O cara da melhor rede do Brasil
Prova toda semana, ensino apostilado e decisões centralizadas: a polêmica receita de um professor de Matemática para levar Novo Horizonte ao topo
PorRodrigo RatierAlice Vasconcellos
08/09/2016
Este conteúdo é gratuito, entre na sua conta para ter acesso completo! Cadastre-se ou faça login
Compartilhe:
Jornalismo
PorRodrigo RatierAlice Vasconcellos
08/09/2016
O homem que todos esperavam chega ao auditório da EMEF Hebe de Almeida Leite Cardoso aparentando cansaço. Tem olheiras, barba rala por fazer e a camisa amarrotada na cintura. Marcas cotidianas de dois hábitos persistentes - noites curtas de sono e jornadas de trabalho de até 14 horas. Passa das 6 da tarde e Paulo César Magri, secretário de Educação de Novo Horizonte, em São Paulo, se prepara para falar a uma centena de educadores da rede municipal. Professor Paulinho, como é conhecido, traz boas notícias. São os resultados prévios do Ideb 2015, inéditos para a maioria da plateia.
Os slides se sucedem e impressionam tanto pelas notas altas como pela semelhança no desempenho. Ideb 7,1 na escola Hebe; 7,7 na Moacyr de Freitas; José Luiz Tomazi com 7,5; e assim por diante. Tudo muito superior ao desempenho do estado, dos municípios do entorno, das escolas estaduais que ainda restam na cidade e da mítica nota 6,0 projetada no Brasil apenas para 2021.
Com exceção de um punhado de cidades muito pequenas, em que o total de estudantes não alcança a casa do milhar, os números de Novo Horizonte só encontram paralelo em Sobral, no Ceará. A rede municipal paulista perde nos anos iniciais (Ideb 7,4 ante 7,8), mas ganha nos finais (6,7 a 5,8) e - detalhe importante - registra menor diferença entre as escolas. Do ponto de vista das avaliações externas, Novo Horizonte possui, hoje, a melhor Educação pública do país.
O que torna o município um ponto fora da curva não é seu perfil. Novo Horizonte é uma cidade organizada e tranquila no noroeste de São Paulo. Fica a 408 quilômetros da capital, conta com o Rio Tietê já limpo num de seus limites e duas usinas de açúcar e álcool, as maiores empregadoras de seus 39 mil habitantes. A cidade se situa na faixa de alto desenvolvimento humano, o saneamento atende 100% das residências e não existem favelas. Mas há, sim, bairros pobres, com problemas conhecidos dos entornos vulneráveis: drogas, violência e serviços precários.
Dinheiro também não é o segredo. Em 2015, a cidade gastou 448 reais mensais por aluno. É o dobro do mínimo investido no Brasil (215 reais), mas está longe de ser uma fortuna. "Em escolas particulares de classe média, as mensalidades estão em torno de 1.200 reais", compara José Marcelino de Rezende Pinto, especialista da USP em financiamento da Educação.
O MUNICÍPIO
Novo Horizonte (SP)
População: 39 mil habitantes*
Principais atividades: plantio e processamento de cana, comércio
Renda média per capita: 1.264 reais/mês (Brasil: 1.296 reais/mês)
Desenvolvimento humano (IDH-M): 0,753 (nível alto - Brasil: 0,727)
* ESTIMATIVA 2015, DEMAIS DADOS 2013. FONTES: IBGE E ATLAS DO DESENVOLVIMENTO HUMANO NO BRASIL
Na verdade, o principal ingrediente do sucesso do município está, naquela terça-feira de agosto, gesticulando em frente a uma audiência de professores felizes com o resultado de seu trabalho. Em Educação não se faz nada sozinho, mas, no caso de Novo Horizonte, até os adversários admitem que o ensino deve quase todas suas virtudes e vícios à atuação do secretário.
Magri é um sobrevivente do jogo político. Ocupa a Diretoria Municipal de Educação e Cultura (DMEC), o equivalente local da Secretaria de Educação, há 16 anos. Uma eternidade em relação ao MEC, que coleciona cinco ministros nos últimos 21 meses. Sua equipe o define como um sujeito ligado no 220 volts. Fala passeando as mãos pelos cabelos grisalhos, chacoalha a perna esquerda, se remexe na cadeira, bate na mesa para sublinhar uma ideia. Numa conversa de duas horas e meia, serviu-se de sete cafés e dois cigarros. Quando está com a palavra - basicamente o tempo todo -, põe ênfase nas frases, faz pausas dramáticas. Adora silabações ("professor ma-ra-vi-lho-so", "coordenadora
ex-ce-len-te") e se empolga com suas escolas. "Nossas creches... são um hotel! Aquele Carandiru piorado... virou um palácio!"
