A educação infantil dá retorno
Consultora mineira garante: o investimento feito na criança de até 6 anos gera lucro para o país porque previne a reprovação e a evasão e resulta na formação de cidadãos mais éticos
01/05/2000
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Jornalismo
01/05/2000
"Toda criança que receber uma boa formação antes
dos 6 anos dificilmente fracassará no Ensino Fundamental". Foto: Reginaldo Teixeira
A consultora em Educação Regina de Assis, relatora das Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação Infantil, costuma dizer que já fez de tudo em sua área. Ao 60 anos de idade, 34 deles dedicados ao Magistério, ela foi secretária municipal de Educação do Rio de Janeiro de 1993 a 1996. Antes, lecionou para turmas de Ensino Fundamental, do Normal de nível médio e também de Licenciatura e Pedagogia. Mas confessa: nada a cativou mais do que o trabalho com crianças de 3 a 5 anos, para as quais ensinava no início da carreira, em Juiz de Fora (MG), sua cidade natal. "Elas têm a curiosidade à flor da pele, muitas esperanças e expectativas, mas não sabem o que desejam ou podem possuir."
Na condição de membro do Conselho Nacional de Educação (CNE) até fevereiro último, Regina relatou o parecer sobre a existência e o funcionamento de instituições de Educação Infantil. O documento, que até o fechamento desta edição ainda estava na pauta do CNE para discussão e votação, virou alvo de polêmica por defender, entre outras coisas, que os professores desse nível de ensino tenham pelo menos formação em nível médio. "O Brasil só tem a ganhar com essas mudanças", argumenta Regina. Inclusive os governantes que só pensam em cifrões e lucro, garante. "Uma política de formação de professores para Educação Infantil não pode ser algo trivial se quisermos mudar a qualidade de nossa infância." Na última semana de março, ela recebeu a editora Denise Pellegrini em seu apartamento no Rio de Janeiro para a seguinte entrevista.
Por que a Educação Infantil precisa de um parecer como o formulado pela senhora para regulamentar seu funcionamento?
Regina de Assis: Meu parecer atende ao preceito da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), que determina o mês de dezembro de 1999 como prazo para que todas as creches e pré-escolas estejam incluídas nos sistemas educacionais, prioritariamente os municipais. Conselhos e secretarias de Educação de todo o país pediram ajuda para operacionalizar essa inclusão. O parecer pretende ajudar nessa transição para evitar que haja uma fratura no atendimento atual.
Por que poderia haver algum tipo de fratura?
Regina: Nós temos um grande número de instituições comunitárias que são mantidas por associações de moradores, organizações não-governamentais e grupos religiosos. Nem todas têm pessoal qualificado. E a Lei de Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil, aprovada há um ano, traz a necessidade de pelo menos um professor com curso Normal de nível médio. O parecer prevê um período de transição, para que não seja preciso fechar esses locais, colocando funcionários e crianças na rua.
Como se daria essa transição?
Regina: Propus que num espaço não superior a quatro anos todos tenham professores com pelo menos o Normal de nível médio. Esse tempo é suficiente para eles se formarem. Também o pessoal de apoio, como serventes e merendeiras, teria o mesmo prazo para concluir o Ensino Fundamental. Estamos levando em consideração o que determinou a LDB, que até o final da chamada década da educação, em 2007, todos os professores deverão ter concluído o nível superior. Ou seja, não estamos fora da realidade. Não há por que adiar uma decisão que precisa ser tomada.
Essa medida afetaria muita gente?
Regina: Os números mostram que 40% das pessoas que trabalham como educadores em creches são leigas, não têm nem o Fundamental completo. São semi-analfabetas. Isso não é mais aceitável num país como o Brasil. Quem lida com crianças pequenas, que não falam, não andam nem têm como se defender, precisa saber ler a bula de um remédio ou a receita de um alimento que deve ser preparado. Estamos procurando, do âmbito do Conselho Nacional, fazer a advocacia dos direitos das crianças de até 6 anos.
Além da qualificação profissional, que outros pontos o parecer destaca?
Regina: Ele joga luz sobre o que é indispensável para as instituições. Elas devem ter um regimento que as organize legalmente e uma proposta pedagógica acessível a pais, secretarias, conselhos tutelares e cidadãos em geral estabelecendo o que será feito em termos de cuidado e educação com aquelas crianças. Elas precisam ter também um ambiente físico razoável. Não há necessidade de luxo, mas segurança, bem-estar e higiene. Hoje, em algumas regiões, isso está muito longe da realidade. Quando você chega a uma favela, por exemplo, e entra num cubículo de 2 metros quadrados com cinco, seis, sete crianças amontoadas, algumas dentro de uma caixa de papelão, e uma senhora vendo televisão, só vem uma idéia à mente: isso está errado, as crianças não podem ser tratadas feito animais, elas têm mais direitos.
O que é pior: permitir um atendimento abaixo do que seria recomendável ou privar as famílias desse atendimento?
Regina: As duas coisas são ruins. Por isso, o Ministério e o Conselho Nacional de Educação, as secretarias estaduais e municipais, os conselhos de educação, da criança e os tutelares têm de agir. São eles que têm a responsabilidade de garantir que as instituições proporcionem locais com condições adequadas para todas as crianças.
As Diretrizes Curriculares Nacionais, que estão em vigor há um ano, já causaram impacto?
