Você acorda de manhã, acende a luz, toma um banho quente e prepara o café. Após se alimentar, limpa a boca com um guardanapo e lava a louça. Vai ao banheiro, escova os dentes e está pronto para dirigir até a escola para mais um dia de trabalho. Se parar para pensar, vai ver que, para realizar todas essas atividades, foi preciso usar água. A energia vinda das quedas d?água (via hidrelétricas) é que faz lâmpadas acenderem, chuveiros aquecerem e geladeiras refrigerarem. E para produzir o guardanapo que você passou pela boca é necessária muita água. Sem esquecer que o combustível de seu carro também contém
a substância.
Usando uma expressão que tem a ver com o tema, seria "chover no molhado" dizer que a água é essencial para a nossa vida. Sem ela em quantidade e qualidade adequadas, não é apenas o desenvolvimento econômico-social e a nossa rotina que ficam comprometidos, mas também a nossa própria sobrevivência. Só existimos porque há água na Terra. Por isso, a disponibilidade desse recurso é uma das principais questões socioambientais do mundo atual. De acordo com o relatório trienal divulgado em 2009 pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), em 2025, cerca de 3 bilhões de pessoas - mais da metade da população mundial - sofrerão com a escassez de água. "Se a média de consumo global não diminuir, o cotidiano da população pode ser afetado drasticamente, inclusive no Brasil", diz José Galizia Tundisi, presidente do Instituto Internacional de Ecologia de São Carlos e autor de livros sobre o tema (leia o artigo na última página).
Para ficar por dentro do assunto, o primeiro passo é compreender que, diferentemente do que ocorre com as florestas, a água é um recurso que tem quantidade fixa. Em teoria, dá para reflorestar toda a área desmatada da Amazônia, pois as árvores se reproduzem. Mas não é possível "fabricar" mais água. Segundo O Atlas da Água, dos especialistas norte-americanos Robin Clarke e Jannet King, a Terra dispõe de aproximadamente 1,39 bilhão de quilômetros cúbicos de água, e essa quantidade não vai mudar. Desse total, 97,2% dela está nos mares, é salgada e não pode ser aproveitada para consumo humano. Restam 2,8% de água doce, dos quais mais de dois terços ficam em geleiras, o que inviabiliza seu uso. No fim das contas, menos de 0,4% da água existente na Terra está disponível para atender às nossas necessidades. E a demanda não para de crescer.
A escassez hídrica na África é um problema econômico
Robin Clarke e Jannet King fazem um alerta: "Não se engane: o abastecimento de água no mundo está em crise, e as coisas vêm piorando". A crise a que eles se referem pode ser de três tipos. Há escassez física quando os recursos hídricos não conseguem atender à demanda da população, o que ocorre em regiões áridas, como Kuwait, Emirados Arábes e Israel, ou em ilhas como as Bahamas. E existe a escassez econômica que assola, por exemplo, o Nordeste brasileiro e o continente africano. Há ainda regiões ou países que vivem sob o risco de crises de abastecimento e de qualidade das águas pelo uso exagerado do recurso. Austrália, Espanha, Inglaterra, Estados Unidos e Japão sofrem com isso. "A recomendação da Organização das Nações Unidas (ONU) é que o consumo médio seja de 50 litros diários por habitante. Há países em que esse índice não passa de 5 litros. Já nas regiões mais desenvolvidas, uma pessoa usa em média 400 litros por dia", diz Tundisi.
A crise pode ser explicada por vários motivos: desmatamento, ocupação de bacias hidrográficas, poluição de rios, represas e lagos, crescimento populacional, urbanização acelerada e o uso intensivo das águas superficiais e subterrâneas na agricultura e na indústria (veja o infográfico)."Especialmente nos últimos 100 anos, o impacto da exploração humana dos recursos hídricos aumentou muito e trouxe consequências desastrosas", comenta Tundisi. De fato, segundo a Unesco, de 1900 a 2025, o total anual de consumo de água no mundo terá aumentado quase dez vezes.
