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Jornalismo

Milhares de linhas emolduram de forma única e exclusiva o rosto de cada pessoa: cerca de 150 mil fios de cabelo têm esse papel na cabeça de um adulto saudável. Quando desenham figuras humanas, as crianças pequenas costumam representar essa profusão de fios com dois traços que contornam o rosto do personagem. De modo geral, essa simplicidade acaba conferindo um aspecto muito similar a todas as obras infantis desse gênero. Ainda assim, essas representações podem ser muito úteis para começar a despertar nos pequenos a consciência dos elementos que compõem suas produções, ajudando-os a compreender melhor seus desenhos. 

Chamar a atenção da turma para o papel de linhas e traços nas produções feitas diariamente na creche não é tarefa fácil e requer conhecimento teórico, empenho, planejamento e uma boa dose de criatividade dos educadores. Ao nomear as linhas e mostrar que elas são os elementos básicos das figuras, a intenção não é conscientizar as crianças da importância das artes plásticas nem fazê-las entender o desenho como uma forma de arte. A ideia é ajudar a criançada a construir uma trajetória de conhecimento artístico com significado, em que os desenhos deixam de ser mero passatempo para se tornar uma forma de criação consciente e com estilo próprio.

Na EMEI Professora Ana Lúcia de Castro Micheleto, em São José dos Campos, no interior de São Paulo, os fios de cabelo foram a linha mestra para o desenvolvimento de uma atividade que ajudou as crianças da turma de 3 anos a enxergar os traços que compõem esse entorno - e transpor esse conhecimento para os desenhos produzidos por elas. "O trabalho com linhas e traços fazia parte de um projeto com duração limitada da rede de ensino para trabalhar arte na Educação Infantil. Em vez de apenas dar nome a esses elementos, instiguei as crianças, convidei-as a observar e, sobretudo, a experimentar, produzir desenhos em que pudessem reconhecer os diferentes tipos de linha", diz a educadora Maria Helena Silvério. O projeto aumentou de proporção e se tornou uma atividade permanente quando os pequenos passaram a reconhecer no corpo, especialmente nos cabelos, a variedade de linhas que poderiam replicar em suas produções. 

Um dicionário de verbetes cabeludos

Depois da observação cuidadosa dos tipos de fios de cabelo, a turma passou a nomear as linhas mais frequentes. Nascia um dicionário visual, que ao longo do trabalho ganhou duas versões. A primeira foi um cartaz simples, que associava as linhas ao tipo de cabelo de cada um. A segunda, mais complexa, foi uma caixa com pedaços de madeira com tipos de linhas vistas em livros: linha chuva, linha onda, linha cerquinha etc. Nos dois casos, as referências estavam sempre à mostra para a consulta dos pequenos, diversificando os desenhos.

Trata-se de uma introdução importante à arte. Para Evandro Nicolau, artista e mestre em Estética e História da Arte pela Universidade de São Paulo (USP), é por meio da representação gráfica, com linhas e formas colocadas sobre um plano, que se faz possível estudar o espaço e tornar presente e visível o que ainda não foi realizado. Já Denise Nalini, formadora do Instituto Avisa Lá e  professora de pós-graduação do Instituto Singularidades, em São Paulo, diz que é preciso ajudar a desenvolver o olhar para os aspectos essenciais do desenho. "Linhas são os elementos mais básicos desse tipo de linguagem artística e por isso devem ser trabalhados já na creche." 

Os pequenos têm totais condições de compreender esses conceitos. Sabe-se disso desde a obra do psicólogo bielorrusso Lev Vygotsky (1896-1934), cujo pensamento originou a corrente pedagógica do socioconstrutivismo. Em seus livros, Vygotsky tratou sobre a precocidade no que diz respeito à percepção de objetos reais - não somente de suas formas, mas de seus significados. Diz ele que os pequenos percebem rapidamente a diversidade de sentidos que o mundo pode ter por meio das formas, que podem ser apropriadas por eles e utilizadas no dia a dia. 

