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Jornalismo

Helena Sampaio: "O Fies deveria ir para o estudante, não para a universidade"

Professora e pesquisadora da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) fala sobre diversifcação institucional, setor privado, acesso, inclusão e equidade

PorElisa Meirelles

01/04/2015

Helena Sampaio. Foto: Arquivo pessoal/Helena Sampaio
Helena Sampaio Professora da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Pesquisa sistemas comparados de ensino, diversificação institucional, setor privado, acesso, inclusão e equidade.

As mudanças nas regras do Fundo de Financiamento Estudantil (Fies), colocadas em discussão nos primeiros meses deste ano, trouxeram à tona os gargalos do financiamento do Ensino Superior brasileiro e os desafios de garantir a expansão das matrículas a todos os alunos. De um lado, representantes do governo pressionam pela mudança nos mecanismos de repasse de recursos para instituições privadas. De outro, mantenedores de universidades e faculdades particulares temem que as mudanças impactem o ritmo de crescimento do setor.

Grande parte das discussões está pautada no rápido e intenso avanço dos valores disponibilizados à iniciativa privada por meio do Fies. Nos últimos quatro anos, os gastos do governo federal com o programa passaram de 1,1 bilhão para 13,7 bilhões (um crescimento de 1.145%), enquanto as matrículas em instituições particulares não aumentaram na mesma proporção (crescendo apenas 13% de 2010 a 2013). 

Na opinião de Helena Sampaio, professora da Faculdade de Educação da Unicamp e especialista no tema, repensar a estrutura atual do Fies é fundamental para garantir a qualidade da graduação.

Quando começou a expansão do Ensino Superior privado no Brasil?
HELENA SAMPAIO Muita gente diz que a privatização se iniciou nos anos 1990, mas não. Desde a década de 1970, as matrículas nesse setor já representavam 60% do total. Nos anos 1980, o porcentual chegou a 65% e hoje está em 74%. O que ocorreu recentemente é que, como todo o Ensino Superior se expandiu, o setor privado passou a abarcar muito mais gente, impulsionado especialmente por dois programas federais. O primeiro é o Programa Universidade para Todos (Prouni) e o segundo é o Fies.

O que caracteriza cada programa?
HELENA O Prouni concede bolsas a alunos que tenham concluído o Ensino Médio na rede pública e contem com renda familiar de até três salários mínimos. Trata-se de uma iniciativa com maiores exigências, que coloca como pré-requisito também alcançar ao menos 450 pontos no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). O Fies, por sua vez, é um programa de concessão de empréstimo ao estudante para custear a formação superior em instituições particulares. Ele traz regras mais brandas, como o teto de 20 salários.

Nos últimos quatro anos, observamos no Brasil uma evolução acelerada do Fies, que passou de 1,1 bilhão para 13,7 bilhões investidos. O que levou a esse crescimento?
HELENA Embora não seja uma iniciativa nova, o programa passou por uma reestruturação a partir de 2008, que contribuiu para sua expansão em larga escala no país, ocorrida entre 2010 e 2014. Entre as mudanças, destacam-se a diminuição da taxa de juros, a dispensa do fiador e a dilatação do prazo para pagamento da dívida - para um curso de quatro anos, por exemplo, o estudante tem 12 anos para quitar as parcelas.

Qual foi o impacto dessas facilidades para as universidades privadas?
HELENA As mudanças foram como sopa no mel para os mantenedores de instituições particulares. Acostumados a reclamar das altas taxas de inadimplência e vivendo um período de mudanças que não favoreciam muito o setor, eles viram no Fies a opção segura para garantir suas taxas de crescimento. Com o investimento público, o setor privado não corria mais nenhum risco. Caso o aluno evadisse, já haveria recebido o pagamento do governo, que ficava com o ônus. Outro ponto importante é que, no Brasil - diferentemente de outros países que adotam sistemas de financiamento público para a rede privada -, são as instituições que recebem os recursos, não o estudante. Há aí um problema, pois o Fies não deveria ir para a universidade, mas para o aluno, que poderia decidir a instituição em que vai estudar.

Que impactos essa alocação direta de recursos traz para a qualidade do ensino?
HELENA Um dos problemas desse modelo é a ausência de concorrência entre as faculdades particulares, prática que poderia contribuir para a melhora do ensino. Quando você estabelece o financiamento público para o aluno, as instituições têm de conquistá-lo e precisam ter qualidade. No limite, ele pode mudar de faculdade, levando o financiamento consigo. No Brasil, não. O estudante é que fica vinculado a quem detém o dinheiro repassado pelo governo, sem opção de escolha.

As medidas propostas pela União no começo deste ano alteram essa estrutura?
HELENA Não. O financiamento continua indo para as instituições, mas há uma tentativa da União de alterar as regras e retomar o controle do Fies, colocando exigências que freiam essa expansão realizada às custas do dinheiro público.

Quais foram essas exigências?
HELENA Uma das mudanças propostas é o controle dos reajustes nas mensalidades das universidades e faculdades particulares. Fiz um levantamento e os preços, que até 2010 estavam decrescendo porque havia uma grande oferta de cursos e as instituições disputavam alunos, passaram a subir consideravelmente, onerando mais os cofres públicos. Agora, o governo exige que os valores só possam ser reajustados no nível da inflação. Outro ponto importante é a definição de uma nota mínima no Enem para a adesão ao programa, como já acontece com o Prouni. Trata-se de uma alteração imensa porque hoje o Fies funciona muito para pessoas mais velhas, que já estão no mercado de trabalho e têm, no Ensino Superior, uma possibilidade de encontrar um emprego melhor. Essa população muitas vezes não está suficientemente preparada para alcançar uma pontuação razoável no exame, ficando de fora.

Se as mudanças forem implementadas, deve diminuir o número de vagas na rede privada. Isso pode impedir a expansão das matrículas no Ensino Superior proposta no Plano Nacional de Educação (PNE)?
HELENA As mudanças, na verdade, impactam pouco. O gargalo existente no Brasil não está em liberar vagas, mas em garantir a conclusão do Ensino Médio. A meta do PNE fala em ampliar a taxa líquida de matrículas no Superior (aquela que considera apenas os jovens de 18 a 24 anos) dos 20% atuais para 33%. Para tanto, é fundamental aumentar o número de formandos no Médio, é nele que ocorre a maior evasão. Sem uma real mudança aí, é muito difícil atingir a meta.

Uma vez superados os problemas do Ensino Médio, a questão das vagas no Ensino Superior pode se tornar um problema. É possível garantir as matrículas usando exclusivamente a rede pública?
HELENA Existe uma impossibilidade, não só no Brasil mas em outros países, de o Estado arcar com os custos de incluir todos os estudantes entre 18 e 24 anos no Ensino Superior público. Mesmo utilizando os 13,7 bilhões de reais hoje destinados ao Fies, não seria possível construir e manter universidades públicas suficientes para atender à demanda. Não há uma fórmula mágica para resolver essa questão. O financiamento público do estudante em instituições privadas é uma opção. Mas, para que funcione, o Estado tem de exercer o controle e garantir a qualidade do ensino. Para tanto, é fundamental também que os recursos sejam destinados não à instituição, mas a cada estudante, que pode escolher o melhor curso segundo seus critérios de avaliação.

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