"Nossas crianças não aprendem o que precisam"
A secretária de Educação Básica diz que a escola do Brasil parou no tempo e o MEC está fazendo um grande esforço para reorganizar o ensino
17/10/2016
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Jornalismo
17/10/2016
Maria do Pilar Lacerda Almeida e Silva,
titular da Secretaria de Educação Básica do Ministério da Educação. Licenciada em História.
O desafio de melhorar a Educação no Brasil exige uma ruptura com o passado. Essa é a avaliação da Secretária de Educação Básica, Maria do Pilar Lacerda Almeida e Silva. Atuou 25 anos em sala de aula e defende o diálogo constante do MEC com os educadores para que as decisões tomadas em Brasília não se distanciem da realidade das escolas. Mas o Ministério precisa agir com energia para quebrar o que ela considera ser uma tradição de exclusão do país: ter uma "escola para poucos", desinteressada em fazer com que todos aprendam. Para ela, os alunos que não avançavam eram escondidos e, quando finalmente se evadiam, a sensação não era de perda, mas de alívio. A mineira de Timóteo, especialista em gestão de sistemas educacionais, nesta entrevista propõe como a nossa escola pode deixar de ensinar só alguns.
Por que as crianças aprendem pouco nas nossas escolas?
Maria do Pilar Lacerda Almeida e Silva Elas aprendem menos do que deveriam e não exatamente o que precisam como crianças do século 21. Não pode ser oferecido o mesmo tipo de conhecimento de meados do século passado. A escola precisa de uma linguagem mais contemporânea e não pode achar que o conhecimento é um fim em si mesmo. Ele tem de fazer sentido para as crianças. Falta refletir sobre o que está oferecendo e como. Nossas crianças poderiam aprender muito mais, coisas diferentes e mais importantes.
Não falta um currículo mínimo nacional que sirva de referência?
Maria do Pilar Sim, isso é importante. Tanto a Constituição como a Lei de Diretrizes e Bases preveem uma base curricular federal. Essa base existe, se partirmos das avaliações nacionais que são feitas hoje. O Saeb, a Prova Brasil e o Enem pautam os currículos. Por outro lado, é preciso respeitar a independência de cada rede na definição do que ensinar, pois essa autonomia é necessária num país com tamanha diversidade cultural e econômica como o nosso. O MEC está reunindo um grupo de especialistas, coordenados pelo professor Antônio Flávio Barbosa, vice-presidente da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped), para fazer uma pesquisa sobre o que existe de currículo em redes municipais e estaduais. Isso para que o MEC no fim do ano não desconstrua nada e respeite os caminhos percorridos até agora, mas pretendemos demonstrar claramente que já existe uma base nacional e aperfeiçoá-la é possível. Queremos também construir algo mais concreto, que vá além da concepção de currículo e da sua filosofia. Queremos explicitar o que as crianças de 6 anos devem aprender, o mesmo para as de 7, 8 e assim por diante. O MEC publicará esse material, que não pode ser obrigatório pelo próprio regime federativo do Brasil, mas que pretendemos que seja utilizado como um organizador do sistema escolar.
E como está esse trabalho?
Maria do Pilar Vai indo bem. O grupo se reúne mensalmente e está subdividido em três: um para a Educação Infantil, um para o Ensino Fundamental e outro para o Médio. Temos a preocupação de agregar especialistas da academia e representantes da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime) e da União Nacional dos Conselhos Municipais de Educação (Uncme) para mantermos contato com a escola.
As avaliações servem como base para trabalhar os currículos, mas ainda são novidade no país. Elas estão se incorporando à cultura do sistema?
