Idade acima da média
Ela foi difamada por séculos como uma época feia, suja e malvada. Chegou a hora de recontar essa história - e reconquistar a atenção dos alunos
PorPedro AnnunciatoLeandro BeguociCarla Almeida
09/08/2017
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Jornalismo
PorPedro AnnunciatoLeandro BeguociCarla Almeida
09/08/2017
A Idade Média é vista como um tempo de opressão e imundície. Por causa destas características nada abonadoras, é difícil falar dela - quanto mais engajar os alunos. Mas, e se eu te contasse que esse período era muito mais do que dor e ranger de dentes?
Era uma vez o Império Romano. Suas fronteiras se estendiam do norte da Europa ao oriente. Quando ele desmoronou, em 476, nasceu um novo tempo, fragmentado e inquieto. A escravidão foi, aos poucos, extinta. As mulheres deixaram de ser propriedade. Surgiram a assistência social e as universidades. Igrejas e seus vitrais iluminados mudavam a paisagem. No que hoje é Portugal e Espanha, judeus, cristão e árabes (que desfrutavam de banhos sensuais de fazer inveja aos mais libertinos de hoje) conviviam relativamente bem. Isso também é Idade Média.
Sim, teve violência, miséria e grandes tragédias, como a da peste negra do século 13. O que pouca gente conta é que houve muito mais. A historiografia já abandonou há pelo menos um século a ideia de que tudo era atraso durante aqueles mil anos após a queda do Império Romano. Mas será que essas descobertas já chegaram às escolas - e, mais importante, à sua classe?
Antes de examinar como a Idade Média aparece nas salas de aula, é preciso recuar no tempo para entender de onde vem essa péssima fama. Em seu livro O Mito da Idade Média, a historiadora francesa Régine Pernoud (1909-1998), uma referência no tema, explica que tudo começa com o Renascimento italiano. Em Florença, os artistas redescobriram (e idealizaram) a época de ouro de Roma e Grécia. Embora os medievais nunca tenham desprezado a antiguidade clássica, gregos e romanos eram vistos mais como referências do que como um horizonte a atingir. Na Renascença, isso muda. Sai a inspiração, entra a imitação.
A partir daí, os homens desse novo período passaram a forçar um contraste com a era anterior. "O próprio uso do termo ?renascimento? já é pejorativo. Joga luz sobre uma corrente e sombra sobre o passado", explica Flávio de Campos, professor de história medieval da USP e um dos grandes especialistas brasileiros no assunto. Afinal, renascer significa tirar da morte - e a Idade Média ganha contornos sombrios.
Séculos mais tarde, a ojeriza ao período ganha ainda mais força, especialmente por causa da Revolução Francesa. Para destruir a reputação da nobreza e da Igreja, os revolucionários reforçaram o estereótipo, em contraste com as luzes que eles trariam à humanidade.
Mas, aos poucos, a escola vem incorporando as novas descobertas e abandonando os preconceitos. O próprio Flávio é autor de uma coleção que integra o catálogo do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) e garante que nenhuma obra séria admite mais expressões como "Idade das Trevas", por exemplo. Ele opina, porém, que ainda se dá uma ênfase excessiva nos currículos ao Renascimento, o que pode gerar distorções.
A Idade Média concentra desafios comuns aos conteúdos de História. É um período distante, não homogêneo e longo, o que exige recortes tão grandes que, inevitavelmente, muita coisa fica de fora. Por isso, o professor José Guilherme Zago, que já foi formador do Programa Instituição de Bolsas de Iniciação a Docência (Pibid), sugere estratégias de comparação. Por esse método, é possível comparar a vida num feudo "clássico", bem conhecido nas escolas brasileiras, com a formação dos reinos da península ibérica, muito marcada pela presença árabe. Isso ajuda a compreender a formação de Portugal e oferece uma ligação muito interessante para falar da chegada dos europeus ao Brasil. Também vale relacionar conceitos conhecidos pelos alunos, como fronteiras, e explicar como elas eram diferentes naquela época.
