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Jornalismo

Bernard Lahire: "A escola é a estrutura estável de quem vive numa família instável"

Sociólogo francês, professor de Sociologia na Escola Normal Superior de Lyon, na França fala sobre sucesso escolar em meios populares

PorNOVA ESCOLAMarcia Bindo

01/12/2014

Bernard Lahire. Foto: Marcia Bindo
Bernard Lahire Sociólogo francês, professor de Sociologia na Escola Normal Superior de Lyon, na França

Nascido e criado em um bairro operário, o sociólogo francês Bernard Lahire foi o primeiro em sua família a chegar à universidade. Isso o levou a questionar as razões do fracasso escolar e também do sucesso, estatisticamente improvável, nos meios populares. "Eu queria compreender por que minha irmã, meus primos e meus amigos enfrentaram dificuldades na escola, e o que havia me conduzido a um caminho incomum." A pesquisa sobre o tema originou o livro Sucesso Escolar nos Meios Populares (368 págs., Ed. Ática, tel. 4003-3061, edição esgotada).

Nesta entrevista, Lahire defende que o meio social é crucial ao desenvolvimento das crianças, pois sozinhas elas não conseguem superar as dificuldades com que se deparam. O especialista alerta que, para reverter o quadro atual de fracasso escolar em regiões vulneráveis, é essencial investir em políticas públicas que melhorem o ambiente social e a estrutura das escolas de periferia.

Seus primeiros trabalhos falam de um assunto comum no Brasil: o fracasso escolar nos bairros mais pobres. Qual a relação entre Educação e classe social?
BERNARD LAHIRE A Educação vem do ambiente social. O fato de que ela seja diferente conforme o meio é um dado comum a todas as sociedades desiguais. Bairros pobres normalmente têm escolas com menos estrutura e famílias com baixo capital cultural, que muitas vezes não ajudam no desenvolvimento do aluno. É triste, mas nesse contexto a criança está fadada ao fracasso. Repito, tudo vem do ambiente social, dos obstáculos aos sucessos. Um estudante não consegue sair sozinho de suas dificuldades de aprendizagem, as influências externas são fundamentais - seja o apoio de um familiar, de um amigo estudioso ou de professores competentes.

O que se entende por capital cultural?
LAHIRE Significa ter acesso a diversos elementos que desenvolvam a cultura, de objetos materiais a formas abstratas. Ter uma biblioteca em casa, onde os pais possam explorar com os filhos diversos escritores e obras, é um exemplo. O capital cultural pode ser transmitido para as crianças de muitas maneiras, mas está presente fundamentalmente no círculo familiar.

Como essas interações cotidianas com a família e a formação cultural repercutem na aprendizagem?
LAHIRE A leitura, por exemplo, está relacionada com a escrita. Se os pais leem histórias aos filhos desde pequenos, isso vai permitir uma melhor compreensão e aprendizagem da escrita, desde a identificação de elementos até a construção de um texto, com introdução, desenvolvimento, conclusão e uma mensagem para a reflexão. A família tem esse poder de dar as ferramentas do sucesso. Sem mencionar que esses momentos em que pais e filhos leem juntos são de cumplicidade, de partilha, de troca, de despertar o espírito de curiosidade na criança.

Que políticas públicas diferenciadas deveriam ser criadas para escolas em ambientes vulneráveis, nos quais muitas crianças não têm acesso a esse capital cultural?
LAHIRE Mais investimento em estrutura: bons professores, bons equipamentos, boa equipe pedagógica. Assim, será possível oferecer aos estudantes, na escola, auxílios que alguns podem não ter fora dela. Por exemplo, dar oportunidades a crianças pobres de fazer uma viagem escolar, dar-lhes acesso a livros, oficinas e cursos de arte e música. A escola é a estrutura estável de quem vive numa família instável. Ela precisa trabalhar junto com os pais para facilitar a harmonização entre esses dois ambientes.

