Temos de defender os jovens
Nos dez anos do Estatuto da Criança e do Adolescente, um de seus autores cobra mais participação das escolas
31/05/2000
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Jornalismo
31/05/2000
O filho de um coronel da Polícia Militar mineira recorda que no Colégio Tiradentes, que pertence à corporação, quem era expulso tinha de sair da sala carregando a carteira. Era a senha para que o sargento disciplinador soubesse que ali estava um garoto insubordinado, não um aluno indo ao banheiro. O punido era levado a uma sala onde eram aplicadas as sanções previstas no regulamento. "Que situação humilhante", recorda o pedagogo Antonio Carlos Gomes da Costa. Tudo coerente com o fim da década de 60 em um colégio identificado com o regime militar.
Uma década mais tarde, como diretor da Unidade da Febem Barão de Camargos, em Ouro Preto (MG), ele agiria de forma diferente. As adolescentes infratoras eram convidadas a participar da elaboração do regulamento de cada curso que faziam. As próprias detentas estabeleciam as normas, como horários, lições e regras de silêncio, e eram as primeiras a cobrar quando alguém as quebrava. As lembranças do colégio militar ficaram ainda mais anacrônicas quando Costa expandiu sua experiência de Ouro Preto para todas as outras unidades, ao presidir a Febem?MG, de 1983 a 1985. No ano seguinte, como Secretário da Educação, espalhou seu modo de pensar por toda a rede pública do Estado. "A indisciplina e o vandalismo surgem quando a escola pratica o ?não-porque-não?. Se a negativa vem acompanhada da explicação, ela é respeitada", justifica.
Consultor pedagógico de entidades tão variadas como o Instituto Ayrton Senna, a Abrinq, a Fundação Odebrecht e o Unicef, Antonio Carlos Gomes da Costa é um defensor bem articulado do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), do qual foi um dos redatores. Prestes a completar dez anos, agora em julho, o manto protetor da infância e da adolescência vem sendo alvejado pelos que o acusam de ser conivente ou, no mínimo, brando com o menor infrator. "Quem diz isso quer apagar fogo com gasolina", rebate o professor.
A seguir, os principais trechos da entrevista que ele concedeu a Nova Escola, na capital mineira.
Nova Escola: Existem sete projetos no Congresso tentando reduzir a maioridade penal para 14 ou 16 anos. Essa é uma boa forma de responder à delinqüência juvenil?
Antonio Carlos Gomes da Costa: O Brasil é um país que, diante de suas mazelas, tem uma mentalidade ibérica, extremamente normatizadora. Existe uma crença de que, uma vez que o Estado legisla sobre determinada questão, ela está resolvida.
E, quando isso não acontece, a culpa é da lei. Nós temos, por exemplo, cerca de 2,7 milhões de crianças em idade escolar fora da escola, boa parte delas trabalhando. Diante desse dado, o que fazer? Melhorar as políticas educativas ou mudar a Lei de Diretrizes e Bases? O Estatuto da Criança e do Adolescente não foi sequer experimentado, na área do ato infracional, porque o governo nunca criou as condições mínimas para seu funcionamento. Não dá para tentar implementar uma legislação como a do ECA usando um aparato institucional igual ao da Febem de São Paulo. É como querer ouvir um CD numa eletrola de 78 rotações. O problema é que muitos órgãos de imprensa se aproveitam do clima de insegurança para, em vez de questionar a aplicação da lei, questionar a própria lei.
NE: O que faz a Febem do Pará ter um índice de reincidência de apenas 12% e a de São Paulo sofrer com quase 40%?
Costa: Pará, Bahia, Rio Grande do Norte e Roraima são Estados que fizeram um reordenamento da sua política em conteúdo, método e gestão. Já São Paulo é o lugar onde o estatuto foi mais sistematicamente ignorado e não se fez o reordenamento político institucional da Febem. Hoje, dentro de um regime democrático, a Febem de São Paulo é pior do que foi durante o regime militar, porque as condições se deterioraram, se investiu pouco e não se treinou pessoal. São Paulo não fez o "salto triplo", que era mudar o panorama legal (a única coisa que foi feita, graças à promulgação do estatuto), reordenar a instituição e capacitar os operadores. O Estado está pagando o preço de não ter levado em conta as exigências do ECA.