Maria do Pilar Eu acho que já passamos do estranhamento e da recusa ideológica. Sabemos hoje que essas avaliações não são planos internacionais nem estão aí para desestabilizar ou culpar ninguém. Essas avaliações ajudam a organizar a própria política educacional do Ministério. Começamos nos anos 1990 com uma avaliação amostral e em 2005 conseguimos fazer a primeira avaliação universal, que é a Prova Brasil. É um amadurecimento e é um avanço que permite que hoje eu, na Secretaria de Educação Básica do MEC, saiba quais são os 1.827 municípios que têm as maiores dificuldades educacionais e possa focar o trabalho neles. Então, para a gestão, a avaliação é muito importante. Para a gestão do secretário municipal também. Em uma cidade pequena, ele vê sua rede às vezes com dez escolas atendendo ao mesmo público e tem três escolas com nível muito bom e duas muito ruins - com as avaliações ele pode entender o que uma faz que a outra não faz e focar o trabalho em quem está fragilizado. Ou seja, para o gestor a avaliação é preciosa.
Ela joga luz sobre os problemas?
Maria do Pilar Exatamente. Ela mostra, por exemplo, que não é verdade que todas as escolas do Nordeste sejam ruins ou que todas as escolas de periferia sejam ruins. Ela mostra que existem belas experiências em lugares muito fragilizados, social e economicamente falando. Foi graças a esses dados que o Ministério e a Unicef puderam ver o que essas escolas e essas redes fazem que garante o direito de aprender. Eu acho que esse, sim, é um grande avanço, apontar o foco cada vez mais para a aprendizagem. Ninguém pode duvidar de que a escola é o espaço do aprender. Não basta mandar as crianças para a escola e comemorar: 'Ah, que bom, o acesso está universalizado!' Se for só para ter criança guardada num lugar, leva pro parque, que é mais barato e mais divertido. A escola é o lugar criado pela civilização moderna para que todos aprendam conhecimentos acumulados anteriormente e deem sentido para isso. E nós não podemos esquecer que a aprendizagem é um direito de todos. Nós trabalhamos muito tempo neste país com a concepção de que poucos aprendiam. Reprova o aluno e ele sai da escola... Por isso é que agora há esse estranhamento. As crianças não aprendem, a escola está ruim... O estranhamento é este: nós estamos com todos na escola e oferecendo para todos o que era de poucos. Não que a escola tenha de rebaixar ou piorar, mas ela tem de mudar.
A escola também está chocada?
Maria do Pilar Sim. Nossa escola ainda é aquela escola urbana, de classe média, dos anos 1950 e 60. É a mesma escola pública à qual eu fui, continua igualzinha: o mesmo sinal, a mesma organização, a mesma pretensão. Só que agora as crianças chegam ali sem nenhuma bagagem escolarizada porque os pais são aqueles que aquela escola não aceitou. Eles não têm familiaridade com o livro, com a estante, com o índice... Eu lembro quando fui trabalhar pela primeira vez numa escola pública, em 1984. No meu primeiro dia de aula na 5ª série, eu falei: 'Bom dia, eu sou a nova professora de História. Abram o livro no capítulo 2...' Aí um menino perguntou: 'O que é capítulo?' Eu falei: 'Capítulo, ora. Olha no índice!' Ele não sabia o que era índice. Era uma turma de repetentes e quase repetentes que a escola enfurnou fisicamente num canto do prédio para ninguém ver. E, enquanto meninos chegavam à 5ª série sem nunca terem visto livros, sem saber como manuseá-los, todos tocavam a vida. Ainda tem gente que acha que o simples fato de as crianças colocarem uma mochila nas costas e passarem para o lado de dentro do muro da escola os transforma em estudantes. E, quando a escola é confrontada com isso, ela se atrapalha. Como torná-los estudantes? Precisa de um projeto pedagógico, não é? E a escola não dá conta.
Por que a nossa escola não consegue ensinar todos?
Maria do Pilar Porque ela tem de sair do lugar. Ela tem de deixar de ser meramente transmissivista e conteudista - no sentido ruim da palavra - para principalmente conhecer quem são seus alunos. Talvez seja a mudança mais importante de todas, fazer o professor saber quem são essas crianças, como elas se chamam, o que os seus pais fazem... Ao criar esse vínculo com o estudante, o professor muda muitas vezes de lugar.
Como é possível alterar isso?
