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Jornalismo

Ameixa dorme? Ou o lado bom da ignorância

PorNOVA ESCOLA

30/01/2017

Rodrigo Ratier,

Rodrigo Ratier,
é editor executivo de NOVA ESCOLA e doutor em Educação pela Universidade de São Paulo (USP)

"Ficou noite", observou Luiza, 1 ano e 10 meses, ao notar o céu escuro pela janela da sala. Concordei, aproveitando para dizer que já era hora de ir para a cama. A lembrança foi a senha para um joguinho de repetição que ela adora. "A mamãe dorme?" Sim. "E o Bernardo?" Também. "O vovô Zé?" Hum, hum. "Papai, e a ameixa?"

A ameixa?

Dei risada, claro. Criança fala cada coisa... De bate-pronto, respondi que não, ameixa era uma fruta e fruta não dorme. Passaram uns instantes, Luiza se deu por satisfeita e eu fiquei envergonhado. Na verdade, eu não sabia a resposta.

Ameixa dorme?

A ameixa vem da ameixeira. Como toda planta, ela não possui sistema nervoso central, estrutura essencial para a regulação do sono. Logo, não dorme, certo? Calma. Tanto seres humanos quanto plantas sofrem influência da luz na produção de hormônios. Entre nós, o lusco-fusco dispara a melatonina, que prepara para o sono. Nos vegetais, libera auxina, responsável pelo crescimento. E, se durante o dia, as plantas absorvem a luz do Sol, à noite metabolizam a energia acumulada e espicham - como ocorre no sono infantil!

Para além de noções rudimentares de botânica, a pergunta da Luiza me chamou a atenção para o lado bom da ignorância. Ignorar é não saber alguma coisa e esse estado, por motivos compreensíveis, costuma ser malvisto pela sociedade. Mas há pelo menos dois tipos de ignorância. O primeiro é o que o filósofo Nicolau de Cusa (1401-1464) chama de ignorância douta. Douto significa sábio, e ser um ignorante douto é ter a sabedoria da curiosidade. A atração por compreender o incompreensível exige se deixar balançar - desestabilizar, para usar o termo piagetiano -, questionar nossas certezas e as coisas mais banais. Requer, também, desprendimento para fazer perguntas absurdas ou óbvias. É a atitude típica da criança, não por acaso a única capaz de duvidar dos fios invisíveis da roupa nova do imperador e de gritar "O rei está nu" no célebre conto de Hans Christian Andersen (1805-1875).

Ser um ignorante douto é ter a sabedoria da curiosidade e a atração por compreender o incompreensível.

Conforme crescemos, infelizmente, esse tipo de ignorância costuma dar lugar a uma outra. Podemos, com o perdão da redundância, chamá-la de ignorância ignorante. É a arrogância de quem julga saber de tudo. Fruta não dorme. Imigrantes são um problema. Racismo não existe. Bandido bom é bandido morto. E assim por diante, mesmo contra sólidas evidências. Essas são, no limite, irrelevantes. Afinal, uma característica da ignorância ignorante é o desprezo pelo conhecimento. Bastam suas supostas verdades. 

Coisa triste, não? Ainda bem que, ao fazer a pergunta da ameixa, Luiza me convidou a ser um ignorante do primeiro tipo. Me ajudou a cultivar o desejo de aprender. Então, filha, papai errou. Com uma certa liberdade poética, dá para dizer, sim, que ameixa dorme.

 


Ilustração: Adriana Komura

 

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