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Jornalismo

Apito na boca do professor, regras, foco nas   modalidades esportivas e alunos repetindo movimentos, classificados e divididos em melhores e piores. Esse era o cenário das aulas nas escolas no passado. Compreensível. Era um momento anterior às preocupações com palavras hoje tão comuns e importantes: gênero, protagonismo infantil, saúde, diversidade, inclusão, inserção social, multiplicidade de saberes. Mais que uma longa lista de jargões, cada um desses termos teve seu papel na transformação - definitiva - das práticas da Educação Física escolar. Suas aulas já consideram essa nova realidade? No que você ainda precisa avançar? Esta reportagem quer provocar uma reflexão sobre as melhores maneiras de pôr a meninada para se movimentar. A ideia é que crianças e jovens enxergem sentido e encarem as aulas como algo útil para a vida deles. Você vai conhecer, ainda, a história de três educadores que se fizeram essas perguntas e mudaram suas práticas.

 

Uma história de muitos caminhos

Nossa viagem começa por um olhar sobre o percurso da disciplina. Por muito tempo, as aulas de Educação Física tiveram como objetivos centrais fazer com que os alunos melhorassem suas aptidões físicas, aperfeiçoassem determinados movimentos, gastassem calorias e ficassem craques nos esportes. Formar atletas, aliás, tornou-se o foco de muitas escolas. Uma perspectiva em linha com a Educação Física moderna, popularizada a partir da década de 1940. A promessa era que a disciplina ajudaria a constituir sujeitos melhores - o que significava hábitos adequados de saúde e um bom desempenho motor. 

Passado um tempo, em 1980, a disciplina se aproximou das ciências humanas ao reconfigurar seu objeto de estudo, que deixou de ser o movimento e passou a ser a cultura corporal. Por essa nova abordagem, a Educação Física pós-moderna, buscava-se transformações sociais, à moda do espírito contestador da Educação que ganhava espaço após o fim da ditadura militar (1964-1985). A expectativa era de que os alunos aprendessem a analisar criticamente o patrimônio cultural corporal da sociedade, numa perspectiva que valorizasse a democracia e os direitos humanos. Em termos práticos, perde importância a promoção dos esportes tradicionais - o quarteto futebol, vôlei, basquete e handebol. Acrobacias, atividades aquáticas, dança, jogos motores, lutas, práticas corporais introspectivas (como ioga) e de aventura na natureza (como arvorismo) ganharam espaço e visibilidade.

Nos últimos 20 anos, mais uma transformação vem ocorrendo, agora com a reconfiguração da noção de cultura corporal. As teorias pós-críticas defendem que a Educação Física tem de considerar o papel de cada sujeito nas práticas que envolvam movimento. No exemplo do futebol, passa a ser necessário abarcar novos aspectos: o envolvimento das meninas na modalidade é diferente dos meninos e crianças de várias partes do mundo praticam futebol de maneiras diferentes. O professor tem de levar isso em conta e encaminhar os alunos a conhecer outros tipos de futebol - de campo, de areia e de rua, e mostrar como o futebol é muito praticado por meninas em outros países. Ainda é possível fazer a turma pesquisar os tipos e a evolução das bolas e construir redondas diferentes. 

"Se por um lado eu procurava inovar as aulas levando a prática do skate, do parkour e das lutas para a escola, quando passei a ouvir as expectativas dos alunos, notei que eles se interessavam por atividades relacionadas à montaria, tais como prova de laço comprido e dos três tambores. Faz muito sentido, atuo em uma área rural. Resolvi incorporar ao planejamento adaptações dessas modalidades."