Quase tudo que existe na rede nasceu antes na cabeça do secretário: questões de simulados que ele elabora, apostilas sobre a Prova Brasil que ele escreve, materiais didáticos que ele compra nas viagens. Seu foco, como gosta de ressaltar, é pedagógico. O dia a dia administrativo fica por conta da equipe técnica da DMEC e o corpo a corpo político se restringe aos pedidos do prefeito Toshio Toyota (PPS). Nas manhãs de quinta e sexta-feira, Magri dá aulas de Matemática no Ensino Médio do Colégio Coopen Objetivo. Além de manter contato com a profissão que abraçou há 32 anos, a docência na rede particular ajuda a complementar o salário de 8.297 reais que recebe como gestor público. "Estou secretário, mas sou professor", diz. No restante do tempo, ele se dedica a seu esporte preferido: conferir pessoalmente como andam as escolas do município.
Em dois meses de municipalização, Magri serrou grades de escolas, plantou flores e comprou talheres de verdade
"Ele quer comer no banheiro"
Receber uma visita do secretário costuma deixar os gestores em alerta. "O Paulo diz que quer comer dentro do banheiro. Quando chega, vê se tem sabonete, toalha, se está tudo limpo", conta Janete Maria Delsin de Sousa, diretora da EMEF Maria José de Oliveira. A atenção à higiene, herdada da mãe ("Uma mulher limpíssima, dessas de faxinar rodapé."), é uma das obsessões pessoais que se tornaram marca da rede. Estive em dez escolas e em todas o asseio era impressionante. Ambientes impecáveis, quase nenhum lixo no chão, mobiliário imaculado e de boa qualidade.
Alunos: 5,2 mil
Professores: 304
Funcionários: 242
Escolas: 21 (13 de Educação Infantil e 8 de Fundamental)
Gasto por aluno: 5.380 reais/ano*
Piso do professor: 2.075 reais (30 horas semanais, Fundamental 1)
* EM 2015, DEMAIS DADOS 2016. FONTES: FNDE/SIOPE E DMEC NOVO HORIZONTE.
Tudo muito diferente de 2005, quando começou a municipalização do ensino. O baque de assumir unidades estaduais como a Hebe de Almeida Leite Cardoso merece de Magri uma descrição teatral. "Imagina um lugar horrível. Não, não", meneia a cabeça, "não dá para imaginar?. Conhecida por ter duas alas em estilo prisão e um enorme pátio de terra batida, a escola era alvo de depredações constantes. Para marcar a mudança de gestão, o secretário adaptou os equipamentos da Hebe ao padrão da rede municipal, que até então só cuidava da Educação Infantil.
Pôs toalha e sabonete nos banheiros, trocou os pratos e copos de plástico por vidro, comprou talheres de verdade. "Foi essencial. Quando viram o tratamento de respeito, os alunos e as famílias começaram a acreditar no projeto", afirma. Em seguida, plantou grama e flores no pátio e, para desespero dos subordinados, mandou serrar todas as grades de portões e janelas, medida adotada depois em toda a rede. "Em um mês, mudei tudo. Houve problemas, mas, se arrebentavam um vaso, botava outro no lugar e não avisava ninguém. Até hoje é assim", afirma, em sua adaptação intuitiva da teoria das janelas quebradas - a ideia de que, quando se conserta danos ao patrimônio rapidamente, a probabilidade de novos ataques é menor, pois cria-se uma atmosfera de ordem. Na Hebe, a grama verdeja e o vandalismo acabou, algo que os professores julgavam impossível.
Outra ideia fixa é com o controle. Inspirado em irmã Celinda, diretora da primeira escola em que lecionou ("Exigentíssima, daquelas que inspecionam lista de exercícios."), Magri se orgulha de saber detalhes da atuação de cada um dos 304 professores. As aulas apostiladas são um dos instrumentos de monitoramento. Desde 2001, Novo Horizonte utiliza materiais do grupo Expoente, de Curitiba. Adotado da Educação Infantil ao 9º ano, o sistema custou em 2016 cerca de 800 mil reais, 3% do orçamento da pasta.