NE: Nos Estados que fizeram o "salto triplo", existe um projeto pedagógico?
Costa: Esse é o segredo. Existe uma proposta pedagógica baseada em três construções: estar compatível com o ECA, constituir equipes capazes de entender e operar essa nova proposta e construir equipamentos físicos compatíveis com a proposta e o trabalho das equipes.
NE: Como devem ser esses equipamentos físicos adequados?
Costa: A arquitetura tem de cumprir dois requisitos: exercer as funções de contenção e segurança, para que o adolescente não fuja, e ser capaz de gerar espaços estruturados para trabalhos educativos. Significa construir salas de aula, oficinas, praça de esportes, alojamentos individuais. Não adianta ter uma proposta pedagógica moderna dentro do Carandiru. Ninguém pode ficar amontoado em celas como se fosse um animal.
NE: Qual a diferença entre o ECA e os dois códigos de menores anteriores?
Costa: O que rege o estatuto é a doutrina da proteção integral da criança e do adolescente criada pelas Nações Unidas. Ela não se dirige apenas aos menores abandonados e infratores, mas diz respeito a todos os direitos das crianças.
NE: Isso quer dizer que antes do surgimento do estatuto não existia a noção de que crianças e adolescentes têm direitos?
Costa: A doutrina da situação irregular, que regia o Código de Menores, oscilava, como um pêndulo, entre duas vertentes: compaixão e repressão. A compaixão era uma política assistencialista voltada aos carentes e abandonados, enquanto inadaptados e infratores mereciam repressão. Quando o menino era pego na rua pela polícia, passava por uma triagem onde se fazia um laudo; depois, uma assistente social "rotulava" o menino como carente, abandonado, inadaptado ou infrator; e o caso era levado ao juiz, que aplicava uma sanção, freqüentemente a internação. O modelo anterior podia funcionar assim porque não se dirigia ao conjunto da infância do país. O que o estatuto fez foi separar questões de indagação jurídica das que tinham fundo social. Estas passaram a ser direcionadas ao Conselho Tutelar, tirando dos juízes a função de "assistentes sociais de toga", para a qual não foram preparados.
NE: Como o professor consegue aplicar medidas sócio-educativas semelhantes às previstas pelo ECA quando se defronta com alunos indisciplinados ou violentos?
Costa: O professor tem de estar preparado para o confronto, principalmente lidando com adolescentes, seres que se procuram e se experimentam. Por isso, a educação não é um caminho suave. Ele não deve fugir do confronto, nem pensar que por causa disso deixa de ser educador. Ele deve saber que sua profissão tem asperezas e não ter medo de assumir sua posição de pólo direcionador.
NE: O senhor pode dar um exemplo?
Costa: Há uma série de pequenos gestos que contam muito. No início do ano, em vez de o professor fazer supor que tem uma falsa memória de elefante, pode pedir a cada aluno para escrever seu nome em uma folha de papel e desenhar ali um símbolo que tenha a ver com ele mesmo, como um brasão. Ao explicar para a classe e o professor o que aquela imagem significa, o estudante estará trabalhando a questão da identidade, ponto de partida para qualquer projeto de vida.
NE: Explique melhor a ligação entre o professor e o projeto de vida do aluno.
Costa: É preciso distinguir o sonho de um projeto de vida. Sonhar não precisa de etapas, já um projeto tem metas, objetivos e prazos. E muitas vezes o aluno não consegue identificar isso nele próprio. O professor não pode se ver apenas como transmissor de conhecimento. A mídia e a internet são cada vez mais eficientes nessa tarefa, mas não funcionam como transmissores de valores. O problema é que o professor foi preparado para a docência e hoje se exige que ele seja um líder, um criador de acontecimentos, dentro e fora da sala de aula.
NE: A capacidade de transmitir valores e atitudes não implica uma mudança muito grande para os professores?
Costa: Os cursos de treinamento de professores costumam focar apenas o aspecto profissional, desprezando seus comportamentos e atitudes. Mas ele deve ser visto na complexidade de sua personalidade. E quando o professor assume seu papel de transmissor de valores, ele descobre que já sabia disso.
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