Regina: As creches e pré-escolas precisam se adaptar às diretrizes, que são normativas. A maioria delas está tomando conhecimento da lei, fazendo debates. A natureza dessas instituições é muito variada. Temos desde locais dentro de favelas, orientado por mães analfabetas, até as melhores classes em escolas públicas e particulares.
Os professores estão sendo formados para trabalhar dentro das novas diretrizes?
Regina: As universidades estão buscando atender à natureza da área, que deve ser orientada por profissionais da educação com capacidade de trabalhar com assistentes sociais, enfermeiros, pediatras, dentistas e terapeutas. Isso porque a Educação Infantil abrange a saúde, o desenvolvimento social, o atendimento à infância e à maternidade.
Como a senhora vê o decreto assinado em dezembro último, que tira dos cursos de Pedagogia a função de formar os professores para crianças de até 6 anos?
Regina: Para ser elegante, eu digo que esse decreto é no mínimo equivocado. Mas acho que ele carrega intenções que precisamos entender melhor. Em primeiro lugar, é inconstitucional, porque fere a autonomia universitária, garantida pela Constituição Federal de 1988. Além disso, o parecer vai contra a LDB, que prevê a convivência de três modalidades de formação desses professores: o curso Normal de nível médio, os Institutos Superiores de Educação e os de Pedagogia com habilitação para esses dois níveis. Diante da necessidade absoluta de bons professores, eu entenderia a criação desses institutos em locais onde não haja o acesso dos candidatos às universidades. Mas como uma alternativa, nunca como padrão. Que avaliação foi feita dos cursos de Pedagogia no Brasil para que um parecer dessa importância os proibisse de formar professores? Nenhuma. Fica a impressão de que ele foi criado para favorecer os tais institutos superiores.
Qual deve ser o perfil dos professores de Educação Infantil?
Regina: Em primeiro lugar, deveriam ser homens e mulheres. A discriminação que o sexo masculino sofre na área é um grande absurdo. Essa é uma fase da vida na qual a figura do homem é indispensável, principalmente pela ausência crescente do pai nas famílias. Com ou sem essa discriminação, os professores devem sempre tratar as crianças com afeto e rigor, impondo limites e abrindo horizontes. Eles têm de saber acolher, ouvir com interesse, apoiar e estimular os pequenos, levando-os a patamares mais elevados do conhecimento. Além disso, os educadores precisam ser muito curiosos e disciplinados. Por fim, é fundamental gostar das crianças, de estudar e de viver.
A União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime) reclama que o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef) causou a diminuição dos recursos da Educação Infantil. A senhora concorda com essa avaliação?
Regina: A LDB é muito clara. Não coloca a Educação Infantil como obrigatória, mas como direito das famílias e dever do Estado. Então, também é dever dele prever a dotação orçamentária. Isso deve ser feito tanto no âmbito do Ministério da Educação, via revisão de procedimentos com relação ao Fundef, quanto no âmbito do Ministério do Trabalho. A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) define que empresas com mais de vinte mulheres em idade fértil têm obrigação de propiciar uma creche, só que as empresas brasileiras não cumprem essa lei.
A senhora defende a união de várias áreas na formulação de uma política para o setor?
Regina: Com certeza. As grandes linhas da política nacional estão colocadas, primeiro, na Constituição, que reconhece o direito das crianças à educação no âmbito dos municípios, e também na LDB, que a define como a primeira etapa da Educação Básica. Quatro ministérios ? da Previdência Social, da Saúde, do Trabalho e da Justiça ?, com a coordenação do da Educação, devem se unir à sociedade civil, à universidade e ao curso Normal de nível médio, para que de fato se formule uma política nacional.
Investir nessa área resulta no melhor desempenho dos alunos mais tarde?
Regina: Pesquisas desenvolvidas nos Estados Unidos, na Escandinávia e na Itália mostram que a criança que passa por um bom programa de Educação Infantil chega ao primeiro ciclo lendo, escrevendo e trabalhando com quantidades muito bem. Além disso, molda uma boa auto-estima. Quem recebe uma formação adequada antes dos 6 anos dificilmente fracassa no Ensino Fundamental. Se os governos só estão pensando em cifrões, fiquem sabendo que vão lucrar, porque investir em Educação Infantil significa diminuir a repetência e a evasão.
E para a sociedade, o que significa esse investimento?
Regina: O Brasil só tem a ganhar, sobretudo do ponto de vista do desenvolvimento da cidadania. Essas crianças serão pessoas melhores, mais equilibradas, mais sofisticadas. Desperdiçar esses seis primeiros anos é uma negligência criminosa. Esse é um capital inestimável para nosso país. Estamos passando por uma crise ética grave. Onde isso vai terminar se não na redefinição de como educar as crianças? Educá-las não para que sejam apenas grandes inteligências, mas para construírem um quadro de valores éticos, políticos e estéticos. A definição de valores cidadãos não deve esperar até que a criança tenha 7 anos. Deve ser iniciada desde que ela é um bebê.
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BIBLIOGRAFIA
Criança e Seu Desenvolvimento: Perspectivas para se Discutir a Educação Infantil, Zilma Oliveira, 160 págs., Ed. Cortez, tel. (011) 864-0111, 16 reais
Creches e Pré-Escolas no Hemisfério Norte, Fúlvia Rosemberg e Maria Malta Campos, 358 págs., Ed. Cortez, tel. (011) 864-0111, 24 reais
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