O mestre e os mestres
No aniversário de NOVA ESCOLA, Cortella e três professores como você debatem o desafio de ensinar com propósito nos dias de hoje
PorRodrigo RatierPatrick Cassimiro
12/03/2017
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Jornalismo
PorRodrigo RatierPatrick Cassimiro
12/03/2017
O interfone tocou às 9h45, 15 minutos antes do horário combinado para a entrevista num estúdio da Lapa, na zona oeste de São Paulo. O convidado entrou com o inseparável paletó, desta vez sem gravata, e sozinho - uma surpresa para quem esperava um superstar da Educação. Aos 62 anos, Mario Sergio Cortella é mesmo uma celebridade. Palestrante requisitado, campeão de visualizações no YouTube, autor de 30 livros e figura fácil em programas de rádio e TV. A agenda, concorridíssima, só tem brechas para novos compromissos em 2018.
A presença de Cortella foi um pedido dos leitores. Numa enquete no Facebook - "Quem deveria estampar a capa de nossa edição 300?" -, ele foi, de longe, o mais citado. Há quem torça o nariz. A convivência próxima com Paulo Freire (1921-1997), a experiência como secretário de Educação da maior cidade do país e a carreira acadêmica de três décadas nos departamentos de Teologia e Educação da PUC de São Paulo acabaram eclipsadas pelo lado pop do filósofo. Ele acha graça. "Meu livro mais recente está há quase 30 semanas na lista dos mais vendidos na Veja... na categoria autoajuda e esoterismo!" Por Que Fazemos o Que Fazemos?, o best-seller em questão, é denso, mas acessível. É Filosofia descomplicada e didática (características que Cortella diz ter aprendido com Freire) sobre o significado do trabalho, tema da entrevista. O que alguns veem como superficialidade é, na verdade, simplicidade - uma qualidade.
Foi com ela que o filósofo se apresentou aos educadores da rede pública que iriam sabatiná-lo. "Onde você fez Geografia?", perguntou a Fábio Augusto Machado. "E você, por que a opção por inclusão?", indagou a Ana Paula Lopes Gomes. Com Patricia Francisco, o papo foi sobre Cotia, cidade onde ela leciona e onde ele daria palestra, numa faculdade que ocupa um antigo sanatório. "Não tem problema, estou há 43 anos na Educação, de louco eu entendo", emendou, para a gargalhada geral. O bom humor garantiu que a entrevista com o ídolo se transformasse num bate-papo entre colegas. Era a nossa intenção desde o início. Como você vai ver, Ana, Fábio e Patricia - escolhidos para representar os 2 milhões de leitores de NOVA ESCOLA na revista, no site e nas redes - também têm muito a dizer.
PATRICIA Num texto de Por Que Fazemos o Que Fazemos? você afirma que, ao longo da vida, teve bastante sorte. Qual o papel do acaso nas nossas trajetórias?
CORTELLA O interessante é notar que uma parte de nossa vida é planejada, mas há outra que é circunstancial. Claro que eu planejei minha trajetória na universidade para ir progredindo na carreira, mas me beneficiei de uma dose de sorte - aquilo que Maquiavel chama de fortuna, ou seja, a circunstância. Por exemplo, em 1979, quando Paulo Freire voltou do exílio, eu pude - com milhares de pessoas - recepcioná-lo no teatro da PUC de São Paulo. Ali encontrei Moacir Gadotti, que foi meu orientador de mestrado. Depois, ele me apresentou ao Freire, de quem fiquei amigo. Tive a honra de ser seu orientando de doutorado e sucessor na Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, em 1991. Nada disso foi planejado.
PATRICIA Mas tudo ocorreu por acaso?
CORTELLA Não. Sou caipira de Londrina, e lá dizemos que não se deve deixar passar o cavalo arreado. Você monta. Quando eu falo de sorte, não estou imaginando algo de fora e oferecido como um dom, mas a sorte no sentido do livro O Príncipe. Quando você consegue aproveitar a ocasião e tem a iniciativa - como ele diz, quando se unem a fortuna e a virtude -, a ação certa ocorre no tempo certo. Isso também é chamado de sorte.
ANA PAULA Um dos grandes motivos para a desmotivação são as imposições que vêm de cima para baixo, com a burocracia acima do pedagógico. O que fazer?
CORTELLA Veja, Ana, há uma diferença entre motivação e estímulo. Motivação é algo que parte da pessoa. Estímulo é algo fora dela. Ninguém te motivará. O máximo que a secretaria, tua coordenadora, tua direção podem fazer é te estimular ou desestimular. A motivação é interna. Nenhum de nós quatro é professor porque alguém nos motivou. Tivemos motor interno, que aliás é de onde vem a palavra motivação. Nossa dedicação, nosso afeto pela atividade, nosso gosto de repartir o que a gente conhece, nosso prazer na convivência. Não é uma atividade sem agonia, mas as nossas alegrias são mais motivadoras. Isso é interno.
