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Jornalismo

Por que o funk é proibido na escola

Você detesta, mas seus alunos gostam. Acredite: debater o ritmo na escola é a melhor chance de questionar as letras pesadas e os movimentos sexuais

PorWellington SoaresPaula PeresPatrick Cassimiro

14/09/2016

Este texto deveria começar com uma grande foto de alunos e professor discutindo o funk, analisando com uma postura crítica essa manifestação cultural. Foi esse o projeto de Felipe Nunes, que atua na EE Professor Norberto Alves Rodrigues, na M'Boi Mirim, periferia da zona sul de São Paulo. Deu errado. A Diretoria Regional de Ensino achou melhor não expor a instituição (mudou de ideia quando já era tarde e a revista estava indo para a gráfica). Afinal, lugar de funk não é na escola, certo?

Dá para entender a resistência. Muitas letras são fortes e fazem referência à violência e à sexualização precoce. Os movimentos da dança transitam entre a sensualização excessiva e a transformação do corpo em objeto. De fato, causa assombro pensar nos seus alunos descendo até o chão ao som do funk sensual. Mas é o que muitos deles fazem. É a realidade.

Vamos defender que a escola é, sim, lugar de funk. Pedimos sua parceria para ir conosco até o fim, mas sabemos das dificuldades. O assunto requer uma boa dose de coragem para comprar uma briga - com a direção, os colegas professores e os pais. "Uma mãe me falou: 'Demorei anos para a minha filha parar de gostar de funk e agora você vai fazê-la ouvir isso de novo!'", conta Felipe, que encontrou resistência até dos próprios alunos que ouviam o ritmo (nem eles acham que funk pode ter a ver com Educação).

Mas o funk é mais do que uma coletânea de trechos de letras impublicáveis. "Ele é um complexo movimento cultural. Rejeitá-lo como um todo por causa de algumas de suas características é desconhecimento e preconceito", defende Marcos Neira, professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP). Ele faz um paralelo com a banda Legião Urbana: Faroeste Caboclo narra a trajetória de vida de um traficante, bandido e estuprador criminoso. Nem por isso as escolas deixam de utilizar outras (e mesmo essa!) músicas da banda em atividades didáticas.

Com o funk, é diferente. A interdição é total, apesar de apenas parte das músicas terem palavrões, insinuações sexuais, machismo, referências a drogas e a crimes - o proibidão. Aí está uma primeira possibilidade de abordagem: focar em um dos diversos subgêneros. O funk melody de Claudinho e Buchecha, por exemplo, fala sobre relações amorosas. Já o engajado Rap da Felicidade, de Cidinho e Doca, questiona a apropriação do ritmo nascido nas periferias pela classe média.

Essa é, digamos, uma proposta mais light. O baguio fica loko A situação é mais complicada quando o funk conhecido pelos alunos é justamente aquele capaz de deixar de cabelo em pé até o mais liberal dos educadores. É a opção dos professores mais ousados, que não negam o repertório dos alunos apresentando apenas as versões "limpinhas" do ritmo. Foi o caso de Felipe, cuja turma era fã de grupos como o Bonde das Maravilhas. Entre os sucessos do conjunto, está a canção Novo Movimento, em que elas cantam ?Elas batem com a bunda/elas sentam com a bunda/elas quicam com a bunda/elas jogam pra trás? sobre movimentos de dança que lembram o ato sexual. O que ele poderia fazer?

 

Se canções que falam sobre sexo, violência e drogas
fazem parte do repertório dos alunos, o caminho é,
com base nelas, apresentar outras variedades do ritmo

 

Da batida do soul ao batidão

A opção do professor foi expandir a variedade inicial trazida pelos estudantes e apresentar outras, que permitissem enxergar novas facetas do ritmo musical (influências nacionais e internacionais no funk aparecem no artigo Soul Brasileiro e Funk Carioca). A turma se surpreendeu ao saber que o funk tocado pelos carros que circulam na região próxima à escola bebe na fonte de batidas criadas nos Estados Unidos. O R&B (rhythm and blues) dos anos 1950 é o seu ancestral mais antigo, que ele compartilha com o rock e o soul. Do soul, nasceu o movimento hip-hop nas periferias de Nova York, e o funk americano no sul do país, que tem James Brown (1933-2006) como um de seus maiores representantes.

