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Jornalismo

Três desafios para uma Educação inclusiva

São necessárias mudanças de atitude ou de visão para que a inclusão seja mais do que uma lei ou uma intenção com as quais todos concordamos, mas na prática não conseguimos conviver com seus paradoxos

PorNOVA ESCOLA

05/08/2015

Lino de Macedo,

Lino de Macedo,
Professor aposentado do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP)

Ao se tornar para todos e, portanto, comprometer-se em praticar uma Educação inclusiva (Macedo, 2004), a escola fundamental aceitou, consciente ou não, o desafio de enfrentar e superar as diferenças entre culto e cultura. As instituições de ensino sempre foram um lugar do culto, de um conhecimento reservado para poucos. Culto indica a pessoa que "alcançou estágio superior de civilização, que é instruída" (Houaiss & Villar, 2001). Na Idade Média, por exemplo, era aquela que sabia ler em latim ou em grego. Hoje são os que compreendem a complexidade do conhecimento científico, que valorizam as evidências dele e o fazem um valor. Considerem-se, por exemplo, as cinco competências do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), que ajudamos a conceber em 1997 (Macedo, 1998). Nossa expectativa era de que o aluno que concluía a Educação Básica soubesse ler e escrever, compreendesse explicações científicas, resolvesse problemas e gerisse conflitos. Soubesse argumentar e compartilhar as questões sociais nos termos propostos pela sociedade atual.

Culto refere-se também à "reverência respeitosa a uma divindade" (Houaiss & Villar, 2001). Trata-se do lugar aonde vão as pessoas, no melhor de si, para rezar ou renovar a fé e o interesse em participar de um grupo que acredita em certos princípios ou valores. O oposto de culto é analfabeto, não instruído.

Cultura refere-se ao "conjunto de padrões de comportamento, crenças, conhecimentos, costumes etc. que distinguem um grupo social" (Houaiss & Villar, 2001). Está vinculada a uma atitude e forma de vida. No Brasil, estamos todos marcados pela cultura portuguesa e, católicos ou não, pela cultura religiosa herdada dos jesuítas. Somos influenciados, igualmente, pelas tradições africanas vindas dos escravos, pelos imigrantes japoneses, italianos, alemães, espanhóis, árabes, judeus etc. Religião, música, dança, alimentação, costumes e tantas outras referências culturais marcam padrões de comportamento, atitudes e valores. Cultura, em certo sentido, todos temos, ou somos atravessados pelo modo como ela se expressa em nossa vida, ricos ou pobres, analfabetos ou alfabetizados. O oposto de cultura não é sem cultura, mas contracultura (Llosa, 2013).

Cultura todos temos, cultos nem todos somos, ou, então, não somos em algum aspecto. É impossível viver socialmente sem ser atravessado pelas marcas culturais que influenciam as relações e definem práticas sociais. Pertencer a uma cultura, ter sua influência ou determinação, não é privilégio de quem frequenta e é bem-sucedido na escola, mas uma necessidade de todos. Em um momento em que a ideia de cultura está em crise, obrigam-se todas as crianças a se tornarem cultas, nos termos propostos pelo currículo escolar.

A expectativa atual é de que os alunos aprendam as coisas da escola e convivam entre si nessa instituição de modo a favorecer tal objetivo. Todos devem se tornar cultos e educados. Mas a instituição de ensino não sabe incluir as diferenças culturais que marcam a vida das crianças, modelando padrões de comportamento e valores. Não sabe considerar sonhos, certezas ou desilusões construídas no desenrolar de sua história, de uma classe ou outra. Os estudantes podem pertencer à mesma turma, mas certamente não são de uma única cultura. As diferenças não se restringem às possibilidades ou impossibilidades do corpo, mas estão nas formas - culturalmente modeladas - de se relacionar social, afetiva ou cognitivamente. 

A escola também não sabe ou não pode observar a complexidade da questão cultural nos termos em que ela se apresenta hoje. Daí não estranhar tanta dificuldade nossa em aceitar, valorizar, discutir, estabelecer limites ou regular as coisas que vêm junto com os alunos - Barbies, celulares ou tablets, tênis, bonés, vocabulários, gostos alimentares, comportamentos. Aspectos que eles aprendem, para seu bem ou mal, na cultura de casa, na convivência com os pais, vendo TV, jogando videogame, participando da sociedade com suas características e contradições. Agimos como se a cultura da escola tivesse força para, de modo prático, sem conflitos, se sobrepor à de casa ou da cidade, permitindo que o culto não seja perturbado pelas culturas de uns e de todos.

