Compreender, eis a questão!
Ensine a estabelecer inferência e previsão, estratégias que ajudam a entender melhor um texto
28/02/2003
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Jornalismo
28/02/2003
Aprender a ler não é só uma das maiores experiências da vida escolar. É uma vivência única para todo ser humano. Ao dominar a leitura abrimos a possibilidade de adquirir conhecimentos, desenvolver raciocínios, participar ativamente da vida social, alargar a visão de mundo, do outro e de si mesmo, como disse Carlos Drummond de Andrade no poema Infância. "E eu não sabia que minha história era mais bonita que a de Robinson Crusoé."
Faz mais de 500 anos que o gráfico alemão Johannes Guttenberg inventou a prensa manual e deu início a uma das maiores revoluções da humanidade, o acesso em massa à leitura. Ele criou a técnica da impressão provavelmente em 1453, mas só completou seu primeiro livro, a Bíblia, em 1455. No entanto, até hoje ler é um problema para muitas pessoas. Cabe à escola, em meio a tantas mudanças tecnológicas e sociais, estimular a leitura, melhorar as estratégias, principalmente de compreensão (um dos principais problemas de aprendizagem, segundo os exames de avaliação nacionais e internacionais) e oferecer muitos e variados textos. Dos caminhos a seguir, dois favorecem a intimidade dos alunos com o texto: ensinar a estabelecer previsão e inferência, estratégias que são invocadas na prática da leitura, logo no primeiro contato com o texto, e que devem ser "provocadas" conscientemente pelo professor na prática de leitura.
Se usadas com clareza, previsão e inferência exigem que o leitor acione conhecimentos prévios, como ideias, hipóteses, visão de mundo e de linguagem sobre o assunto. "A leitura é uma atividade de procura do passado de lembranças e conhecimentos do leitor. O que orienta o ato de ler é a direção, a elaboração do pensamento e sua imagem de mundo", diz Ângela Kleiman, professora do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas.
Os especialistas falam
"Que ninguém se iluda: só a leitura intensa permite conhecer os múltiplos recursos da língua e usá-los com eficiência, sem a decoreba gramatiqueira"
Marcos Bagno, escritor, tradutor e professor de Lingüística da Universidade de Brasília
"Ler em si não é viver. Ler é conseguir o devido combustível de idéias para viver em sociedade. E essa conquista passa necessariamente pela objetividade do ensino e pela qualidade da escola. Isso não é uma inferência, mas um fato real ou, no mínimo, uma previsão mais do que acertada"
Ezequiel Theodoro da Silva, professor da Universidade do Contestado, SC, e da Universidade Estadual de Campinas, SP
"O domínio das estratégias de leitura decorre de uma prática viva do ato de ler, de um lado vivenciando os diferentes modos de ler existentes nas práticas sociais; de outro, respondendo aos diferentes propósitos de quem lê"
Maria José Nóbrega, mestra em Língua Portuguesa e assessora em programas de desenvolvimento profissional
Dialogar com o texto
Durante a leitura, captamos informações pela aparência (tamanho do texto ou livro), a existência ou não de fotos e ilustrações, o tamanho e sua disposição no papel. Sem falar, é claro, no título do texto e no que já sabemos sobre o autor. É o primeiro contato que faz o leitor imaginar o assunto. Quer um exemplo prático? Leia o texto abaixo:
"A liberação de neurotransmissores é um processo probabilístico. Tal liberação, chamada de exocitose, ocorreria com uma probabilidade relativamente baixa. De cada cinco impulsos nervosos chegando à vesícula sináptica de células piramidais do neocórtex, apenas um liberaria o neurotransmissor".
Deu para entender alguma coisa? Quem não conhece neurociência dificilmente vai se interessar pelo assunto, porque não conseguirá estabelecer um diálogo com o texto. Ainda assim é possível perceber algumas características: não se trata de uma história, não há ação, o texto é informativo. Ou seja, nenhum texto passa em branco para quem é letrado. Isso é inferência, uma estratégia que leva em conta os elementos (sejam eles fotos, tabelas, gráficos, desenhos, a divisão dos parágrafos do texto, o significado de uma palavra) que possibilitam tirar conclusões a partir de dados avulsos e, por isso, incompletos.