O professorado chiou no início, mas hoje a resistência é bem menor. A maioria dos docentes com quem falei aprecia a economia de tempo no planejamento. Para os gestores, facilita ter toda a equipe no mesmo ponto. A observação da rotina escolar, entretanto, deixa a impressão de que a padronização é excessiva. O esquema de aula expositiva e lista de exercícios predomina na maioria das classes. As crianças passam boa parte do tempo respondendo a questões e resolvendo testes. Faltam pesquisas autônomas e produções de alunos nas paredes das salas - elas são decoradas com alfabetos, quadros numéricos e mapas produzidos previamente pela DMEC.
Ninguém consegue ver algo quebrado sem tomar providência. Por influência do secretário, limpeza e organização são hoje obsessões de toda a rede
Na época de implantação das apostilas, Magri enfrentou as críticas com mão de ferro. "Não pedi opinião. Cheguei e fiz." A mesma atitude se repete em outros pontos nevrálgicos da gestão, como a escolha do local em que professores e gestores vão trabalhar. Essas coisas o secretário decide pessoalmente. "Tudo é feito com diálogo", garante, "mas lembro a cada educador que o concurso é para a rede, não para uma escola determinada?. Quem trabalha no município precisa, ainda, bloquear a agenda uma noite por semana para o horário de trabalho coletivo (HTPC). Por determinação de Magri, a atividade é unificada. Sob a liderança de professores tutores, todos os docentes se reúnem no mesmo horário, divididos em salas diferentes por ano na Educação Infantil e no Fundamental 1, ou por disciplina, no Fundamental 2. "O trabalho centralizado é um dos segredos da rede. Fica mais fácil identificar problemas comuns e partilhar boas experiências", afirma.
Atendimento na pré-escola: 99%
Brasil: 91%
Atendimento no Ensino Fundamental: 98%
Brasil: 97%
Ideb 5º ano: 7,4
Brasil: 4,9
Ideb 9º ano: 6,7
Brasil: 4,0
* DADOS DE 2013. FONTE: QEDU.
Com o passar dos anos, o que começou como um exército de um homem só cresceu. Hoje, Magri se cerca de um pequeno grupo de confiança, a quem delega parte dos afazeres. São cinco os escolhidos. Marlene Aparecida Siviero coordena o curso de Magistério do município. Amábile Milani Garcia de Arruda dirige a Educação Infantil. José Regynaldo Rota Filho assumiu o trabalho pedagógico do secretário em Matemática, e Luci Helena Corrêa Miller faz os materiais de Língua Portuguesa.
Completa o time a supervisora Oliana Pereira Ascêncio. Braço direito do secretário desde a década de 1990, quando ele comandava uma escola estadual, a ex-professora de Geografia é quem melhor reproduz o jeito inquieto e rigoroso do chefe. O dia a dia dela é rodar pelas escolas e garantir que a rede esteja funcionando, o que significa auxiliar coordenadores com alunos indisciplinados, ouvir queixas da equipe, agilizar trocas de equipamento e até ajudar a servir o café aos convidados de Magri no gabinete. "Não tenho cerimônia. Estou aqui para tudo."
Outra função é espalhar pela equipe a aversão do secretário por persianas tortas, carteiras riscadas e vasos quebrados. "Quem vê algo errado tem a obrigação de agir", diz Oliana. Não interessa quem seja e não importam as relações hierárquicas, como testemunhei na visita à EMEF Maria José de Oliveira. Bete, a merendeira, chamou Oliana de canto e sorriu: "Esse freezer é velhinho, mas eu preciso dele". A supervisora entendeu o recado e olhou para Magri: era o pedido de um novo aparelho. Sem dizer nada, o secretário fez que sim com a cabeça. Mão no celular, a supervisora acionou o financeiro da DMEC, solicitando três orçamentos para um novo congelador - despesas abaixo de 8 mil reais dispensam os demorados processos de licitação (veja reportagem na página 59). "Não consigo antes do fim da semana", respondeu Júlio, o responsável pelas compras. Oliana agradeceu e ligou para Amábile. "Tudo bem, faço a cotação nas lojas do centro depois do expediente", disse a coordenadora do Ensino Infantil. No dia seguinte, já estava pronto o pedido de empenho de verba. Magri assinou o documento e a compra estava liberada.
