Compartilhe:

Jornalismo

Em 2015, a Finlândia - campeã nas avaliações internacionais da Educação Básica - anunciou uma medida polêmica: a partir de 2016, o país aboliria o ensino de letra cursiva de suas escolas. A discussão reverberou. Nos Estados Unidos, diversos estados passaram a pensar sobre a possibilidade de excluir esse conteúdo de seus currículos. No estado da Indiana, uma nova diretriz curricular determinou que o tempo dedicado ao ensino de caligrafia fosse redirecionado para o trabalho com ferramentas digitais de escrita.

Mas por que deixar de lado algo tão tradicional? O argumento usado nos dois casos é simples: nas últimas décadas, redigir à mão tem perdido espaço para o uso das teclas. A cursiva, por dar maior velocidade à escrita, era fundamental para compor textos mais longos. Como caneta e papel hoje em dia são úteis para fazer no máximo bilhetes ou pequenas anotações, o uso dessa letra está se tornando obsoleto.

No Brasil, nenhuma rede educacional anunciou o abandono do ensino da técnica, mas ela está na berlinda. A discussão parece apontar, ao menos por ora, para uma redução na quantidade de atividades que a enfatizam. "A questão não é ensinar ou não ensinar, mas o tempo que se dedica a sua apresentação e a seu treino", explica Andréa Luize, coordenadora do Instituto Vera Cruz e do projeto Toda Criança Pode Aprender.

O que tende a perder espaço, sem dúvida, são os extensos exercícios de cópia de letras em cadernos de caligrafia, sem que haja reflexão sobre o que se escreve. Faz sentido abandoná-los: é um trabalho parecido ao que os copistas realizavam durante a Idade Média. Ao reescrever obras sagradas ou clássicas, eles focavam exclusivamente no desenho das letras (muitos nem sequer sabiam, de fato, ler). Com o renascimento do comércio e, posteriormente, com a industrialização, a escrita se expandiu para um número maior de pessoas. Até o início do século 20, todas as anotações mais importantes eram feitas à mão e, para isso, era necessário ser ágil, o que levou à adoção de novos modelos caligráficos mais simples (veja exemplos abaixo).

Quando a escola passou a se voltar para um número grande de pessoas, no fim do século 19, a letra cursiva foi privilegiada. Nesses espaços educativos, dominar a caligrafia era fundamental. "O que estava em jogo não era apenas a proficiência no sistema de escrita, mas a legibilidade do traço", conta Diana Gonçalves Vidal, professora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP) e pós-doutora em História da Educação. "A Pedagogia entendia a escrita como uma forma, uma técnica, e por isso uma boa caligrafia era associada a um alto nível de instrução", explica Isabel Cristina Alves da Silva Frade, diretora do Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

A chegada de novas abordagens para a alfabetização, mais centradas nas hipóteses de escrita das próprias crianças e nas práticas sociais, modificou a forma como se entende o aprendizado da escrita. Os longos exercícios de cópias de letras e sílabas têm sido substituídos por outras atividades mais ligadas à maneira como se interage com textos fora do mundo escolar. Nesse contexto, é lógico que as ferramentas digitais - como computadores, tablets e celulares - passem a tomar um tempo cada vez maior das aulas. Isso não significa, entretanto, que a letra cursiva tenha perdido totalmente seu papel. "A rapidez é a grande vantagem e a otimização do traço favorece que o foco seja o conteúdo escrito", complementa Isabel.

 

 

 

 

Clique para ampliar a imagem 


O argumento do desenvolvimento 

Nos Estados Unidos, onde as discussões sobre o abandono ou não da caligrafia estão mais acaloradas, pipocam pesquisas para analisar se o ensino dela traz benefícios ao desenvolvimento cognitivo e às habilidades motoras. A maior parte aponta para aspectos positivos.

Um estudo recente realizado pela professora de Psicologia Educacional Virginia Berninger, da Universidade de Washington, comparou a atividade cerebral de crianças em três momentos: quando digitavam um texto no computador, quando escreviam em letra bastão e quando utilizavam a cursiva. O resultado é que, entre todas as modalidades, esta última foi a que mais gerou conexões entre diferentes áreas do cérebro. "A formação da imagem das letras conectadas também ajuda na criação da memória ortográfica (sobre a maneira correta de escrever as palavras). Na digitação, essa ligação não existe", explica Maria Teresa Carthery Goulart, professora da pós-graduação em Neurociências da Universidade Federal do ABC (UFABC), na região metropolitana de São Paulo. Segundo ela, as conclusões mais recentes permitem dizer que a escrita cursiva proporciona um tipo bastante singular de atividade cerebral, integrando partes importantes para o desenvolvimento da capacidade de comunicação, seja ela escrita ou oral. 

Especialistas também apontam a existência de vantagens para o desenvolvimento psicomotor. "O fato de ter que 'ligar as letras' na escrita cursiva envolve habilidades motoras, espaciais, rítmicas e cognitivas que não ocorrem na escrita digital. Além disso, a criança 'desenha' o seu traço pessoal, se expressa pela comunicação e constrói identidade", defende a psicomotricista Ana Mello. Mas não parece existir consenso. Andréa Luize, do Instituto Vera Cruz, lista alternativas que podem conviver com o ensino da letra cursiva ou ocupar parte do tempo que antes era tomado por ela: "Existem atividades, como o desenho e a realização de colagens, que também colaboram com a coordenação motora fina", pontua.

O caminho é o do meio

Apesar da discussão, que deve seguir nos próximos anos, os especialistas são unânimes em dar indicações para a alfabetização. No início, a letra bastão deve ser sempre a opção do docente. A caligrafia cursiva, mais desafiadora, pode ser incorporada quando o estudante já dominar o sistema de escrita. Mas o professor deve ter clareza que se trata de um aprendizado com menos reflexão. A ênfase é técnica e isso é outro argumento para não destacá-la tanto. "Como o foco está em aprender os movimentos, é pertinente que os textos copiados sejam conhecidos e que o docente pense em desafios progressivos", propõe Miruna Kayano, formadora de professores na Escola da Vila, na capital paulista. A ideia é separar as propostas. Quando eles se preocupam com o desenho das letras, o conteúdo não deve ser enfatizado. A sugestão é começar com cópias de um modelo colocado acima das linhas em que os alunos devem escrever. Para aumentar a complexidade, posicione o modelo em uma folha ao lado, sem pauta. Depois, proponha que a criança reescreva um texto de letra bastão para cursiva, até que ela se sinta segura para realizar produções próprias.

As ferramentas digitais podem estar presentes em todo o processo. No computador, o uso de programas como o Word pode fornecer momentos privilegiados de aprendizagem. Os corretores automáticos ajudam, por exemplo, em discussões coletivas sobre ortografia. Ao ver uma palavra marcada como errada, o professor pode questionar quais as alternativas para escrevê-la e validar as hipóteses com a correção sugerida. Vale ressaltar que o trabalho tanto com a letra de mão quanto com o computador pode disparar a discussão sobre o uso de letras maiúsculas e minúsculas.

Para garantir que as práticas das escolas estejam compatíveis com a realidade fora desse ambiente, é importante considerar quais atividades dos adultos não fazem sentido para as crianças. Ninguém mais escreve trabalhos ou textos longos à mão. Bilhetes e post-its, porém, continuam em cena. A escola deve se adaptar aos gêneros mais utilizados nos dias de hoje.


Consultoria:Andréa Branco

Caligrafia:Andréa Luize, coordenadora do curso de Pedagogia do Instituto Vera Cruz, em São Paulo.

continuar lendo

Veja mais sobre

Últimas notícias