar as maneiras de lidar com o planejamento das aulas. Em geral, acabam fazendo uma transposição das aulas “tradicionais” para o modelo online e, para isso, reproduzem a mesma sequência de propostas com a exposição do conteúdo (de um para muitos), avaliação do entendimento por meio de testes etc. A mudança nas instituições de ensino tem sido mais lenta, e esse é o maior desafio, não só no Brasil, pois demanda alterações em vários níveis: infraestrutura educacional, formação de professores, estruturas curriculares, práticas de sala de aula e modos de avaliação, entre outros.
Dessa maneira, o primeiro passo deve ser traçar um projeto para essa implementação, lembrando que apenas prover a infraestrutura não será o suficiente: a mudança da cultura escolar não ocorre do dia para a noite e requer um planejamento de ação para que surta efeito. Cada instituição deve analisar seu próprio ritmo de implementação, não há uma receita pronta, mas questões a ser refletidas. Propõem-se, nesse aspecto, reflexões sobre a organização da sala de aula, a ressignificação do papel do docente, que é cada vez mais um facilitador, um mediador; a importância da elaboração de planos de aula que ofereçam experiências de aprendizagem que caminhem em direção à equidade, a gestão do tempo e, principalmente, estimular a experimentação e planejar formações para que os professores aprendam na e pela prática como levar esse uso das tecnologias digitais com intencionalidade pedagógica para a sala de aula.