Em resumo, diferenciar e integrar culto e cultura, em sua complexidade, é o primeiro desafio para uma Educação ser inclusiva, porque se tornar culto implica reconhecer, aprender e transformar culturas. Assumir uma nova cultura, a escolar, pressupõe tornar-se culto. Isso sempre foi privilégio de poucos. Saberemos, agora, transformá-lo em um direito de todos?

Deficiência versus proficiência

Penso que as relações entre culto e cultura são comparáveis àquela entre deficiência e proficiência, quando vemos a questão na perspectiva biológica ou comportamental de crianças e jovens (Macedo, 2002). O propósito do ensino atual é que todos sejam proficientes nas coisas da escola e na qualidade das relações interpessoais que ela valoriza. As avaliações buscam julgar os alunos e posicioná-los em escalas de sucesso. Mas, o que fazer com as deficiências deles e de todos nós?

O problema, na prática, é que - tal como no âmbito da diversidade das formas culturais - somos muito diferentes nas possibilidades e interesses de sermos bem-sucedidos, levando-se em conta apenas as referências de nossos avaliadores. Eles buscam evidências que só podem ser estatísticas, que se expressam por meio de números e porcentagens, comparando um antes com um depois, ou uma escola X e uma Y. Mas, uma criança ou um jovem não se reduz a um antes ou depois. E também não são redutíveis a deficiências ou proficiências que as avaliações evidenciam. Os dois termos são relacionais, são extremos de um mesmo contínuo, recortes que observam o todo por uma de suas expressões parciais. O modo como os coordenamos indica qual é nossa visão de inclusão.

A escola de ontem caracterizava-se pela valorização da proficiência. E a de hoje, a que quer ser para todos, pelo que se caracteriza? Naquela só entravam ou ficavam alunos proficientes, capazes de ser aprovados por professores exigentes. Havia, também, as instituições especiais, dos fracos e vencidos em diferentes aspectos, mas principalmente por limitações físicas, orgânicas ou intelectuais. E existiam ainda muitas crianças e jovens sem escola, seja pela pobreza de sua classe social, seja pelas disfunções de seu corpo ou estrutura psíquica. Qual será o destino dessas tantas crianças que agora têm direito à mesma Educação, se continuarmos exercendo o mesmo olhar, mantendo a mesma estrutura de ensino, comparando-as com a mesma referência, supondo-as igualmente capazes da mesma proficiência? Como observar e coordenar deficiência com proficiência, neste sentido, é nosso segundo grande desafio, um desafio igual em complexidade àquele que diferencia e integra culto e cultura.

Educar todo e parte ao mesmo tempo

Há um terceiro fator não redutível aos dois primeiros, que precisa ser igual e sinceramente observado. Ele se refere ao fato de que cada um é único e singular, mas, ao mesmo tempo, parte de um sistema (social, natural, escolar ou qualquer outro). A Educação inclusiva prepara e respeita a criança e o jovem nessa dupla condição. Nesse sentido, não se educa a pessoa para ser apenas culta ou proficiente, mas para ser si mesma. Ser respeitado e honrado como si mesmo enquanto parte e todo ao mesmo tempo, integra os dois aspectos anteriores - a herança cultural e a genética - mas acrescenta um terceiro aspecto: o de poder se desenvolver como pessoa, nos limites da singularidade e das próprias possibilidades. Não podemos aprender, morrer, viver ou ser pelo outro. Podemos, sim, estar juntos, compartilhar, cooperar e cuidar dele, mas não substituí-lo (Macedo, 2010). Cada indivíduo é único, não importa quanto de cultura, escolaridade, deficiência ou proficiência tenha.