Quanto menos conhecimento o leitor tem de um assunto, mais ele se agarra à inferência. É fácil inferir que abaixo temos um poema, pois ele está organizado em estrofes.
Veja agora como é diferente a questão do diálogo com o texto quando o texto faz parte de nosso repertório de conhecimento.
Teoria
Para entender o que se lê, é preciso:
• Conhecer a língua.
• Ter um objetivo.
• Ter experiências ou conhecimentos prévios sobre o assunto do texto.
O BICHO
Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem.
O autor é Manuel Bandeira, poeta do modernismo (leia mais sobre o escritor e esse movimento artístico do século XX no quadro abaixo). Mesmo quem não conhece nada sobre ele ou o contexto em que a poesia foi produzida consegue entender a mensagem, pois o poeta utiliza ferramentas da língua para expressar sua visão de mundo. Antes de ler O Bicho, quem tem informações sobre Manuel Bandeira pode antecipar o estilo ou o tema. Ou seja, um conhecimento do assunto, do autor, antecipa a expectativa da leitura. Isso é previsão. Quanto maior o repertório de uma pessoa, quanto mais experiências de leitura tiver uma pessoa, mais previsões ela é capaz de fazer. Quanto mais sabe sobre o mundo e a linguagem, melhor ela lê. Por isso, seu papel é apresentar vários tipos de texto e imagem.
Abaixo os puristas
O modernismo foi um movimento literário e artístico nascido na Europa e que se espalhou por vários países do mundo. Chegou ao Brasil na década de 1910. Na literatura, teve início em 1922 com a Semana de Arte Moderna, que contou com a participação de Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Graça Aranha, Guilherme de Almeida e muitos outros, no Teatro Municipal de São Paulo. Os modernistas ridicularizavam o parnasianismo, movimento artístico mais importante da época (que cultivava uma poesia de notável apuro de forma), e apresentaram uma renovação na linguagem e nos formatos, marcando a ruptura definitiva com a arte tradicional. O modernismo privilegiava os temas populares brasileiros, quase sempre com humor e irreverência. As regras gramaticais nem sempre eram respeitadas, sobretudo nos textos sem pontuação e nos versos descontínuos, o que era abominado pelo parnasiano Olavo Bilac.
Paixão pela vida
Manuel Bandeira (1886-1968) é uma das figuras mais importantes da literatura brasileira. Estreou na poesia em 1917 com o livro A Cinza das Horas e, na Semana de Arte Moderna, seu poema Os Sapos foi declamado, virando um dos marcos do movimento. Certa vez definiu sua obra como um "gosto humilde de tristeza", pois seus textos biográficos são marcados pela tragédia e a tuberculose, a melancolia e a paixão pela vida. Tratou de temas como o amor, a morte e o cotidiano, aliando freqüentemente o humor e a ironia amarga. Manuel Bandeira foi também professor de Literatura e membro da Academia Brasileira de Letras.
Quer saber mais?
Do Mundo da Leitura para Leitura do Mundo, Marisa Lajolo, 112 págs., Ed. Ática, tel. (0_ _11) 3346-3001, 20,90 reais
Ofício de Professor, vol. 3, Fundação Victor Civita, venda em bancas, 39 reais (a coleção de nove volumes)
Texto & Leitor — Aspectos Cognitivos da Leitura, Ângela Kleiman, 82 págs., Ed. Pontes, tel. (0_ _19) 3252-6011, 16,50 reais
Estratégias de Leitura, Isabel Solé, 194 págs., Ed. Artmed, tel. (0_ _51) 3330-3444, 39,00 reais
Leitura Significativa, Frank Smith, 168 págs., Ed. Artmed, tel.(0_ _51) 3330-3444, 36 reais
Helos Consultoria Pedagógica, R. Campevas, 120, 05016-010, São Paulo, SP, tel. (0--11) 3673-0728, e-mail: heloramos@uol.com.br
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