Ansioso por ver as crianças lendo e escrevendo autonomamente, o professor pode deixar de prestar atenção no que elas já sabem e no que precisam aprender para construir conhecimento sobre o sistema de escrita. Se não planejar atividades desafiantes e intervir de acordo com as necessidades de cada um, corre o risco de não dar conta de etapas indispensáveis ao processo de apropriação do conteúdo, que começa ainda na Educação Infantil. Para a especialista argentina Diana Grunfeld, o potencial das tarefas de alfabetização está em deixar que as crianças experimentem e reflitam a respeito do sistema. Com a ajuda do educador, da interação entre pares e de diferentes fontes de informação, os pequenos serão capazes de utilizar o que aprenderam para ler e escrever e descobrir as características dos textos.
Quais as principais dificuldades que os docentes encontram para alfabetizar?
DIANA GRUNFELD Lidar com a ansiedade é uma delas. Tudo o que os educadores mais querem é que as crianças aprendam a ler e escrever convencionalmente, mas precisam ter calma e permitir que as escritas não convencionais também tenham espaço, pois fazem parte do processo de aprendizagem. Outra dificuldade é falar menos e escutar mais. A criança nos dá pistas sobre o que pensa a respeito da escrita e devemos deixar espaço para isso. A interação com o professor e com os colegas permite que ela evolua com a diversidade de opiniões e reflita sobre as melhores maneiras de realizar uma atividade.
Como devem ser as situações de ensino na alfabetização?
DIANA Elas não podem ser fragmentadas, como geralmente ocorre na forma tradicional de ensino, em que as letras são mostradas uma por vez. Reconhecê-las e conseguir traçá-las ensina muito pouco do que realmente significa ler e escrever e não revela o que é de fato um leitor e um escritor. Outra condição indispensável é que as situações tenham propósito comunicativo e função social. É importante os estudantes notarem que as atividades têm sentido.
De que forma pode ser organizado o conteúdo a ser trabalhado em uma turma de alfabetização?
DIANA Por meio das chamadas modalidades organizativas, que podem ser atividades permanentes, periódicas e projetos didáticos. Cada uma promove diferentes aprendizagens e reflexões sobre o sistema de escrita. As permanentes são cotidianas e servem para organizar a rotina. Por exemplo, fazer a lista dos alunos presentes e verificar a data no calendário para saber em que dia estamos. Já as periódicas não são realizadas diariamente, mas têm certa frequência, como a leitura de diferentes textos. Os projetos didáticos servem para trabalhar profundamente um ou mais conteúdos. Durante a realização deles é importante promover tanto a leitura e a escrita feitas pelo professor como pelos pequenos. Assim, será possível avançar e incentivar a autonomia do grupo. Em todas as modalidades, é preciso garantir o equilíbrio entre a aprendizagem das características dos gêneros textuais - como deixar o texto coerente e coeso - e situações centradas no sistema de escrita.
Faz sentido propor atividades de leitura para quem ainda não sabe ler e escrever convencionalmente?
DIANA Sim. Isso é feito por meio de leitura com contexto, que significa interpretar os textos com algum tipo de informação prévia. Por exemplo, exibindo cartazes com os meses e pedindo que os alunos encontrem janeiro ou junho. Eles sabem o que está escrito, mas não onde. Podem, então, relacionar seus conhecimentos aos índices gráficos para construir o sentido da palavra. Perceberão que, para achar janeiro, têm de primeiro encontrar a letra J, que também está em junho. Será preciso, então, encontrar o A e assim por diante. As crianças que estão mais longe de compreender o sistema alfabético terão mais dificuldades em tirar conclusões. Nesse caso, sugiro utilizar cartazes com palavras que comecem com letras diferentes, como abril e fevereiro.
No Brasil, os professores costumam propor a escrita de listas e textos memorizados para os alunos não alfabéticos. É o suficiente?
DIANA Não, isso é só uma parte do trabalho. Atividades como essa levam a turma a tentar escrever com autonomia, pois o foco delas não é o conteúdo - que já é conhecido -, e sim a reflexão sobre o sistema, ou seja, quais e quantas letras são necessárias. O educador não deve ficar restrito a isso porque as crianças precisam conhecer outros gêneros e as características deles. Se os pequenos estão estudando um animal, por exemplo, podem escrever as informações pesquisadas em textos informativos. Para isso, é importante refletir com eles sobre como se organizam as ideias desse gênero textual e que palavras e expressões são mais apropriadas a ele.
Nas turmas de alfabetização, é interessante promover atividades em grupo?
DIANA Sim. Muitas pesquisas mostram que o trabalho de interação contribui para a aprendizagem. As crianças devem pensar, discutir e entrar em acordo com seus pares, apresentando argumentos. No entanto, é necessário criar momentos nos quais elas tenham de pensar sozinhas.
É importante que o educador faça intervenções durante as atividades?
DIANA Sim, sem elas, as tarefas perdem o potencial de fazer a turma avançar em seus conhecimentos. As intervenções na alfabetização devem incluir as ideias do aluno. Não faz sentido intervir da mesma maneira com um que escreve usando grafismos e com outro que apresenta escrita silábica, por exemplo. Para os que ainda não conhecem as letras, o trabalho é mostrar como escrevemos o nome próprio, os dias da semana, além de apresentar o alfabeto, importante fonte de informação. Outra intervenção é pedir que os pequenos leiam o que estão escrevendo, acompanhando as letras com o dedo e observando como relacionam o falado e o escrito. Dessa forma, coordenam as emissões orais e os segmentos gráficos e compreendem que não se pode usar qualquer letra. Durante as intervenções, é importante dar tranquilidade ao aluno, porque, para aprender a ler e a escrever, ele precisa sentir segurança na condução do educador.
Quais os principais avanços da alfabetização na América Latina nos últimos anos?
DIANA Está claro que o problema do analfabetismo das crianças não tem a ver com elas nem com o fato de pertencerem a populações desfavorecidas. Hoje, já existe uma consciência do papel da escola e um olhar voltado para o ensino e a formação dos professores. Na Argentina, por exemplo, aconteceu uma mudança no currículo da formação do educador, permitindo maior profissionalização. Os currículos atuais informam mais sobre situações e intervenções. Estamos passando de uma escola expulsiva e homogênea para uma Educação heterogênea.
O que ainda é preciso melhorar?
DIANA Um dos desafios para a alfabetização é a importância dada à Educação Infantil. Desde cedo, as crianças já podem desfrutar da leitura e da escrita. Na Argentina, esses conteúdos são trabalhados desde os 3 anos, quando elas começam a interagir com o nome próprio, com a cultura escrita e a leitura de diversos textos. Nesse sentido, o Brasil ainda tem um grande desafio. Outra preocupação é melhorar as condições de trabalho dos professores. Hoje, a situação é tão ruim que cada vez menos pessoas querem seguir a carreira. A docência é uma profissão muito complexa e precisamos de pessoas bem preparadas para exercê-la. Além disso, a escola continua sendo um lugar que tem de dar conta de todos os problemas sociais. Acabamos fazendo coisas que não correspondem à nossa função e perdemos o foco do fundamental, que é o ensino. Temos de resgatá-lo para que a instituição seja um lugar de discussão coletiva, de problematização e de referências para os profissionais e a comunidade.
Foto: André Menezes