Qual o lugar da sucata na escola?
Tampinhas, papelão e garrafas plásticas estimulam os sentidos e o faz de conta na creche e no pré
PorBianca OliveiraRosi RicoAlice Vasconcellos
02/08/2016
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Jornalismo
PorBianca OliveiraRosi RicoAlice Vasconcellos
02/08/2016
Não é no lixo. Também não é como matéria-prima de brinquedos reciclados. A sucata, por si só, tem muito valor para as crianças. Não precisa retrabalhar o material. Isso porque uma das capacidades infantis mais admiráveis é o poder de transformar qualquer objeto em brinquedo. Dê a elas uma garrafa de plástico vazia e logo poderá ver nascer um foguete. Entregue um canudo e uma varinha mágica ganhará corpo. E onde você vê uma simples caixa de papelão os pequenos concebem um castelo imaginário.
Nem sempre sucatas e reciclados são usados assim em creches e pré-escolas. Um dos maiores desafios é não cair na armadilha de utilizar esses materiais para criar objetos que podem parecer interessantes para os adultos, mas não têm sentido para os pequenos. A regra de ouro é pensar se haverá estímulo à criatividade. "A criança poderá interagir com os materiais e dar novos usos a eles em suas brincadeiras? Ou as sobras servirão apenas para produzir algo decorativo e preestabelecido pelo educador?", questiona Maria Paula Zurawski, mestre em Educação pela Universidade de São Paulo (USP). "Pedir reciclados aos pais e depois os devolver em forma de lembrancinhas é apenas uma maneira de produzir mais lixo", provoca.
A sucata na Educação Infantil faz sentido quando as crianças podem explorar os materiais. E elas fazem isso de diferentes maneiras: pondo na boca, examinando a textura, batendo em superfícies para ver se sai algum som, testando a resistência com as mãos e com os pés - e, claro, deixando a imaginação rolar. Na sequência da matéria, você confere propostas para utilizar tampas, garrafas, caixas de papelão, embalagens de bebidas e papéis na escola.
Cabe ao professor oferecer diferentes contextos e ajudar os pequenos a ampliar a fantasia. Mas isso não significa direcionar a brincadeira apenas para o que foi pensado pelo adulto ou restringir o uso dos objetos a uma única função. Deixe as crianças livres para explorar e propor significados e relações. A capacidade criativa delas é enorme e, muitas vezes, elas pensam em coisas que nós, adultos, nem imaginamos. Essa liberdade de agir também contribui no desenvolvimento da autonomia. Observálas gera conhecimento que o professor pode utilizar para enriquecer o brincar.
Na Pedagogia, esses recursos do dia a dia são chamados de materiais não estruturados ou de objetos de largo alcance, termo cunhado pelo psicólogo russo Alexei Leontiev (1903-1979). No desenvolvimento infantil, eles são importantes pelo menos por duas razões. A primeira: "A criança precisa tocar um objeto para compreender o que vê, dar significado às imagens captadas pelos olhos e aprender noções de profundidade, forma, cor e textura. Por isso, quanto mais variada a oferta, mais rica a compreensão", diz Maria Silvia Monteiro Machado, professora de artes visuais na Escola Municipal de Iniciação Artística (EMIA), na capital paulista. A segunda é que os pequenos podem atribuir às sucatas múltiplos significados - ao contrário de brinquedos prontos como bonecas, panelinhas, carrinhos etc., que habitualmente determinam o curso da brincadeira. "Quando a criança tem à disposição uma variedade grande de materiais, a capacidade de inventar é valorizada e alimentada", comenta a psicóloga Adriana Klisys, diretora da consultoria Caleidoscópio Brincadeira e Arte.
Portanto, você não precisa - na verdade, nem deve - utilizar essa matéria-prima para criar novos brinquedos, como carrinhos de garrafa PET e tampinhas, fogõezinhos com caixas de papelão e assim por diante. A imaginação das crianças já faz essa tarefa - é importante que elas exercitem essa capacidade de simbolização.