GLAUBER BEDINI DE JESUS, professor do Instituto Federal de Rondônia (Ifro), em Colorado do Oeste

 

Mais um exemplo ajuda a situar o que mudou. Marcos Garcia Neira, professor titular da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP) e coordenador do Grupo de Pesquisas em Educação Física Escolar, fala sobre o ensino da capoeira sob o ponto de vista das três perspectivas. "Na vertente moderna, o foco da disciplina está concentrado no ensino dos golpes da capoeira para que os alunos aprendam a lutar bem. Na abordagem pós-moderna, dominar a gestualidade é o menos importante. O educador tem de dar ênfase às discussões que tratem de como a capoeira colaborou para a libertação dos negros e de que maneira essa luta se insere no movimento negro brasileiro, entre outras questões. Já de acordo com as teorias pós-críticas, o professor deve se preocupar em ensinar a lutar capoeira, mas precisa também busca entender, juntamente com a turma, como os diversos grupos foram se modificando e atribuindo novos significados à prática ao longo do tempo", conclui.

Um conceito que ganha força e que vale a pena conhecer é o de patrimônio da cultura corporal do movimento. Apesar do nome pomposo, o significado é simples: diz respeito às maneiras de uso do corpo que os seres humanos foram descobrindo e construindo ao longo da história. A escola tem hoje a função de apresentar aos alunos esse rico repertório por meio de brincadeiras, jogos, lutas, danças e ginásticas.  

Para Fábio D'Angelo, mestre em Educação Física e formador de professores, é a quantidade e qualidade das interações dos alunos com o patrimônio da cultura corporal que vai determinar as habilidades e competências motoras que cada um irá desenvolver. "Temos de oferecer uma vasta gama de atividades. Os alunos devem ser instigados a se comunicar corporalmente tal como se comunicam em outras linguagens."

É aí que entra um outro ingrediente: durante as atividades corporais, a turma deve poder dar sugestões e descobrir novas possibilidades. Não vale só se mexer! "O ideal é que os estudantes ressignifiquem as práticas. Se eles já reproduzem movimentos em aula, têm de passar a pensar  também em quais circunstâncias faz sentido usá-los e que tipos de técnicas precisam ser empregadas para alcançar um ou outro objetivo", diz Osmar Moreira de Souza, professor adjunto no Departamento de Educação Física e Motricidade Humana (DEFMH) da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). 

"Queria inovar e quebrar tradições. Mas propunha o diferente pelo diferente, não pelo saber que poderia compartilhar. Ao compreender a disciplina como conhecimento específico, passei a sistematizar os conteúdos num plano integrado. Segue sendo um desafio agradar os alunos. Eles adoram as aulas, mas, quando começamos a analisar as atividades em vez de só jogar bola, há um estranhamento."

GILMAR WIERCINSKI, professor da EMEF Tomé de Souza e da EEEF Chico Mendes, ambas em Ijuí, RS

 

Armadilhas que fazem regredir

Nem sempre é fácil trabalhar dessa forma. Às vezes acabamos fazendo sempre a mesma coisa, como o incentivo exclusivo à vitória, a exaltação da competição, a reprodução das regras formais e a priorização do indivíduo sobre o coletivo. Tudo isso, que ainda segue vivo na sociedade, acaba remetendo as aulas de hoje às perspectivas mais tradicionalistas da Educação Física. A esse respeito, há um consenso entre os especialistas: é fundamental que práticas hierarquizadas e excludentes sejam repensadas. Em vez de formar seleções, a palavra de ordem é buscar atividades em que todos se sintam bem em participar.

Mas, não pode ser só diversão. Esse climão de "aula vaga", aliás, fez muito mal à disciplina por desvalorizar seu saber específico. "A Educação Física é um componente curricular tão relevante para a formação do cidadão quanto os outros. É preciso apresentar uma dimensão da cultura (no caso, corporal) que não pode ser aprendida em outro espaço da escola", afirma Santiago Pich, professor do departamento de Estudos Especializados em Educação (EED) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Esse entendimento é muito importante para acabar com a ideia de que a disciplina se restringe à brincadeira, momento de relaxamento e descontração. As práticas esportivas e os exercícios podem ser muito prazerosos, mas o professor não deve esquecer que o objetivo da escola é ensinar conteúdos. 

 

A turma precisa se mexer. Muito!

