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Jornalismo

As vidas que a Matemática mudou

No sertão do Piauí, a obsessão por medalhas transforma a trajetória de uma centena de jovens - e mostra os limites da revolução pela Educação

PorGustavo HeidrichPatrick Cassimiro

07/12/2016

"Estudar matemática é um caminho para quem quer ir atrás de melhora. Aqui, muita gente quer. Desde que entrei na escola via meus colegas conquistarem medalhas de Matemática. Dizia para meus pais que também ia ganhar. Foi assim por seis anos consecutivos. Tenho amigos fazendo Medicina e Direito. Eu vou cursar Engenharia."

ANA CARLA DE BRITO AMARAL, aluna da EE Augustinho Brandão, em Cocal dos Alves

 

MESMA PAISAGEM 58% da população seguem abaixo da linha da pobreza

Quando Sandoel de Brito Vieira pisou em uma escola pela primeira vez, aos 7 anos, acontecia o Censo de 2000. As estatísticas de então previam que ele e seus conterrâneos de Cocal dos Alves, no norte do Piauí, estudariam em média quatro anos até se tornarem adultos. Exatamente o que seu pai havia estudado e mais do que sua mãe, que não chegou a ser alfabetizada, como a maioria da cidade. Hoje, Sandoel faz doutorado no prestigioso Instituto Nacional de Matemática Pura e Aplicada (Impa), no Rio de Janeiro. O extraordinário nessa história é que o jovem matemático está longe de ser um caso isolado. Ele é um dos destaques de uma impressionante onda de escolarização puxada pela Matemática.

A obsessão com a disciplina começou em 2005. Nesse ano, o professor Antonio Cardoso do Amaral recebeu o kit para a Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas (Obmep). "Vi naquilo uma grande oportunidade e disse para os alunos: 'Se alguém quiser estudar, eu ajudo'", lembra. Das 1.100 medalhas distribuídas no Brasil, duas de prata e uma de bronze foram de cara para o município desconhecido. O grupo de estudo cresceu e, na edição seguinte, vieram mais oito - incluindo as primeiras de ouro.

 

O município

Cocal dos Alves

População*

  • 6.042 habitantes

Principais atividades

  • Agricultura de subsistência e plantio de feijão e caju

Renda média por pessoa**

  • 298 reais/mês

          Brasil: 1.296 reais/mês

Desenvolvimento humano (IDH-M)

  • 0,498 (muito baixo)

          Brasil: 0,727 (alto)

*ESTIMATIVA 2016. ** VALORES CORRIGIDOS PARA 2016 COM BASE NO IPCA. FONTES: IBGE E ATLAS DO DESENVOLVIMENTO HUMANO NO BRASIL, AMBOS DE 2010

A iniciativa de Amaral fez brotar a revolução que transformou Cocal dos Alves em referência nacional em Matemática. A busca por vitórias e os exemplos inspiradores engajam adolescentes como Ana Carla de Brito Amaral, 16 anos, que ilustra as primeiras páginas desta reportagem, a se dedicar aos grupos de estudo fora do horário de aula. Quem antes tinha o horizonte limitado passou a enxergar mais longe.

Enorme diferença do panorama de 15 anos atrás. A primeira turma de 6a série de Cocal só foi aberta no ano do Censo, na EM Teotônio Ferreira Brandão. O Ensino Médio foi inaugurado em 2003, com a EE Agustinho Brandão. Mas a falta de escolas não era o único empecilho para as crianças e jovens cocalalvenses.

A maior parte dos 6 mil habitantes mora na zona rural e o trajeto até as salas de aula inclui obstáculos como cortar riachos ou andar quilômetros na areia. Além disso, mais da metade da população vive da roça e da criação de animais. Não foi fácil para os pais aceitarem que adolescen-tes passariam horas do dia na escola em vez de ajudar na renda. Muitas famílias pressionaram a prefeitura para que não houvesse lição de casa e nem mesmo controle de frequência.