O Brasil tem um bom volume de água, mas usa mal o recurso
FIM DO DESPERDÍCIO Não poluir os rios
é mais inteligente e viável
economicamente do que limpar suas
águas. E o consumo tem de diminuir:
a ONU recomenda o uso diário de
50 litros por habitante, mas há regiões
em que a média é de 400 litros.
Foto: Antonio Milena/Getty Images
O Brasil detém entre 12 e 16% da água doce da superfície terrestre. O país possui bons índices de chuva, o Amazonas é o rio de maior volume e nosso território ainda abriga o aquífero Guarani, o maior do mundo. Um aquífero é um reservatório subterrâneo, aonde a água das chuvas chega por infiltrações no solo arenoso. O Guarani se estende por 1,2 milhão de quilômetros quadrados e abrange oito estados brasileiros, além de áreas da Argentina, do Paraguai e do Uruguai. Essa água toda pode ser aproveitada com a construção de poços artesianos, o que já ocorre em vários locais. Se há recursos, por que os especialistas alertam que a situação é preocupante? "Essa abundância deve ser vista com reserva, pois a distribuição é irregular", diz Pedro Jacobi, da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP) e Coordenador do Projeto Alfa, da Comunidade Europeia sobre Governança da Água na América Latina e Europa.
"No Brasil, há muito desperdício, a distribuição não combina com as necessidades da população e a poluição é um grande problema", resume Tundisi. "A bacia do Tietê, por exemplo, está interligada com a bacia do Prata e a poluição do rio Tietê já chegou até lá. O país tem de se preparar para uma mudança na maneira com que lida com a água. Em vez de despoluir, é necessário pensar em não poluir. Isso é mais viável até economicamente, pois o rio saudável rende dividendos, além de a despoluição custar caro", diz Tundisi. A poluição das águas nacionais ainda é agravada pela falta de saneamento básico, que faz com que mais de 20% dos lares brasileiros lancem seu esgoto em córregos, rios e represas. Além disso, o desperdício não ocorre apenas pelo consumo da população. Calcula-se que mais de 30% da água encanada no Brasil seja perdida em vazamentos.
De olho nas pesquisas
Não só quem leciona Ciências ou Geografia precisa estar informado sobre a questão da água. O assunto está na pauta mundial e necessita ser tratado com critério e profundidade. Veja abaixo os principais erros no ensino do conteúdo e como evitá-los.
errado: Basear-se apenas no que trazem os livros didáticos.
certo: É essencial ler sobre o assunto em diversas fontes, como revistas e sites científicos, e se atualizar sempre.
errado: Tratar em sala apenas da origem e da composição da água.
certo: O ideal é abordar o assunto sob o ângulo da sustentabilidade e do consumo consciente.
errado: Ensinar o ciclo da água de forma esquemática, sem levar o aluno a pensar nas razões que proporcionam as mudanças de estado físico e na importância da substância para a vida.
certo: Estimular a investigação, com questões do tipo "por que a água evapora?", deixando que a classe chegue às possíveis respostas.
errado: Tratar da questão apenas como algo que está relacionado ao dia a dia do aluno, se esquecendo de discutir as implicações num contexto maior.
certo: Promover ações na escola e na comunidade que contribuam para preservar os recursos hídricos, mas sempre relacionando o uso do recurso nas esferas doméstica, social e global.
Consultoria Roberto Giansanti, professor de Geografia e consultor educacional, e Maria Teresinha Figueiredo, consultora em Ensino de Ciências e Educação Ambiental, Formação, Currículo e Material Didático do Instituto Sangari
As soluções são conhecidas, mas não representam um consenso
NOVOS CAMINHOS A crise de
abastecimento de água é real e está
piorando. Um dos caminhos para
alcançar a sustentabilidade do
recurso é a gestão integrada e o
estímulo da reciclagem, com o
aproveitamento da chuva e o controle
da irrigação nas atividades agrícolas.