Foi a criação de um rico ambiente de experimentação com reciclados que levou nossa reportagem ao CEI Jaçanã, em São Paulo, que recebe 200 crianças de até 4 anos. Logo na entrada, dá para ver uma espécie de parque temático com objetos que provavelmente seriam descartados como lixo, mas que foram organizados em um grande corredor.
A atração principal, que captura a atenção da turma, são as cortinas de bolas plásticas e elásticos. "As crianças passam, puxam, mexem, sacodem tudo. Percebem uma variedade de sons e, a cada nova experiência, testam cada uma das possibilidades de movimentos que esses materiais proporcionam", diz a professora Márcia Peruche, que trabalha no berçário da instituição.
A cortina é um dos destaques do projeto Parques Sonoros, concebido em 2013 pela rede municipal de São Paulo e hoje presente em 127 unidades públicas de Educação Infantil. A iniciativa, que tem como eixo a música, visa proporcionar a exploração de sons por meio de objetos construídos com reciclados e apetrechos do dia a dia, como utensílios de cozinha, guarda-chuvas e ventiladores. O projeto ganha extensão nas salas, com móbiles e caixas de materiais reaproveitáveis, e também nas áreas externas, onde argolas, frigideiras e tubos de PVC são fixados à parede e ao teto, ao alcance das mãos infantis. Tudo feito de maneira segura, com a supervisão de adultos.
Boa parte dos brinquedos - sobretudo os mais complexos, como os móbiles - é construída pelas professoras durante o horário de trabalho coletivo, em parceria com um formador do Parques Sonoros, Genésio Cruz. As turmas podem colaborar em atividades menos arriscadas, como a pintura ou a colagem de adereços nos objetos.
Ao pedir sucata e reciclados para os pais, cuidado para não incentivar o consumo desnecessário, pois o objetivo é dar vida útil ao que seria descartado e não fazê-los comprar algo só para que o filho tenha o que entregar. Assim, oriente-os a enviar somente o que já têm em casa. Faça coletas esporádicas e em pequenas quantidades, conforme o projeto a ser feito, para que a escola não se transforme em depósito. É importante que os materiais sejam tratados (limpos e separados) e disponibilizados de maneira interessante para a criança utilizar. Os pequenos podem, inclusive, ajudar na organização deles no ateliê ou na sala.
O papel da sucata muda ao longo da trajetória escolar. Se na creche as opções que oferecem exploração tátil e sonora são as mais indicadas, na pré-escola abrem-se oportunidades. "Já dá para envolver a criança no processo criativo - o ideal, aliás, é que isso ocorra desde o início. A participação aumenta conforme a autonomia motora e a imaginação se desenvolvem", explica Adriana. Em geral, a partir dos 4 anos, os pequenos já conseguem participar mais ativamente na produção dos objetos. Isso pode acontecer, desde que um cuidado seja tomado: as crianças devem ter papel ativo na autoria (elas decidem o que fazer com base na orientação do educador) e realizar elas mesmas a transformação dos materiais: cortar, colar, pintar e montar.
Nessa fase, os momentos de experimentação podem ser intercalados com a apreciação da produção dos colegas. É interessante promover rodas de conversa sobre o trabalho. Isso ajuda a amadurecer o relacionamento social, pois os pequenos aprendem a considerar a opinião dos demais.
Essa sequência de ações pode ocorrer nas experiências de exploração de sons, resistência e texturas - que continuam na pré-escola - ou nas novas atividades do ciclo, como criação de jogos (com tampinhas) ou construções tridimensionais (com palitos de sorvete). Por fim, vale conscientizar os pequenos que as produções de sucata têm vida curta. É assim que deve ser: a exploração e a criação efêmera são o foco desse trabalho.
Fotografias: Veronica Mancini
Consultoria: Maria Paula Zurawkski, mestre em Educação pela Universidade de São Paulo (USP)
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