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Jornalismo

Circe Bittencourt: "O bom livro didático é aquele usado por um bom professor"

Historiadora, é docente da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo e da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

PorFernanda Salla

01/02/2014

Circe Bittencourt. Foto: Manuela Novais
Circe Bittencourt Historiadora, é docente da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP) e da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)

Mesmo com muito tempo de vida - ele surgiu no Brasil no século 19 - e com tantas novas fontes de informação cada vez mais comuns na vida de educadores e alunos, como a TV e a internet, o livro didático não perde o posto de material pedagógico mais utilizado na história da Educação. Além de ser um objeto usado pelos estudantes, ele serve ao professor e já fez (e ainda faz em alguns lugares) o papel de currículo, fonte de informação para o planejamento de aulas e até de orientador da prática docente. Tudo isso sem nunca deixar de ser ideológico.

Ao mesmo tempo que o conteúdo desse tipo de publicação é influenciado pelas demandas do mercado, pelas diretrizes educacionais governamentais e pela conjuntura cultural de cada época, ele também é capaz de afetar tudo isso. Uma contradição, na opinião de Circe Bittencourt, pesquisadora que se dedica a estudar os livros didáticos há duas décadas. Ela defende ser imprescindível que os educadores saibam usar as obras como mais um entre os diversos instrumentos à disposição da aprendizagem dos estudantes. Não como o único recurso.

A função do livro didático mudou com o passar do tempo?

CIRCE BITTENCOURT Evidentemente, sim. No Brasil, esse tipo de obra nasceu junto com o currículo, quando a Educação escolar se ampliou, no século 19, e deixou de ser algo a que somente a elite tem acesso. Na época, a função das publicações dessa natureza era reunir os conteúdos que deveriam ser ministrados aos alunos. No mesmo século, o ensino começou a ser dividido em disciplinas, e os próprios professores de cada área produziam o livro a ser usado, fazendo dele o material que organizava as aulas. Pouco depois, surgiram as cartilhas e os métodos de aprendizagem. E, como não havia muitos cursos de formação de docentes na época, os livros didáticos assumiram a função de formar o professor - o que acontece até os dias de hoje porque muitos preparam as aulas com base no que consta neles.

As concepções pedagógicas que surgiram ao longo da história da Educação influenciaram essas mudanças de função de alguma forma?
CIRCE Sim, os livros didáticos acompanharam diversos movimentos. Do ponto de vista metodológico, até meados do século 19 acreditava-se que o aprendizado se dava pela repetição. Nessa mesma época, houve momentos em que a concepção era a de que o aluno aprendia ouvindo o professor, outros em que a escrita passou a ser valorizada. No fim do século 19, com a revolução tecnológica marcada pelo surgimento do rádio, da TV e do telefone, começa a chamada Educação pelos sentidos. Tudo isso aparece de algum jeito no material em questão.

Hoje, o fato de os alunos terem contato com muitas informações não faz com que o livro didático pareça obsoleto e perca o sentido?
CIRCE Não. Mesmo com muitos saberes à disposição, ele tem a função de sistematizar o conhecimento escolar. Os sites e programas de TV, por exemplo, podem ser usados como materiais didáticos, mas o papel da escola é reunir e organizar essas informações, se valendo do que o material impresso contém, além do conhecimento apresentado pelas crianças, é claro.

O que define o conteúdo apresentado nas publicações?
CIRCE Os livros seguem os currículos das redes e os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), que orientam as disciplinas e os conteúdos a ser apresentados na escola. Além disso, existe uma relação de mercado que influencia o conteúdo. As editoras se adaptam às demandas dos educadores fornecendo, por exemplo, mais materiais com atividades para os estudantes. Ao mesmo tempo, são as grandes editoras que fazem circular as publicações. Então, os livros didáticos também determinam o currículo das escolas no Brasil. É uma contradição.

O que faz um livro didático ser bom?
CIRCE O uso que se faz dele - e isso tem a ver com, entre outras muitas coisas, fazer da publicação um dos recursos possíveis para os estudantes, não o único. É possível trabalhar com fontes primárias de pesquisa, idas a campo e experimentos e outros mais. O bom livro didático é aquele usado por um bom professor.

O que é preciso levar em conta na hora de escolher uma obra a ser usada em classe?
CIRCE Para selecionar o material adequado, o educador precisa conhecer bem para quem vai lecionar. Tem de observar os alunos para saber qual livro mais os ajudará a aprender. Com base nisso, pode ser que o docente julgue necessário que a obra tenha uma linguagem mais simples ou muitas atividades, por exemplo.

Por que em algumas publicações escolares antigas e até mesmo em recentes encontramos visões reducionistas e até preconceituosas sobre fatos históricos?
CIRCE Para entender isso, é preciso situar as publicações no contexto em que foram escritas. Os autores repetem o que os historiadores afirmam, o que por sua vez reflete as crenças de uma época. Há acusações, por exemplo, de que o livro didático tenha sido o responsável por criar a ideia de índio como alguém selvagem e ignorante. Porém, quem ditou tudo o que se falou por muito tempo sobre os indígenas foi o historiador Francisco Adolfo de Varnhagen (1816-1878), autor de História Geral do Brasil, de 1854. Ele se coloca como um anti-indigenista.

O livro didático é inevitavelmente um portador de ideologia?
CIRCE Sim, porque por princípio a Educação é ideológica. Valores são transmitidos na escola o tempo todo. Por causa disso, os professores devem cuidar da escolha das obras didáticas. É necessário que eles se preocupem, por exemplo, com a maneira com que são apresentados os conceitos fundamentais de cada disciplina nos livros, com as recomendações de leituras extras, a que autores elas remetem e também com a qualidade das imagens e das legendas. Todo curso de formação de professores deveria ter um espaço para leitura e análise da produção didática.

Qual a influência do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), do Ministério da Educação (MEC), no que diz respeito à produção de livros didáticos?
CIRCE O programa avalia o conteúdo das obras em busca de erros conceituais, e isso faz com que, nesse sentido, elas estejam melhores atualmente. É um ganho. Porém, como só as grandes editoras conseguem dar conta dos prazos e das demandas estabelecidas pelo PNLD, o mercado está concentrado nas mãos delas, que são poucas.

Quais outros problemas são encontrados nas publicações?
CIRCE Muitas carecem de conteúdos regionais. Questões locais quase não aparecem, principalmente nos materiais de História e Geografia. A regionalização é necessária para compreender o lugar onde se está e estabelecer relações com outros tempos e espaços. Mas não interessa às grandes editoras livros assim, pois eles terão uma vendagem pequena. Outro mal é que atualmente as publicações estão muito iguais. Antes era possível identificar nos livros de História, por exemplo, a linha marxista, outra mais ligada à história social e ainda outra à história cultural.

Cada vez mais surgem sistemas de ensino apostilados no Brasil. O que acha deles?
CIRCE Eles impedem que os professores tenham autonomia. Para começar, não são os docentes que escolhem o material, é a rede ou a escola. Além disso, o conteúdo deve ser seguido à risca, diferentemente do que ocorre com o livro didático, que o educador usa como apoio pedagógico, elegendo as leituras, os capítulos e os trechos que vai trabalhar em sala. Outros problemas graves referentes a esse tipo de material são a falta de regularização e a presença de muitos erros conceituais. As apostilas não passam por processos de avaliação do MEC.

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