Como vencer essas diferenças inevitáveis entre os alunos, de modo que todos tenham chances de não fracassar?
LAHIRE Superar as diferenças que vêm de fora é muito complexo. É preciso dedicar mais tempo a cada estudante de acordo com a personalidade e as necessidades dele. Não se deve homogeneizar e sim adaptar as soluções para diferentes problemas. Para isso, são necessários tempo e equipe adequada. Se os governos não investem em Educação, estão criando um problema de saúde pública. A escola está em crise e isso é um desastre para o futuro, porque é preciso tempo para transmitir conhecimentos e cultura.

Famílias que fogem da estrutura considerada por muitos como "normal" (pais separados, crianças criadas pelos avós, filhos com pais homossexuais...) são chamadas de desestruturadas e alguns educadores julgam ser essa a causa para o aluno não aprender. O que acha?
LAHIRE Não devemos nos focar no que é "normal" ou "anormal", mas na capacidade de oferecer à criança o apoio e os recursos para superar obstáculos (uma doença, a perda de um pai, um divórcio). Não há um único padrão de família, mas há vários fatores que prevalecem em um contexto familiar favorável ou desfavorável. A supervisão da escola é importante no desenvolvimento infantil, em especial se as crianças não têm uma estrutura estável no ambiente familiar. A escola deve aceitar esse seu papel maior e não se limitar ao ensino curricular.

Muitos educadores dizem que educar não é responsabilidade da escola. Cabe a ela apenas ensinar conteúdos curriculares. Qual a sua opinião?
LAHIRE Os professores têm, sim, a responsabilidade de fornecer competências de instrução - aquisição do conhecimento - e de Educação - disciplina do saber e da vida. Os dois elementos são inseparáveis e a ideia de "instrução pura", que alguns educadores acreditam transmitir, é absurda. Eles devem aceitar que, ao ensinar, estão necessariamente transmitindo os dois aos alunos. Defendo que os docentes serão bem-sucedidos em seu trabalho e poderão torná-lo mais agradável se perceberem que o seu papel é o de educar e instruir ao mesmo tempo.

Como deveria ser a estrutura escolar para dar conta dessas demandas?
LAHIRE Em termos objetivos, seria importante que cada escola tivesse uma equipe pedagógica com psicólogos e tutores para acompanhar os estudantes. O ideal é que fosse reduzido o número de alunos por classe. Não é culpa dos professores se o Estado não investe para criar essa estrutura. Ao contrário, o que vemos normalmente é o governo reduzir o número de professores, suprimir classes e equipes pedagógicas. Um desastre.

Diante disso, o que o professor pode fazer para ajudar alunos de locais vulneráveis?
LAHIRE Os docentes não são psicólogos, mas muitas vezes acabam ajudando da maneira que podem. Infelizmente, os estabelecimentos escolares, mesmo na França, têm falta de auxílio pedagógico, médico, psicológico, entre outros, que seriam capazes de dar um apoio muito mais adequado do que o dado pelo professor. De modo prático, os docentes podem estabelecer "classes de adaptação", que permitam às crianças com mais dificuldade de aprendizado se familiarizar com as bases escolares e se reintegrar sem serem colocadas de lado. Estimular esses alunos na realização das atividades, mostrar suporte e inspirá-los também dá bons resultados.

No Brasil, os melhores professores não querem trabalhar nas piores escolas, geralmente localizadas na periferia. Há meios, na sua opinião, para resolver essa situação?
LAHIRE É dever e responsabilidade do Estado que as escolas públicas ofereçam excelência educacional. De um lado, cabe ao governo levar bons professores às escolas de periferia, oferecendo bons salários, equipamentos e treinamentos. De outro, cabe aos professores que amam seu trabalho entender a importância social que fazem ao priorizar na sua carreira o setor público, em vez da simplicidade do setor privado, em que as crianças muitas vezes já vêm de famílias com forte capital cultural e econômico. Assim, o educador pode fazer toda a diferença no percurso dos estudantes a quem ensina, tornando-se parte do sucesso escolar e da vida de cada um deles.

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