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Jornalismo

Telma Weisz fala da alfabetização nas escolas públicas nas últimas décadas

Uma das maiores especialistas em alfabetização no Brasil trata das práticas escolares frágeis que não ensinam a ler e escrever, das mudanças no ensino nas últimas décadas e da qualidade da formação docente

PorBeatriz Santomauro

01/04/2012

Telma Weisz. Foto: Gustavo Lourenção
Telma Weisz

Há 50 anos, ainda estudante do curso Normal, ela assumiu como professora sua primeira turma de 2ª série. "Não sabia nada sobre alfabetização", revela Telma Weisz. Suas vivências quando criança colaboraram para que analisasse a maneira pela qual os alunos aprendem. Começou a ler e escrever antes mesmo de ir à escola graças a um insistente contato com gibis e uma lista de nomes de pessoas da família escrita pela mãe, a pedido dela. "Usava aquelas palavras, já conhecidas, para comparar com outras que encontrava."

Sua trajetória como educadora e formadora de professores é marcada por feitos importantes para a história da Educação no Brasil. Foi uma das autoras dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) de Língua Portuguesa, consultora do Ministério da Educação (MEC) e supervisora pedagógica na elaboração e na implementação do Programa de Formação de Professores Alfabetizadores (Profa). No livro O Diálogo entre o Ensino e a Aprendizagem (133 págs., Ed. Ática, tel. 4003-3061, 43,90 reais), discutiu a diferença entre os processos que dão nome à obra. Escreveu também a apresentação de Psicogênese da Língua Escrita (300 págs., Ed. Artmed, tel. 0800-7033-444, 61 reais), título sobre as pesquisas realizadas pela psicolinguista Emilia Ferreiro e pela pedagoga Ana Teberosky, ambas argentinas.

Telma segue se dedicando às questões do mundo da alfabetização. É coordenadora do curso de pós-graduação sobre o tema no Instituto Superior de Ensino Vera Cruz (Isevec), na capital paulista. Responde também pela implementação e supervisão do Programa Ler e Escrever, que capacita os professores da rede estadual paulista e pela elaboração da prova do Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar do Estado de São Paulo (Saresp), aplicada aos alunos do 3º ano - ambas iniciativas com ótimos resultados. "Os dados das provas de 2011 revelam que 94,7% das crianças de 8 anos estão alfabetizadas", comemora.

Nesta entrevista a NOVA ESCOLA, Telma fala sobre a alfabetização ontem e hoje, traçando um panorama da área e apontando as fragilidades de algumas práticas atuais, e reflete sobre sua prática como educadora.

Qual a principal mudança na Educação desde os anos 1960, quando teve início seu trabalho na área?
TELMA WEISZ
Há 50 anos, metade da população fracassava na escola porque ela não era para todos. Se não fossem de classe média ou alta, as crianças eram tratadas como não ensináveis. Isso ficou mais evidente com a expansão do acesso ao ensino para as classes populares e pela migração da classe média para as instituições particulares. Essa separação pode ser notada até hoje, mas menos do que antes. A maioria dos professores atualmente assume que é obrigação ensinar a todos, ainda que não consiga. Mas não era assim que se pensava.

Quais os avanços na alfabetização?
TELMA
A grande mudança foi no início dos anos 1980, quando Emilia Ferreiro descobriu e publicou os dados de uma pesquisa sobre a psicogênese da língua escrita. Naquela época, no Brasil, não se falava mais sobre alfabetização. Isso era considerado um problema sem solução. Quando se divulgou a investigação da psicogênese, houve um renascimento da questão. A discussão não era mais sobre métodos infalíveis para todas as crianças ou qual era o método bom para os ricos e qual o bom para os pobres. Pela primeira vez, foi possível um olhar construtivista sobre um conteúdo escolar, aliás, sobre o mais escolar de todos os conteúdos. O sistema de ensino, que era feito para ensinar a ler e escrever, não conseguia dar conta disso e, de repente, se começou a vislumbrar uma possibilidade. O maior interesse pela pesquisa psicogenética foi na esfera pública, e não na privada, onde essa questão não era tão problemática. A rede estadual de São Paulo foi a precursora: em 1984, começou a difundir a informação. Fui convidada para trabalhar lá porque era estudiosa do assunto.

Apesar de frequentarem a escola há anos, muitos jovens têm dificuldades para ler e escrever. Por quê?
TELMA
Os analfabetos funcionais são produto de uma escola que produz não-leitores e não-escritores. Há uma ideia falsa de como se aprende a ler e escrever e o currículo - cheio de ideias ultrapassadas - é reflexo disso. Ensina-se gramática para que a turma produza textos escolares. Enquanto o ensino tiver esse foco, formaremos pessoas que não saberão ler e escrever. Não são as aulas de gramática normativa que levam alguém a ser um bom escritor. Bons textos são feitos por quem lê e redige regularmente.