Segundo Denise, alguns tipos de atividades pordem favorecer o desenvolviomento dessa percepção. "A criança deve experimentar situações de desenho com linhas e traços e, posteriormente, ser convidada a observar esses elementos no entorno, como o traçado das produções dos colegas, as ilustrações dos livros e até as linhas mais abstratas, como a do horizonte", explica.

 

A linha é só o ponto inicial

Após reconhecer linhas em ilustrações de livros infantis, as crianças da turma de Maria Helena passaram a experimentá-las em desenhos que produziam diariamente. A percepção dos fios de cabelo como linhas presentes nas pessoas veio dessa observação inicial. "Os pequenos notaram que cada um tinha o cabelo composto de um tipo de linha: ondulada, enrolada, lisa, curta, longa e das mais variadas cores", diz a educadora.

Um dos principais resultados do trabalho é um dicionário de linhas do grupo (leia o quadro acima). Após a observação atenta para encontrar esses elementos, as crianças passaram a identificar e catalogar os tipos de linhas. "Todos se apropriaram da linguagem do desenho e passaram a incrementar as produções com base nas referências desse material", diz a docente. O trabalho de criar dicionários considerando a observação de desenhos não é novidade. Entre as décadas de 1960 e 1970, a pesquisadora norte-americana Rhoda Kellogg (1898-1987) analisou mais de 300 mil desenhos feitos por crianças. Ela descobriu que traços básicos, formas de ocupação do espaço e jeitos de combinar os elementos estavam presentes em muitas das obras, mostrando certa regularidade e uma tipologia em qualquer tentativa de representação simbólica infantil. Ela criou, então, o que denominou dicionário de traços básicos do desenho, que ainda hoje é considerado uma referência mundial no assunto. A turma de Maria Helena fez algo parecido. "O maior ganho foi ver as crianças consultando o dicionário para cada nova produção artística, demonstrando intencionalidade no que faziam."

 

As crianças usaram pincel e tinta para fazer linhas no papel e na parede de azulejos

A experimentação diária de desenhar com linhas ganhou corpo com diferentes tipos de materiais e suportes. Além de lápis e papel, a educadora trabalhou com cordas e barbantes que, colocadas no chão, ajudavam a criar formas com efeito tridimensional. As crianças também desenharam na areia e usaram pincel e tinta em paredes de azulejos. Tudo isso ajudou o grupo a entender que linhas não são padrões únicos, mas traçados que mostram as particularidades de cada produção. "O trabalho tem o mérito de incentivar o desenho como atividade diária. Não qualquer um, e sim com intencionalidade e o objetivo claro de aumentar o conhecimento artístico dos pequenos. O investimento resultou numa apropriação de conhecimento", diz Maria Paula Zurawski, mestre em Educação pela USP.

O planejamento de Maria Helena considerou o tempo para os pequenos desenharem todos os dias e usarem o canto montado na sala sempre que desejassem. Em muitos momentos, a atividade de desenho era encaminhada por ela - por exemplo, quando a turma fez molduras com fotografias ampliadas dos mais diferentes tipos de cabelo. O objetivo era que todos vissem em detalhes as linhas que compunham cada um deles. "Em seguida, as crianças foram fotografadas com o rosto nas molduras. Além de mostrar para elas a possibilidade de usar duas linguagens da arte - o desenho e a fotografia -, a atividade também criou um debate sobre as características únicas de cada tipo de cabelo", afirma.

Esse trabalho é essencial para a criançada compreender que o desempenho artístico não tem necessariamente relação com dom. Tem a ver com a apropriação de uma linguagem e seu desenvolvimento. "O educador precisa se desprender de conceitos estéticos que hoje não fazem mais sentido. A representação perfeita da realidade por meio do desenho, por exemplo, perdeu o foco com o advento da fotografia. Hoje, o conceito de desenho vai além da tentativa de se aproximar da realidade. Ele se apropria de outras linguagens artísticas, como a própria fotografia ou a animação computadorizada", fala Denise.


Fotografia: Verônica Mancini

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