Foto: Ryan McVay/Getty Images
No livro Colapso: Como as Sociedades Escolhem o Fracasso ou o Sucesso, o norte-americano Jared Diamond examina por que algumas civilizações deram certo e outras sucumbiram ao longo da história. Para ele, o uso da água e o superaquecimento global são questões que, caso não sejam solucionadas, podem destruir a nossa civilização. Com o foco nessa questão, a ONU criou a Década da Água (que vai de 2005 a 2015). Nesse período, deve haver uma concentração de esforços em reverter o quadro de deterioração do recurso no planeta. O fato é que já se diagnosticaram as causas do problema e as soluções são conhecidas, mas não há um consenso sobre como implementá-las.
Pedro Jacobi lista medidas que poderiam ser tomadas, como a fiscalização da exploração dos aquíferos, leis severas contra a poluição, reciclagem e aproveitamento de águas da chuva e controle do recurso usado na agricultura. Além disso, ele prega uma gestão de recursos hídricos participativa, integrada e descentralizada: "Temos de encontrar tempo para refletir e participar do debate sobre o fato de que até hoje a humanidade tem sido predatória e não pode mais ser assim, pois os recursos são finitos".
Problema de gestão
Sergio Lima/Folha Imagem/Folha Press
José Galizia Tundisi
Presidente do Instituto Internacional de Ecologia e professor titular da Universidade Feevale
A situação hídrica no Brasil envolve problemas de quantidade e de qualidade. Todos os sistemas de águas continentais, tanto os de superfície como os aquíferos subterrâneos, têm sofrido pressão permanente pelos usos múltiplos, pela exploração excessiva e pelo acúmulo de impactos de várias magnitudes e origens. Em vista disso, nesta década, o Brasil precisa lidar com desafios específicos no que diz respeito ao gerenciamento desse recurso.
Apesar de o Brasil possuir entre 12 e 16% da água doce da superfície do planeta, o país sofre com a distribuição irregular, a poluição e o desperdício. É fundamental a introdução de novos paradigmas, como a gestão integrada, a otimização de usos múltiplos e o aproveitamento integral, incluindo a reutilização, o tratamento adequado e a baixo custo e a economia de água.
Um dos principais desafios é melhorar a qualidade da água na zona rural, que é bem inferior à da urbana. Os problemas apresentados no campo se devem principalmente ao saneamento básico, ainda precário, além da contaminação por transmissores de doenças tropicais. Nessas questões, há exemplos a ser seguidos. Os países desenvolvidos tratam esgoto, cuidam dos mananciais e procuraram antecipadamente desenvolver tecnologia e programas de controle. Já nas nações subdesenvolvidas, houve um retardo: apenas para exemplificar, nos Estados Unidos, o esgoto tratado fica próximo a 100%, enquanto na América Latina não passa de 30%.
Outro desafio importante é reduzir o recurso utilizado na agropecuária de produtos de exportação, como soja, café, laranja e carne. Com esse consumo excessivo, estamos, no fim das contas, exportando também esse precioso bem. Há ainda questões como garantir à população das periferias das grandes cidades o acesso à água potável e de boa qualidade. Nos grandes centros urbanos, os rios e as represas estão poluídos, e já há casos de estresse hídrico em áreas notadamente populosas.
Com tudo isso, uma coisa fica clara: chegou a hora de o país se preparar para uma mudança na maneira como lida com a água, adotando uma visão mais ampla sobre esse recurso, que inclui valores estéticos e culturais. Faz-se necessário um conjunto de alterações conceituais na gestão, como o desenvolvimento de programas de integração de sistemas e criação de comitês de estudo. Mais do que nunca, é preciso pensar a gestão unificada em nível nacional, que aborde a recreação, o turismo e a navegação. Enfim, o conjunto de usos múltiplos da água.
Quer saber mais?
CONTATOS
José Galizia Tundisi
Maria Teresinha Figueiredo
Pedro Jacobi
BIBLIOGRAFIA
Água no Século XXI - Enfrentando a Escassez, José Galizia Tundisi, 256 págs., Ed. Rima, tel. (16) 3411-1729,
54 reais
Colapso: Como as Sociedades Escolhem o Fracasso ou o Sucesso, Jared Diamond, 686 págs., Ed. Record, tel. (11) 3286-0802, 70 reais
O Atlas da Água, Robin Clarke e Jannet King, 128 págs., Ed. Publifolha, tel. 0800-140-090, 40 reais