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Jornalismo

A palhaçada que virou conhecimento

As manifestações circenses tomaram conta da escola e das ruas de uma cidade potiguar

PorAnna Rachel Ferreira

07/08/2015

Em Macau, a 165 quilômetros de Natal, para ir ao circo não se paga ingresso. O picadeiro é a rua e a plateia é convidada a seguir o cortejo, atraída pela música: "Mais uma vez os palhaços estão pra rua / Essa alegria diz que a vida continua / Nossa risada é rá rá rá rá / O nosso choro é buá buá / O nosso abraço é cá cá cá cá / Venha com a gente brincar". Os palhaços que cantam e dançam pela cidade são alunos do 9º ano da EE Professora Maria Lourdes Bezerra. Com as aulas de Arte de Emanuel Alves Leite, eles encontraram no mundo circense uma forma de expressão.

"O circo reúne as artes do corpo, performáticas e visuais, por isso é importante trabalhá-lo", diz Ana Mae Barbosa, especialista em Arte Educação e docente aposentada da Universidade de São Paulo (USP). Para dar início à sequência didática, os estudantes responderam a um questionário sobre que representações artísticas havia no município, quais já tinham visto e o que gostariam de aprender. Eles quiseram saber sobre o circo, bastante presente na localidade - grupos populares costumam montar tendas perto da escola. Diante disso, Leite fez uma revelação: "Sou professor e também o palhaço Lombriga". Em seguida, anunciou que eles estudariam o tema.

A maquiagem escolhida pelos alunos refletia a identidade de cada um. Leite ajudou na pintura
Crédito: André Menezes

As primeiras aulas foram dedicadas à contextualização histórica do circo. Para isso, o educador criou um material de consulta sobre o assunto para a garotada, já que não havia algo do tipo na escola. Ele pesquisou imagens e informações em diversas fontes, como no livro Palhaços, de Mário Fernando Bolognesi (296 págs., Ed. Unesp, tel. 11/3107-2623, 44 reais) e organizou tudo em uma apostila, distribuída em classe.

Os encontros seguiram com leituras realizadas pelos estudantes e problematizações feitas pelo docente, que, por meio de discussões coletivas, associava os conhecimentos dos alunos sobre o circo com a história dessa manifestação artística. Eles aprenderam que ela combina várias linguagens e influências, como dos saltimbancos medievais (que faziam malabarismos e pirofagismo), dos guerreiros chineses (que praticavam acrobacias e equilibrismos), dos indianos (com contorcionismos e saltos), dos egípcios (que domavam animais) e dos gregos (com seus números de força nas Olimpíadas).

Com perguntas como "Quem vende maçã do amor tem outra função nos espetáculos?" e "O grupo circense fica na cidade sempre ou muda de lugar?", feitas por Leite, a classe traçou o perfil do circo tradicional, nômade e cujos integrantes exercem multiplas tarefas. As técnicas passadas de uma geração para outra nas famílias e o protagonismo do palhaço, que, muitas vezes, dá nome ao circo, foram outros pontos levantados.

Depois, os circos populares foram comparados aos modernos. A turma assistiu a performances em vídeo dos palhaços Fuxiquinho, Babalu e Facilita, conhecidos do povo potiguar, ao espetáculo A Reinvenção do Circo, do grupo canadense Cirque du Soleil (56 min, Sony Pictures, 19,90 reais) e ao filme O Palhaço (Selton Melo, 89 min, Imagem Filmes, tel. 11/4052-2500, 19,90 reais).

Ilustrações: Renata Borges

Os estudantes discutiram as diferenças do espetáculo internacional em relação ao popular, principalmente no que se referia ao palhaço. Eles observaram que o personagem era bem diferente daquele que conheciam, verborrágico e protagonista do show. "Ele aparece pouco", "É mudo" e "Não é de fazer rir", foram algumas colocações. Em montagens modernas, os artistas costumam ser treinados em escolas de ginástica e de teatro e o acúmulo de funções é raro. Eles também podem ser de diferentes países, trabalhar em regime contratual e se apresentar para públicos que falam outro idioma. "Mostrar diferentes modelos possibilita aos alunos ver com qual se identificam para então construir a própria identidade artística", diz Wellington Nogueira, fundador da ONG Doutores da Alegria.

O circo ganha vida

Os alunos vivenciaram três técnicas circenses: malabares, corda bamba e esquetes de humor. Para a primeira, confeccionaram bolas com bexigas e areia. O professor ensinou alguns truques e ampliou os desafios oferecidos conforme os estudantes avançavam. O slackline, voltado à prática esportiva, foi usado para a corda bamba. Além de caminhar sobre a fita elástica, eles reproduziram manobras do circo, como sentar no elástico.

Chegou a vez das palhaçadas. Organizados em duplas e trios, os jovens levantaram as esquetes que conheciam e elegeram uma delas para encenar. "Há muitos tipos de palhaço, mas é do tradicional, de nariz vermelho, que todos se lembram. Por isso, estudá-lo é essencial", explica Bolognesi. Nessa categoria, o foco foram os jogos de improviso, já que esse tipo de encenação tem uma linha mestra de acontecimentos, mas não são definidos roteiros detalhados. 

Em cortejo, os alunos saíram pelas ruas de Macau chamando todos para o espetáculo
Crédito: André Menezes

Uma das escolhas da garotada foi o quadro Namoradeira, em que o palhaço se diz apaixonado e recebe dicas do Escada - pessoa que dá suporte à piada - sobre o que falar para conquistar a amada. O problema é que ele entende tudo literalmente, dessa forma, expressões como "palavras doces" se tornam "rapadura", por exemplo.

Na etapa seguinte, os grupos tiveram de elaborar o figurino e a maquiagem para seu palhaço. Para isso, analisaram imagens de diversos deles e observaram o que as vestimentas diziam sobre elas. Eles repararam, por exemplo, que o macacão justo do palhaço Lombriga, vivido por Leite, acentuava a magreza dele. Ele explicou que essa era a intenção e a razão da escolha do nome. Também disse que o chapéu que usava remetia a Umarizal, sua cidade natal. A ideia era que eles criassem figuras com que se identificassem.

Jefferson estudou que figurino é ideal para compor o palhaço Zé Bolão, criado por ele
Crédito: André Menezes

Com maquiagem pastosa, os jovens testaram possibilidades de pintura no rosto. O professor fazia intervenções para incentivar a reflexão da turma. Por exemplo: caso a maquiagem fosse de alguém tímido, faria sentido a roupa ser curta? Dessa forma, surgiram palhaços únicos, que refletiam seus autores. "O meu é o Zé Bolão, por causa do meu tamanho", diz o aluno Jefferson Felipe Nascimento de Maria, 15 anos.

No Dia do Circo (27 de março), foi organizado um evento em que os estudantes apresentaram esquetes para a escola, conversaram com artistas profissionais e monitoraram oficinas circenses feitas com os mais novos. Nas aulas posteriores, Leite propôs jogos de improviso com base nos estudos da norte-americana Viola Spolin (1906-1994), da didática do teatro. A garotada também fez performances nas ruas da cidade. Os palhaços macauenses foram vistos por uma audiência atenta, que os premiou com aplausos e risadas. Desde então, o picadeiro segue aberto: parte da turma se uniu a um grupo de teatro e cria esquetes próprias. "Meu coração é do circo", orgulha-se Leonardo Emysael da Silva Varela, 15 anos. 

Foram feitas esquetes para os moradores locais, que riram com as piadas dos estudantes
Crédito: André Menezes
Reportagem: Anna Rachel Ferreira, de Macau, RN
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