O momento atual aponta para um meio-termo: nem tanto à teoria nem tanto à prática. Para dizer de uma outra forma, o que se busca é a prática com reflexão, em que o movimento segue sendo o eixo central da disciplina. A proposta tem tudo a ver com um problema alarmente dos dias de hoje. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), cerca de 15% das crianças brasileiras com idade entre 5 e 9 anos têm obesidade. Uma em cada três não chegaram ao nível da obesidade, mas já estão com peso acima do recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e pelo Ministério da Saúde. O drama é bem mais complexo que ter uma silhueta rechonchuda: estudos do Instituto Esporte e Educação mostram que essa nova geração terá uma expectativa de vida cinco anos menor que a de seus pais pela falta de exercícios físicos.

A força da escola para incentivar os alunos a se mexer é incomparável. Uma sugestão de Marcos Santos Mourão, especialista em Educação Física escolar, é fazer com que a garotada incorpore as atividades que aprende na escola nos momentos livres. Para isso, ele cria brincadeiras com a colaboração dos estudantes, ajudando-os a aumentar o repertório. Uma das invenções é o joquempô com corrida, brincadeira conhecida como corrida pô, que une sorte e azar com a atividade corporal: dependendo do resultado no famoso "tesoura, pedra, papel", a meninada precisa correr uma determinada distância. "Os alunos só aprendem quando elaboram uma representação pessoal que confere sentido e significado à atividade. Essa é uma forma de lecionar bem diferente das propostas tradicionais, quando o professor manda e os alunos seguem o que ele diz, sem estabelecer nenhum vínculo com a atividade proposta", diz.

 

Abrir mão do controle total

Não é simples agir assim. Muitas vezes, os próprios alunos resistem a propostas diferenciadas. Pelo rótulo que a disciplina evoca no imaginário coletivo, não é raro que a moçada queira mesmo só jogar bola. Muitos dos meninos não têm apreço por dançar e geralmente as meninas têm menos força física. Essas características precisam ser respeitadas - e as inovações repensadas. Apesar disso, cabe ao professor criar atividades que valorizem todas as características da turma e despertar a vontade de experimentar coisas novas.

Vencer preconceitos é fundamental, já que o propósito atual do ensino de Educação Física é promover a inclusão e desenvolvimento de todos. Por isso, invista em sua criatividade, busque o apoio de colegas (confira as dicas de atualização no quadro abaixo), converse com os estudantes e se disponha a escutá-los.

É desafiador e, em grande medida, implica abrir mão do controle total sobre a aula e do que você havia imaginado para aqueles 50 minutos diante da turma. Mas é essencial para cumprir a ambiciosa e importantíssima missão da Educação Física escolar no século 21. 

"Quando estudante, a aula perfeita para mim era com bola de futebol para meninos e de vôlei para meninas. Na faculdade, tudo mudou. Estudei e avaliei como cada proposta colabora ou não para a aprendizagem dos alunos. O ponto positivo de dar uma aula tradicional é ter controle. Mas se uns alunos executam as propostas bem, os que não têm muita habilidade ficam intimidados. Por isso, faço das aulas momentos prazerosos de vivências e práticas para todos." 

FABIO DE MENEZES, professor da Escola da Vila, em São Paulo

 

Atualize sua prática já!

Confira dicas dos especialistas

  • Procure redes colaborativas e grupos de estudos com perspectivas inovadoras. Normalmente, os participantes registram avanços e proposições em comunidades virtuais de livre acesso.
  • No Google, uma boa expressão de busca para encontrar esses recursos é grupo estudo "educação física escolar".
  • Busque experiências que estão em curso para se inspirar, mas evite segui-las como receitas. Tente adaptá-las para contemplar as especificidades da turma.
  • Não ignore ou negue o que os alunos pedem, mas saiba propor o que solicitam de forma diferente. Reformule as propostas criando novas regras, misturando jogos e garantindo que as práticas tenham a premissa da inclusão.

Fotos: Marcelo Curia

 

 

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