 

"Fiz a educação básica em Cocal. Na época a gente não dava muita importância. Começou a mudar em 2005 com a Obmep. O professor Amaral nos chamou para estudar além das aulas. Aquilo me levou a ser aprovado em Contabilidade e Física na federal do Piauí. Quando me formei, o trabalho que tinha em Cocal era de vigia. Vigiava, mas já dava aula. Em 2014, passei no concurso como titular. Faço pelos meus alunos o que os meus professores fizeram por mim. Tenho certeza que eles vão mais longe que a gente."

FRANCISCO VIEIRA DE BRITO, professor de Física da EE Augustinho Brandão

 

Frutos da revolução

Estudar sozinho ou com amigos se tornou também opção de entretenimento, já que a maioria dos alunos não tinha sequer televisão. "Resolver um problema matemático em casa e depois compartilhar, ver como cada um tinha feito, era um desafio muito gostoso. A gente se animava", lembra Francisco Júnior Machado, que cursava o 1o ano do Ensino Médio quando conquistou uma menção honrosa na olimpíada.

Como em muitas casas da cidade, seu certificado está enquadrado e exposto na sala. Mas há um outro quadro que, por enquanto, só ele têm: um diploma da 10a edição da Obmep como professor de destaque, já com alunos medalhistas. Em Cocal, o passado de analfabetismo está dando lugar a uma geração que retorna à cidade após a graduação para devolver a oportunidade que teve, criando um círculo educacional virtuoso.

"A olimpíada foi o gatilho inegável dessa transformação, mas o esforço de alunos, professores e, aos poucos, até dos pais também se tornou fundamental. Sou fruto de uma revolução?, lembra Sandoel, o doutorando do Impa e três vezes medalhista de ouro da Obmep, agora com 23 anos. Aurilene de Brito, diretora da Agustinho Brandão, calcula que pelo menos 150 ex-alunos tenham feito curso superior, metade nas universidades públicas de Parnaíba e Teresina, outros em instituições particulares com bolsa do ProUni ou à distância. "Só não é todo mundo porque nossos problemas sociais continuam. Muitos precisam trabalhar na roça ou se mudam com a família atrás de emprego", afirma.

 

O salto

Analfabetismo*

  • De 78,1% (1991) a 47,5% (2010).

          Brasil: 9,6%

 

Ensino Superior**

  • De 0% (2000) a 6,5% (2010).

          Brasil: 7,9%

 

Ideb***

  • Anos iniciais: de 3,6 (2005) a 6,3 (2015).

          Brasil: 5,5

  • Anos finais: de 3,4 (2005) a 5,3 (2015).

          Brasil: 4,5

*ENTRE PESSOAS DE 15 OU MAIS ANOS DE IDADE.
** ENTRE JOVENS DE 18 A 24 ANOS. 
*** NA REDE PÚBLICA DE ENSINO.
FONTES: IBGE E QEDU

Os limites da revolução

Organizar o ensino da Matemática em torno de olimpíadas é uma opção com benefícios e custos. Uma vantagem clara é o incentivo proporcionado por medalhas e prêmios. Há, porém, o risco da competitividade exacerbada entre escolas, professores e alunos, prejudicando o clima escolar. Num cenário ideal, o processo de aprendizagem deveria ser motivador por si só: a recompensa é passar de um nível de conhecimento para outro superior, compreendendo melhor o mundo e a nós próprios. Ainda que alguns professores ensaiem migrar para esse modelo (veja o depoimento abaixo), é inegável que o ensino começa mirando a recompensa externa das olimpíadas e a promessa de um futuro melhor. Aí há uma dificuldade adicional: é preciso que existam empregos para os futuros formados com Ensino Superior.

Nesse ponto, a realidade na cidade ainda é árida. Muitos dos graduados não voltam à cidade. Uns porque, como Sandoel, seguiram carreira acadêmica, especialmente em Teresina e Fortaleza. Outros porque estão se formando em áreas sem mercado de trabalho na região, como Direito, Medicina e Engenharia. É o caso de João Francisco Rocha, 22 anos. No último ano de Engenharia Civil, ele conseguiu ajudar a mãe a comprar a primeira caixa d?água da casa e construir um alpendre com o que sobra do estágio em Teresina. "Eu voltaria para Cocal dos Alves, gostaria de ficar perto dela, mas o mais provável é que seja contratado no Rio de Janeiro", comenta.
 