ANA PAULA Mas você concorda que existe uma forte estrutura de desestímulo?
CORTELLA Sim. O salário irrisório, a ofensa na convivência do cotidiano, o abandono de parte das famílias em relação ao cuidado com as crianças... Tudo isso é desestimulador, mas não é desmotivador. Há uma música antiga chamada Pesadelo, de Maurício Tapajós e Paulo César Pinheiro, com trechos assim: "Quando o muro separa, uma ponte une / você corta um verso, eu escrevo outro / de repente olha eu de novo". Essa ideia do "olha eu de novo" é exatamente a nossa motivação. Continuamos, apesar de tudo.
PATRICIA Como você vê essa ideia de que o professor ensina por amor?
CORTELLA Boa parte de nós tem como sua força interna uma amorosidade por ensinar, que também precisa ser interrogada. Na primeira aula de Pedagogia, eu perguntava aos alunos por que eles estavam fazendo o curso. Quase sempre a resposta era: "Eu gosto de criança". É um motivo bom, mas não suficiente. Na sequência, eu insistia: "De qual criança você gosta? Da sua sobrinha, que toma banho todo dia, que não tem remela no olho, que o nariz não escorre, que não tem deficiência visual, que os pais são alfabetizados?". Vou te contar uma coisa: a chance de você encontrar essa criança não é tão grande. A probabilidade de você encontrar uma criança que não tem nenhum tipo de estímulo para a aprendizagem é maior. Você vai ter de se preparar para trabalhar com todos os tipos de criança.
"Gostar de criança não basta para dar aulas. Você gosta de todas elas?"
PATRICIA No livro Qual É a Tua Obra?, você diz que devemos desconfiar de quem aprova tudo o que falamos. Mas como lidar com colegas e pais que sempre reclamam de tudo?
CORTELLA Primeiro, gente que concorda contigo o tempo todo ou não gosta de você, ou não te respeita ou está se preparando para te derrubar. Segundo, há uma diferença entre o resmungão - aquele que prefere amaldiçoar a escuridão em vez de acender uma vela - e quem discorda da gente de modo respeitoso. Nesses, a gente precisa prestar atenção. Alguns dos melhores alunos que eu tive me obrigaram a pensar de outro modo.
PATRICIA E o aluno que nos tira do sério?
CORTELLA Prestar atenção em quem não concorda comigo não significa obedecê-lo ou idolatrá-lo. Quantas vezes na minha carreira docente eu tive vontade de ir para cima de um aluno? A gente não devia ter, mas temos aquela ira de chegar e pegar pelo pescoço. Algumas crianças não têm hormônio, têm demônio (risos). É um desafio que pode nos fazer ir embora. Podemos dizer "esse não é um bom desafio, não quero mais". Ou seguir em frente, porque a força que dá sentido ao que fazemos ultrapassa em muito os atrapalhadores do nosso trajeto.
"Preste atenção a quem discorda de você e te obriga a pensar diferente."
Sobre desistir
PATRICIA Quando é hora de desistir?
CORTELLA Não critico quem deixa a docência. Ela pode ser desgastante a ponto de levar à desistência. A Educação escolar é uma atividade dificílima. Você passa boa parte da sua vida se metendo na vida alheia (risos). É preciso avaliar quando você não tem mais condição de entregar energia para isso. Sempre faço uma distinção entre cansaço e estresse. Cansaço resulta de um esforço intenso. Estresse resulta de um esforço em que você não vê sentido. Por exemplo, dançar a noite inteira cansa, mas não estressa. Dar aula o dia inteiro cansa, mas não estressa. O que te estressa? O que você não quer fazer. Quem chega nesse ponto larga. Quem se cansa só tem uma saída em Educação: buscar apoio. A gente se apoia o tempo todo. Vivemos um de braço dado com o outro, a gente ri demais, chora demais e segue em frente.
FÁBIO O historiador Leandro Karnal costuma dizer que foi aluno na pior época para ser aluno, porque o aluno estava sempre errado e o professor sempre certo. Hoje ele é professor na pior época para ser professor, porque o professor está sempre errado e o aluno está sempre certo. A que você atribui o desprestígio tão forte que vivenciamos?