Nessa perspectiva, o compromisso de uma Educação inclusiva é promover ou mobilizar o ótimo de cada um. Explico o que quero dizer pensando em dois amigos, um com tetraplegia e outro com síndrome de Down. O primeiro só tem a cabeça para interagir de forma ativa com o mundo, em sua própria perspectiva. Ele pinta com a boca, é um gestor de sucesso de uma ONG, viaja, escreve, é pura dedicação aos outros e ao mundo. É bonito. Nunca o vi queixar-se, fazer de suas limitações uma desculpa para não ser o tanto e o como é. Ele sabe se beneficiar e oferecer o ótimo de si mesmo para todos. É pura presença e dedicação, um exemplo de proficiência, apesar de sua deficiência. Sobre o segundo, quero testemunhar o esforço da família oferecendo-lhe o ótimo para suas possibilidades de aprendizagem e desenvolvimento. Lembro aqui quanto ele respondeu bem a tudo isso e, hoje, jovem adulto, trabalha, viaja, namora e toca a vida.

Como nas outras duas questões, essa terceira também envolve desafios ou paradoxos. Por exemplo, só reconhecemos as pessoas que sabem ser si mesmas como parte e todo ao mesmo tempo na perspectiva de sua autonomia, sua competência ou suas funções executivas, entendidas como realizações culturais e escolares ou proficiências. Uma pessoa autônoma expressa independência, capacidade de autogoverno, e ao mesmo tempo pertencimento social e cultural (Macedo, 2012). É independente porque sabe ler e expressa pertencimento porque cultiva a leitura como membro de uma comunidade leitora, porque escolhe seus livros e domina os recursos necessários para sua assimilação. Uma pessoa competente é bem-sucedida, mostra o melhor de si em situações desafiadoras. Funções executivas implicam pessoas que sabem gerenciar a impulsividade, fazer planejamentos e antecipações, observar e coordenar diferentes aspectos de uma mesma situação. E o que são os que não possuem, ou não mais possuem, tais domínios ou excelências?

Pessoas são pessoas. São qualquer um, em suas diferentes formas e tempos de ser e viver. Têm histórias de vida que marcaram seus corpos, formaram padrões de conduta a serem mantidos, revistos, esquecidos, substituídos por outros. Praticar uma Educação inclusiva nessa terceira perspectiva é considerar a todos como cada um, mas um cada um concebido e respeitado em suas múltiplas possibilidades de combinação e permutação (Macedo, 2012). Não se trata de, para incluir, abrir mão do educar. Estamos falando, isso sim, de um novo educar que observa o ótimo de cada um, no nível ou limite em que pode se expressar, aqui e agora. Em sendo assim, culto e cultura, deficiência e proficiência, parte e todo podem se incluir, implicados nas mesmas condições, as que nos caracterizam como humanos e mortais.

Resumo

Diferenciar e integrar culto e cultura, considerar deficiência e proficiência em um mesmo contínuo relacional, e ver o aluno como pessoa - um todo e parte ao mesmo tempo - são três desafios para uma Educação inclusiva ou para todos. Neste texto, caracterizamos os desafios e imaginamos mudanças de atitude ou de visão para que a inclusão seja mais do que uma lei ou uma intenção com as quais todos concordamos, mas na prática não conseguimos conviver com seus paradoxos. 

Referências bibliográficas

  • HOUAISS, A., & VILLAR, M.S. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
  • LLOSA, M. V. A civilização do espetáculo: Uma radiografia de nosso tempo e da nossa cultura. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013.
  • MACEDO, L. Exame Nacional do Ensino Médio - Enem. Documento Básico. Brasília: Instituto de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), 1998.
  • MACEDO, L. Fundamentos para uma Educação inclusiva. Psicologia da Educação, São Paulo, v. 13, 2001.
  • MACEDO, L. A questão da inteligência: todos podem aprender? In: Marta Kohl de Oliveira; Denise Trento R Souza; Teresa Cristina Rego. (Org.). Psicologia, Educação e as temáticas da vida contemporânea. São Paulo: Editora Moderna, 2002.
  • MACEDO, L. Ensaios Pedagógicos: como construir uma escola para todos? Porto Alegre: Artmed, 2004.
  • MACEDO, L. Amor Florescentista. In: Jardineiro André Feliciano (Org.). Cultura Florescentista. São Paulo: Type Brasil, 2010b.
  • MACEDO, L. Los sujetos de Piaget y su educación. In: Juan A. García Madruga; Raquel Kohen; Cristina del Barrio; Ilieana Enesco; José Luis Linasa. (Org.). Construyendo mentes. Ensayos en homenaje a Juan Delval. Madrid: Libreria UNED, 2012, v. , p. 275-289.

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