Para ajudar você, professor, a dar conta dessa tarefa complicada, NOVA ESCOLA traz alguns pontos de partida. Além de derrubar mitos mais comuns, há também sugestões de obras que você pode estudar e até levar para a sala de aula.
Os mitos sobre a Idade Média que as pesquisas já desmontaram
O mito
As mulheres não tinham nenhuma importância na vida familiar, política e na sociedade.
A realidade
Sim, havia caça às bruxas e não existia uma espécie de "feminismo medieval". Mas essa é uma pequena parte da história. A Idade Média foi um período de ascensão para as mulheres, especialmente por causa da centralidade da Virgem Maria na religião cristã, que modificou a mentalidade da época em relação ao sexo feminino. Os reis passaram a ser coroados com as rainhas, que governavam de verdade. As comunidades monásticas femininas também tinham enorme poder, e muitas abadessas comandavam feudos gigantescos. Há registros, principalmente na França, que permitem verificar essa influência também na vida cotidiana: as mulheres tinham voz na família, voto nas decisões das aldeias e, em Paris, exerciam diversas profissões de prestígio.
O mito
Os tribunais católicos espalharam terror pela Europa e queimaram milhões de pessoas.
A realidade
A inquisição teve diferentes contornos em cada lugar e faz parte de um mundo em que a religião tinha um papel estruturante, diferente do que tem hoje. Como o Estado ainda não existia como o conhecemos, a Igreja assumiu o papel da justiça comum e religiosa - que, na verdade, se confundiam. Além disso, estudos recentes mostram que a maior parte dos processos terminava inocentando os acusados de heresia. E, ao contrário do que se imagina, eles tinham direito à defesa. Entre os condenados, só uma pequena parte recebia pena de morte - cerca de 2% na Espanha, por exemplo, o que corresponderia a pouco mais de 2 mil pessoas ao longo de cerca de dois séculos. Nos EUA, como comparação, cerca de 1500 criminosos foram executados de 1976 até hoje.
O mito
A mentalidade medieval era obscurantista, sobrepunha a fé à razão e barrava a ciência.
A realidade
A Idade Média produziu grandes pensadores que se caracterizavam exatamente pelo esforço em harmonizar fé e razão humana. O maior exemplo talvez seja o próprio Tomás de Aquino (1225-1274), frade de enorme influência na Teologia e na Filosofia. E foram as descobertas que começaram nesse período que criaram as condições para que a Europa se lançasse às grandes navegações. A Igreja era a principal financiadora das ciências e foi a inventora das universidades. Mesmo episódios controversos merecem ser esclarecidas. A condenação de Giordano Bruno (1548-1600), por exemplo, não se deu por suas ideias astronômicas (que, aliás, já eram debatidas nos meios acadêmicos desde muito antes), mas pelo seu pensamento religioso, considerado gnóstico na época.
O mito
A Renascença é um retorno à beleza clássica, que os medievais eram incapazes de reproduzir.
A realidade
Que o renascimento italiano produziu obrasprimas, ninguém pode negar. Mas também é difícil olhar para uma joia como a Catedral de Notre-Dame e não reconhecer que a Idade Média era repleta de beleza. Com uma arte rica de simbolismos e cores, artistas criaram obras de excepcional qualidade, valendo-se de grandes avanços técnicos: o arco ogival, que possibilitou que os tetos fossem suportados por paredes mais finas, permitiu que arquitetos projetassem enormes vitrais, como os que ilustram esta reportagem, tornando o interior dos templos mais iluminado. Além disso, as catedrais eram centros de conhecimento. Junto delas, surgiram as famosas escolas-catedrais, e suas cúpulas eram utilizadas como observatórios astronômicos.
A Civilização do Ocidente Medieval, de Jacques Le Goff
Traz uma síntese dos fatos e do pensamento do autor sobre período.
O Mito da Idade Média, de Régine Pernoud
O texto acessível com e pitadas de ironia desmonta as principais lendas.
O Outono da Idade Média, de Johan Huizinga
Uma obra prima da historiografia, é obrigatória para se aprofundar no tema.
Imagens: SHUTTERSTOCK/MUHARREMZ
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