Em entrevista à Nova Escola, a professora da Universidade Federal da Integração Latino-Americana, Laura Fortes, doutora em Letras pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP), aprofunda o conceito e explica como o contato com outros idiomas ajuda a ampliar o repertório do aluno, trazendo uma nova perspectiva sobre a própria cultura e até mesmo sobre as posições construídas social e historicamente. Leia mais a seguir:
NOVA ESCOLA: O aluno que se apropria de uma segunda língua tem recursos para ler o mundo. Essa é uma afirmação pertinente? Em que sentido?
Laura Fortes: Acredito que, se o aluno passou pelo processo de aprendizagem de línguas com foco em suas diferentes práticas sociais – tanto materna quanto estrangeira –, poderá posicionar-se de modo engajado em diversos campos de atuação em nossa sociedade contemporânea. Nesse sentido, o contato com outras línguas poderá ampliar esse campo de atuação, possibilitando aproximações com outros efeitos de sentido, produzidos histórica e culturalmente. Por exemplo, em guarani, a palavra mba’eapo pode ser traduzida como trabalho ou arte, porque, segundo sua cosmovisão – modo de ver o mundo —, todo trabalho realizado é interpretado como arte e beleza. Em inglês, um dos exemplos mais emblemáticos é o do termo nigger, que, em contraste com a designação black, vincula-se a memórias historicamente construídas pelas grandes violências sofridas durante a escravidão e, mesmo em tempos atuais, carrega as marcas desses processos de sofrimento e discriminação.
A partir de uma nova perspectiva, trazida do contato com uma língua estrangeira, o aluno também passa a ver a sua própria língua materna e cultura de um jeito diferente? Pode explicar isso?
Há um texto conhecido da psicanalista Christine Revuz em que ela afirma que "aprender uma língua é sempre, um pouco, tornar-se um outro". Esse “outro” é o exterior e, ao mesmo tempo, o interior, que me constitui, pois só existo a partir do olhar do outro (família, amigos, colegas de trabalho e de escola etc.). Nesse sentido, o contato com outras línguas pode ampliar o repertório de modos de ver e de compreender o mundo, deslocando o olhar, trazendo uma aproximação do sujeito ao diferente e, ao mesmo tempo, uma nova perspectiva sobre sua própria cultura, que já não lhe é tão transparente. Uma vez que aprende que sua perspectiva do mundo não é a única, compreende e se apropria de outros conceitos e visões que, consequentemente, transformam posições construídas anteriormente.
Nesse processo de apropriação de uma outra língua, é importante que o aluno consiga se apropriar também de elementos da cultura, para que a língua tenha o valor formativo que a Base se refere?
A divisão de língua e cultura tem sido discutida por diversas pesquisadoras no campo da linguística aplicada, dentre as quais se destaca a Professora Maria José Coracini, da Unicamp, que defende a ideia de “língua-cultura”. Ou seja, não há separação entre língua e cultura, pois, ao enunciar algo por meio da língua, o sujeito já está, mesmo que inconscientemente, fazendo sentido a partir da cultura, isto é, a partir de conceitos, valores e ideologias socialmente e historicamente construídos.
Como o professor deve atuar para ensinar além da língua, a cultura, ou uma nova forma de ver e pensar o mundo?
A resposta a essa pergunta constitui um grande desafio, pois o ato de ensinar vai além das escolhas pedagógicas, metodológicas e didáticas. O ato de ensinar é dinâmico e, portanto, construído desde o planejamento até as interações em sala de aula e fora dela. Entretanto, eu arriscaria dizer que a concepção de língua-cultura, por exemplo, ou outras concepções de língua mais abrangentes (tais como as elaboradas pelas teorias de letramentos) possam constituir caminhos possíveis para a reflexão e atuação do professor no contexto de ensino formal de línguas.
A língua, inclusive a estrangeira, tem um valor linguístico, mas também um valor humano. Como esse último aspecto da língua deve estar presente nas aulas?
São dimensões que não se separam, pois são socialmente construídas. Daí a necessidade de abertura à diversidade linguística e cultural, pois é por meio dessa compreensão que se pode aprender o outro em sua diferença e, justamente nessa diferença, compartilhar, aprender, construir outros olhares, outros posicionamentos. Nesse sentido, a BNCC apresenta uma visão muito restrita da língua como valor humano, pois limita as experiências de contato com as línguas estrangeiras apenas à língua inglesa.
Como levar aos alunos esse conceito, na prática?
Não há um modo único de proposta didática. Mas acredito que uma forma de trabalhar com esse conceito em sala de aula poderia ser uma abordagem intercultural das diferentes línguas-culturas em sua diversidade, ou seja, oportunizar o contato — no sentido do letramento — com diferentes modos de fazer sentido em outras línguas-culturas, por meio de textos verbais e não-verbais diversos, passando por uma grande variedade de gêneros discursivos, sempre levando em conta que são produzidos e colocados em circulação por determinadas práticas sociais. Nessa perspectiva, os conteúdos não podem ser vistos como estanques e disciplinares, mas como dinâmicos e articulados de modo interdisciplinar, uma vez que as práticas de linguagem — línguas-culturas — são atravessadas por acontecimentos históricos, construção (e desconstrução) de conhecimentos em diversas áreas, processos econômicos e políticos etc.
O modo de avaliar também precisa mudar?
A meu ver, as avaliações devem ser coerentes com os conteúdos abordados e devem explicitar ao aluno os seus percursos de aprendizagem, com critérios coletivamente construídos, contribuindo para sua formação e para seu processo de aprender a aprender.
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