Que contribuições a psicogênese proporcionou à área?
TELMA
Ela chegou para destacar a validade de pensar no conhecimento já adquirido pelas crianças independentemente da classe social a que pertenciam. Isso permitiu aos educadores olhar para o objeto de conhecimento e para o processo de aprendizagem por um novo ângulo. Era preciso dialogar com o aluno sobre o que ele sabia. Ocorreram muitas coisas interessantes para marcar a diferença no ensino. O professor passou a ser chamado de mediador, e o ensino, mediação, por exemplo. Hoje, esses termos não estão mais em voga, mas naquele momento foram importantes, uma forma de destacar que não era mais do mesmo. Quando a psicogênese entrou na escola, ocorreu um processo de construção de uma didática da alfabetização. A produção de práticas de ensino se tornou intensa a partir de 1985. O trabalho com projetos se desenvolveu depois, mas a forma de criar situações em que a garotada pudesse refletir sobre a escrita, seja sobre a linguagem, seja sobre o sistema, já vinha sendo pesquisada. No Brasil, não existia investigação didática, mas muita coisa interessante foi criada nos projetos de formação de professores.

As pesquisas não eram realizadas nas universidades?
TELMA
Não. No Brasil, a universidade esteve ausente, diferentemente do que ocorreu na Espanha, no Uruguai e na Argentina. Aqui, quem estudou o tema trabalhava com formação, como eu, e divulgava o conhecimento por meio de cursos e vídeos.

A responsabilidade de alfabetizar é apenas do professor dos anos iniciais ou de todos eles?
TELMA
De todos eles. Sempre haverá novos gêneros e desafios de leitura à medida que se avança na escolaridade. Isso faz da alfabetização quase uma situação permanente. Apesar disso, no sentido de aquisição do sistema de escrita, ela é uma missão do professor dos anos iniciais do Ensino Fundamental. Mas, se um aluno mais velho não dominar o conteúdo, a escola deve se responsabilizar pelo ensino dele. O trabalho tem de ser feito no contraturno ou durante as aulas regulares e por gente qualificada.

Por que no Brasil existe a separação entre letramento e alfabetização?
TELMA
Não gosto do termo letramento, embora tenha ajudado a colocá-lo em circulação no passado. Ele foi apropriado de forma inadequada. O que se falava, na verdade, era de alfabetização em contexto de letramento. Mas muitas pessoas separaram os dois termos para chamar técnicas de codificação de alfabetização e a compreensão dos usos sociais da escrita de letramento. Encarar a aprendizagem do sistema de escrita como uma etapa técnica e independente do ingresso à cultura letrada é um equívoco. Uma deve andar sempre ao lado da outra.

Quais os maiores equívocos cometidos pelos alfabetizadores hoje?
TELMA
Alguns têm uma visão estreita do processo, não sabem como incluir a análise dos textos nas atividades e acabam focados no trabalho para a aquisição do sistema (leia a reportagem). Outros não consideram o processo de aquisição do sistema na conquista da linguagem escrita. Essa integração não é visível a eles, que estão se apropriando do tema agora. Mas isso não é um problema. É parte do processo de aprendizagem pelo qual os educadores estão passando. É preciso um trabalho contínuo para que se aperfeiçoem.

As sondagens diagnósticas têm se popularizado, mas ainda dentro de diferentes perspectivas de alfabetização. Isso é um problema?
TELMA
Não. Essa simultaneidade faz parte de qualquer processo de transição. Ninguém passa do estado de ignorância absoluta para o de sapiência total. Assumir que um professor está pronto para lecionar perfeitamente depois de formado é errado. Uma situação desse tipo só funcionaria com robôs, e não com seres humanos. Na teoria construtivista, as pessoas sempre se movem em direção ao conhecimento e ele não é um produto, e sim um processo. Fazer sondagens em sala de aula representa um avanço, mas elas são apenas um meio para avaliar até onde o aluno foi, se ele aprendeu ou não determinado conteúdo (leia a reportagem). De nada adianta se o educador faz um diagnóstico inadequado ou não usa os resultados dele.

Hoje, se voltasse a lecionar como alfabetizadora, o que faria diferente?
TELMA
Tudo. Exceto ler histórias para a turma, o que fazia consciente de que ajudava de alguma forma. Na época, 50 anos atrás, eu não sabia nada sobre alfabetização. Nada mesmo, embora não concordasse com as ideias de alfabetizar com cartilhas, por exemplo. Para mim, isso sempre foi estranho e eu já considerava como as crianças pensam. Não me ocorria, no entanto, pedir que os alunos lessem a fim de avaliar o que eles sabiam. Quando olho para trás e me lembro do que aconteceu, sinto vergonha. Hoje, essa seria a primeira coisa que faria. Não parece óbvio? Para todos os efeitos, achava que nenhum dos estudantes sabia ler. E eu também não sabia ensinar... Talvez aquelas crianças tenham aprendido alguma coisa, mas se aprenderam foi graças a elas mesmas. É por isso que não ponho o dedo na cara dos educadores, não fico criticando só por criticar: eu já estive no lugar deles.

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