Era para ouvir e dançar as músicas de Brown que os jovens se reuniam nas periferias cariocas durante a década de 1970. "Esses eventos eram frequentados, principalmente, por negros em clubes de subúrbios e periferias", afirma Carlos Palombini, professor da Universidade Federal de Minas Gerais.

Com o tempo, Brown e outros ícones do funk deram espaço a novos estilos. O electro e o miami bass, marcados por batidas repetitivas, se misturaram às batidas do hip-hop vindo dos Estados Unidos. "Os DJs, junto com os frequentadores dos bailes, passaram a exercer um grau crescente de manipulação sobre esse material, que, colocado em relação com musicalidades locais, deu origem ao funk carioca", conta Carlos.

Os MCs do Bonde do Canguru desmontaram mitos do funk ostentação

O tempo passou e o ritmo foi incorporando novas batidas, novos temas, se transformando. Como já falamos, o probidão é só uma delas. Essas referências, inclusive, já estavam presentes nos ancestrais das músicas mais famosas hoje. No miami bass e no blues, as referências sexuais eram constantes, e no rap são comuns as letras que falam sobre crimes e denunciam a violência policial. Nada disso é gratuito. O conteúdo se relaciona diretamente com a realidade vivida por quem produz essa manifestação cultural. "O funk não é problema, mas, no máximo - e apenas em parte -, sua representação", defende Carlos.

Para Felipe, chegava a hora de encarar o proibidão. Primeiro, ele propôs que a turma fizesse a apreciação do repertório selecionado. Quem quisesse podia dançar à vontade. O restante tomou notas sobre as letras, os ritmos e as danças. Depois, se reuniram para discutir o que observaram.

Aí veio o ganho pedagógico. "Ficou claro para mim que, no momento da dança, nem sempre a relação entre letra e movimento era clara", lembra Felipe. Uma das alunas chegou a dizer: "Quando estou dançando, não penso na letra e no que ela significa, só penso em dançar". A escola foi sua primeira chance de refletir sobre a mensagem.

O comportamento dos meninos também foi para a berlinda. A turma notou que quando elas dançavam, eles ficavam no fundo da quadra. Indagados, muitos rapazes confessaram estar observando o corpo das colegas. Nova oportunidade para questionar: se a dança estava sendo feita no espaço da escola, na aula de Educação Física e com o objetivo de analisar os movimentos, ficar objetificando o corpo das meninas era a postura mais adequada? A turma concluiu que não.

 

Os bailes nasceram antes do funk carioca.
Os jovens se reuniam para ouvir as músicas
de James Brown e de outros ídolos americanos

 

Funkeiros e imagens de fachada

A discussão sobre a dança é polêmica. "O batidão provoca um movimento quase natural do quadril nas pessoas que gostam de dançar. A forte influência africana aparece aí, assim como no samba", explica Ana Abrahão, doutoranda em música pela Unicamp. Ela explica que, nas culturas africanas que influenciaram a criação do funk e do samba, os movimentos de quadril não necessariamente estavam relacionados com a sexualização. No Brasil, as letras que acompanham o ritmo reestabeleceram essa relação.

No ato final, a sequência didática avançou para cima de outro tabu: o funk ostentação. Vertente popularizada em São Paulo, traz letras e clipes com os funkeiros que se vangloriam de um estilo de vida luxuoso. Questão para a turma: essa é uma imagem real? Para responder, Felipe convidou os MCs Balão e Japinha, do Bonde do Canguru, para conversar com a turma. Na entrevista, mitos desfeitos. Os alunos achavam que os plaquê de cem maços de dinheiro, carrões, jóias e mansões mostrados nos vídeos reproduziam o cotidiano dos artistas. Os MCs desmentiram, explicando que as mulheres, os carros, as motos e os cordões de ouro eram, na verdade, atrizes contratadas e equipamentos alugados temporariamente. Confira playlists de vídeos que ajudam a entender a história e os diferentes gêneros do funk em bit.ly/tocafunk.

Convidamos os MCs para uma sessão de fotos dentro da EE Professor Norberto Alvez Rodrigues. Mas a autorização demorou demais para vir. O trabalho de Felipe tinha sido controverso e eles não queriam reacender a polêmica. Dentro da escola, o funk continua proibidão.

 

Para saber mais

Confira playlists de vídeos que ajudam a entender a história e os diferentes gêneros do funk. http://bit.ly/tocafunk

 


Fotografia: Mariana Pekin
Consultoria: Marcos Neira, professor da Faculdade de Educação da USP, e Carlos Palombini, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

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