CORTELLA No caso da docência, a razão que nos levou a perder parte do prestígio foi algo absolutamente positivo, que foi a democratização do acesso. Na medida em que, nos últimos 50 anos, a escola pública foi se tornando pública - em outras palavras, foi tendo o povo dentro dela -, nós tivemos de aumentar imensamente o número de docentes. Essa expansão acelerada levou, primeiro, a uma redução da nossa qualificação. Segundo, a uma depauperação de nossos salários, porque lecionar deixou de ser uma atividade rara. Ao contrário, ela se banalizou. A tal ponto que algumas pessoas chegam a dizer: "Eu tô precisando de dinheiro, acho que vou dar umas aulinha". A ausência do "s" é de propósito. A razão de nossa existência virou um escárnio.
ANA PAULA Como tornar a escola um ambiente que realmente respeite as diferenças?
CORTELLA Tudo isso é muito novo na escola, porque é muito novo no conjunto social. Nós não estamos habituados a ter crianças que tenham alguma diferença no nosso cotidiano. Nós não nos habituamos ainda, e não podemos fazer uma inclusão precária. Quando eu era menino, o Primário e o Ginásio eram separados. Quando se propôs em 1971 a junção do Primário com o Ginásio, as pessoas diziam que ia acabar a qualidade. Deu certo. Quando em 2006 se instituiu um ano a mais no Fundamental, você lembra o que falavam? "Não vai dar, como é que põe criança de 6 anos na escola?" Já incorporamos. Também diziam que não ia dar certo quando começou o processo de inclusão de alunos com deficiência. Estamos fazendo, ainda é só o começo. Temos que preparar pessoas como você, Ana, que têm formação na área, e também a comunidade. Essas crianças foram invisibilizadas durante décadas. No momento que a gente cumpre a tarefa humanitária e legal de trazê-las para a escola, é preciso cuidar para que ela seja bem feita.
FÁBIO Escuto muito dos colegas que aluno não tem de gostar de professor. Tem de estudar. Existe relação entre afetividade, vínculo e aprendizado?
CORTELLA A autoridade docente é decisiva. Autoritarismo não, mas autoridade, a responsabilidade de conduzir um processo pedagógico. Um dos elementos para isso é a alegria, o afeto. Mas a amizade não pode ser sinal de intimidade. Minha carreira é toda no Ensino Superior - portanto, com pessoas adultas. Às sextas-feiras, a gente saía para conversar, às vezes tomar um suco ou uma cerveja. Nunca passou disso. A intimidade devassada demole a autoridade. Isso não significa que a aula precisa ser sisuda e distante. Concordo. Seriedade não é sinônimo de tristeza e o contrário de seriedade não é alegria. É descompromisso. Numa atividade compromissada, o afeto faz parte e confere animação.
"Não desisitimos pois somos movidos pelo sonho, que é o desejo realizável, factível."
ANA PAULA Qual sua opinião sobre o Escola Sem Partido?
CORTELLA Para ter um movimento chamado Escola Sem Partido, teria que haver um movimento chamado Escola Com Partido. Isto é, se os professores de Geografia, História, Filosofia e Sociologia ficassem fazendo a cabeça dos alunos. Se eles fizeram isso e, mesmo assim, a gente elegeu esse Congresso que está aí, eles são de uma incompetência inacreditável (risos).
FÁBIO Com a aprovação da PEC do teto de gastos, que na minha opinião inviabiliza as chances de sucesso do Plano Nacional de Educação (PNE), qual sua perspectiva de futuro imediato para nossa área?
CORTELLA Eu diria que Educação não se constrói no desespero. Nada é imediato. Tem eleição em 2018. Se nós conseguirmos a eleição de um projeto que vá em outra direção diferente da atual, bom. A PEC não é uma cláusula pétrea, pode ser refeita no futuro. Então, nós temos duas saídas: esperar 2018 ou o fim do mundo com o Trump. O apocalipse já é um consolo (risos).
PATRICIA Considerando os pontos positivos e negativos, vale a pena ser professor?
CORTELLA O que faz com que Ana, Patricia, Fábio e Cortella sejamos docentes? É óbvio que a gente quer melhores condições de trabalho, crianças e jovens com interesse magnífico pelo estudo, reconhecimento, uma burocracia que não sufoque, famílias que não entreguem crianças e jovens para darmos conta sozinhos da tarefa de educar. Isso não acontece ainda - e nós somos movidos por um ainda. Não é o ainda do desastre. Desse a gente não precisa. É o ainda da escola pública de qualidade para tudo e para todos. É o ainda da escola que inclui todas as crianças com algum tipo de diferença. É o que não está, mas que vai acontecer. Tem um nome esse ainda. É esperança, do verbo esperançar, como sempre dizia Paulo Freire. É sonho. Sonho é diferente de delírio, que é o desejo sem chance de realização. Sonho é o desejo factível, realizável.
Foto: Tomás Arthuzzi
Maquiagem: Lorena Dias
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