Maria do Pilar Eu tive uma experiência inesquecível em Belo Horizonte. Era vice-diretora de uma escola e um menino que estava no 3º ano do Ensino Médio me pediu uma dica do que usar como apoio para estudar. Eu não entendi a pergunta e ele explicou que em casa não havia mesa. Eu, com aquela visão de classe média, me espantei: 'Como não tem mesa? Onde vocês comem?' Ele falou: 'Na mão'. Não tinha uma mesa na casa dele, o que explica que a lição fique feia. A escola não sabe disso, então ela reclama que o caderno está amassado, a letra é feia, falta capricho... Se você se debruçar sobre o aluno de uma maneira investigativa, pesquisadora, vai facilitar a organização do projeto pedagógico. E esse estudo que o Unicef fez para o MEC sobre as escolas que têm melhor rendimento comprova isso. Quem são as escolas que têm as melhores notas na Prova Brasil? São as que têm bons diretores, um grupo de professores que conhece o projeto pedagógico da escola - e um projeto muito concreto. Os docentes sabem o que ensinar e o que fazer quando os alunos não aprendem. Também há uma forte participação da comunidade, ou seja, a vida real entra nessas escolas. Mas o que me chama a atenção é uma questão subjetiva: em todas elas, as pesquisadoras captaram um clima muito positivo dos profissionais em relação aos alunos. São declarações do tipo: 'Olha como eles são inteligentes', 'como são esforçados' etc.
É possível garantir a todos o direito de aprender sem exclusão?
Maria do Pilar O foco do MEC é esse. É investir na formação de professores, na carreira deles, respeitando suas especificidades profissionais. Eu cito cada vez mais e sempre me encanto com o livro Ensinar - Agir na Urgência, Decidir na Incerteza, do Philippe Perrenoud. Essa é a característica da nossa profissão. Eu dou um exemplo trivial: sou professora de crianças de 6 anos e dois meninos estão se bolinando na sala de aula. Não posso congelar a cena e chamar a universidade para me ajudar. Não há tempo. Minha base teórica é que vai me dar condições de intervir sem ser de maneira desastrada, sem marcar os meninos para o resto da vida de uma maneira traumática - e fazendo uma intervenção pedagógica. O professor pode falar: 'Mas eu estou lá para alfabetizar. Não tenho nada a ver com crianças se bolinando, se batendo ou uma tirando uma coisa da mochila da outra'. Tem. Seu espaço de trabalho é a sala de aula, com tudo o que tem dentro. Você não pode escolher 'eu só quero esse ou aquele menino'. Então, a formação teórica do professor é absolutamente estratégica porque é ela que dá uma rede de apoio para as decisões que ele toma.
A formação, então, é a chave?
Maria do Pilar O professor tem de ter uma formação inicial sólida e uma formação continuada eficaz. Ele tem de ter, o tempo inteiro, acesso a cursos e, por isso, a Universidade Aberta do Brasil, com seus mais de mil polos, está criando essa possibilidade.
O MEC tem alguma preferência sobre a base teórica docente?
Maria do Pilar Não. O Ministério tem de ser muito plural e garantir a qualidade. Uma das coisas que nós vamos fazer agora é mexer nos instrumentos de avaliação dos cursos de Pedagogia para provocá-los a aliar a teoria à prática e sairmos de uma discussão que eu acho desfocada. Para mim, o problema não é que eles só tenham teoria. Se fosse assim, estava muito bom. O problema é que tem gente passando pela faculdade sem ler Paulo Freire, sem saber quem é Anísio Teixeira. Está faltando um fio terra com a sala de aula, a de verdade. Eu não acho que o MEC tenha de definir uma linha. Tem é de exigir uma base teórica muito sólida e uma grande vinculação com o exercício do Magistério. Você não pode ficar quatro anos numa faculdade e, quando entra numa sala de aula, desistir. Eu não culpo os professores novatos, pois eles são preparados para aquelas escolas dos anos 1970. Precisamos transportar todo o sistema para o século 21 e isso não é fácil. Mas estamos no caminho.
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