"Queria tanto melhorar o ensino de Matemática que fui inflexível no começo. Aprendi que o cuidado com os alunos e o desafio na medida certa era o que os mantinha no caminho. De início, focamos na necessidade mais viva: a de uma profissão melhor, um bom emprego. Agora, com tantos ex-alunos com faculdade, mestrado e até doutorado, queremos ir além. Dar uma formação mais completa para os filhos deles é o nosso desafio."

ANTONIO CARDOSO DO AMARAL, professor de Matemática da EE Augustinho Brandão

 

 

Há ainda os que não usam a formação profissionalmente, o que gera situações impensáveis de "superqualificação" - ainda mais se considerarmos que Cocal é uma cidade carente no sertão piauiense. O vigia da EE Augustinho Brandão, por exemplo, é biomédico e doutorando; a auxiliar geral da EM Teotônio Ferreira Brandão é pedagoga; Clara Veras, a atendente do programa Bolsa Família, é professora de espanhol.

A Rede

Número de alunos

  • Total 1.494
  • Pré-escola 164
  • Anos iniciais 693
  • Anos finais 379
  • Ensino Médio 129
  • EJA 129

Salário do professor (inicial)

  • 2.135,64 reais (piso nacional

do magistério)

Gasto por aluno

  • 352 reais/mês (anos iniciais).

           Brasil: 215 reais/mês (valor mínimo)

* FONTE: SIOPE E SECRETARIA DE

EDUCAÇÃO DE COCAL DOS ALVES

Em termos estruturais, até agora, os efeitos mais agudos do sucesso no mundo da Matemática se fazem sentir no terreno da Educação. Os medalhistas ganham bolsa de 100 reais da organização da Obmep. Em 2012, a Augustinho Brandão se mudou para um prédio novo que a cidade ganhou de presente do MEC. Dois anos depois, começou a atender também turmas do Fundamental 2, sempre em período integral, com sete aulas e dois tempos livres de estudo. Ônibus escolares novinhos vão e voltam o dia todo.

O resto da paisagem, porém, mudou muito pouco. Estive em Cocal dos Alves em 2011 e 2016. Percebi alguma transformação nas edificações e a presença de televisores, celulares e internet por quase toda a parte. Nada mais. O centro da cidade continua com a mesma meia dúzia de quarteirões de paralelepípedo em volta da praça do coreto. As demais ruas são de piçarra, uma mistura de rocha e areia. As casas são simples e separadas por estacas. Porcos e jumentos circulam livremente pelos quintais. Embora a vegetação continue densa, a seca aumentou e há quatro anos não frutificam os cajueiros, cultura mais rentável da região. Além disso, cerca de 70% dos habitantes recebem hoje o Bolsa Família, índice que praticamente não se alterou desde 2010. "A gente não tem nem posto de saúde. A cidade não andou no mesmo ritmo que os estudos", lamenta Amaral.

O que veio para ficar é a dedicação à Matemática. Na Augustinho Brandão, além do período integral, os alunos que participam dos grupos da disciplina voltam toda quarta-feira à noite e todo sábado para estudar. Os que querem aprender mais Física se reúnem uma vez por semana. Há, ainda, encontros esporádicos de outras matérias. Os estudantes aprovam. "É puxado, mas é bom", diz Ellen Cristina, 12 anos. "Acho ótimo. Se você se interessar, vai sair preparado", defende Natália Carvalho, 17 anos. "Eu venho duas vezes à noite e no sábado. Se tivesse mais, eu vinha", comenta Antonio Lucas Silva, 14 anos, medalhista de Matemática, Química e Física. A mãe, a dona de casa Ioneide Silva, que só se alfabetizou, imagina um futuro diferente para o filho. "A tristeza é saber que um dia ele vai precisar estudar longe", prevê.

"O que era uma ação de cada professor virou um projeto pedagógico", resume a diretora Aurilene. Ela admite que falta usar mais tecnologia e raramente há atividades práticas no laboratório de Ciências ou campeonatos esportivos. "Se você correr atrás de dois bois, os dois fogem", argumenta, explicando que ali não soltarão o boi agarrado. "Se tem uma lição que a gente pode dar é: pega o que deu certo e continua", aconselha.

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Fotos: Wellington Macedo

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