É a versão empírica de outro moderno princípio de gestão: a cultura de dono, noção de que cada funcionário deve se sentir proprietário da empresa, com responsabilidade pelo resultado e autonomia para tomar decisões. "Aqui não temos cargos, temos encargos", resume a coordenadora Marlene, que interrompeu minha carona para dar bronca em alguns meninos que tentavam pular o muro da escola Hebe.
Na lista de obsessões do secretário de Educação, a preocupação com a avaliação ocupa o topo do ranking. Os alunos de Novo Horizonte fazem muitas provas. Além dos tradicionais exames bimestrais, as turmas do 3º ao 9º ano enfrentam, toda sexta-feira, dez testes de Matemática e dez de Língua Portuguesa. O foco é alternado: a cada 15 dias cobra-se, como diz a equipe técnica, o "arroz com feijão" (o básico do material apostilado) e, na outra quinzena, os descritores da Prova Brasil. O processo é ágil. Para não tomar tempo de aula, os testes são corrigidos e tabulados pelos coordenadores, que se utilizam de um gabarito furado para abreviar a tarefa. Na própria sexta os resultados estão disponíveis e, no início da semana seguinte, são discutidos em aula com os alunos e com os professores no horário coletivo. O acompanhamento detalhado do que cada aluno sabe orienta as ações que cada professor vai tomar.
O ensino tem material apostilado desde a pré-escola, reforço aos valores familiares
e início de aulas com o Pai-Nosso
Magri traz na ponta da língua as vantagens da cultura de avaliação. "Dá para identificar e reparar rapidamente as dificuldades de aprendizagem e habituar as crianças a fazer provas." Os questionamentos dizem respeito, claro, à avalanche de exames e a um ensino excessivamente voltado para a Prova Brasil. O secretário reage. "As competências e habilidades exigidas pelo MEC são o básico. Vamos além e educamos para a vida."
Nas aulas que acompanhei, a padronização caminha lado a lado com o ensino tradicional, o que inclui estratégias tidas como ultrapassadas por muitos especialistas em didáticas específicas, como a apresentação das famílias de sílabas em ordem específica na alfabetização (a reportagem bit.ly/alfadisputa traz o que funciona, o que não dá certo e o que ainda está sendo discutido sobre o tema). Presenciei um trabalho assim na pré-escola.
Presenciei um trabalho assim na pré-escola. A professora desenha na lousa a letra J com uma carinha de tristeza e diz à turma: "Para ficar feliz, ela precisa encontrar suas amigas, as vogais", dando início aos exercícios de vocalização do ja-je-ji-jo-ju. Novamente, tudo ocorre à imagem e semelhança das crenças de Magri - que, nesse ponto, não pretende mudar. "Não abro mão da Educação tradicional", afirma.
Já a ideia de "Educação para a vida" inclui, na única escola de período integral, aulas de balé, jiu-jitsu e teatro e, em toda a rede, uma forte dose do componente religioso. Não há aula específica para o tema, mas ele está presente nas práticas diárias. Menções a Deus são constantes nas conversas com os educadores, que enfatizam o poder disciplinador da religião, e mesmo nos materiais oficiais. "Agradecemos ao Criador, Senhor do Universo, pelo dom da vida e pela imensa capacidade de criar", lê-se na edição de agosto de 2006 da revista Educação em Ação, de responsabilidade da DMEC. Nas três unidades em que pude acompanhar o início das aulas, o período letivo começa com a reza do Pai-Nosso - uma ?oração neutra", como me definiu uma gestora. "Nunca houve reclamação", afirma a supervisora Oliana.
Agosto já vai e, com ele, também o entusiasmo com os números no Ideb. Outubro se aproxima e, com ele, a expectativa para saber se Magri sobreviverá a mais uma eleição municipal. Sem preparar sucessores, o secretário quer continuar, mas em seu balanço pessoal diz que já valeu a pena ter dedicado uma vida toda à Educação. "Varei muita madrugada fazendo material didático e simulado. Não vi meus dois filhos crescerem, mas não me arrependo. Tenho orgulho de possibilitar ensino de qualidade a todos", afirma. Carismático e personalista, tradicional e apressado, criativo e nem sempre democrático, fez da rede uma engrenagem exemplar em alguns aspectos e questionável em outros. Há vários caminhos que levam ao topo. Novo Horizonte escolheu o seu.
Últimas notícias