A nova história dos velhos quilombos
Pesquisas derrubam estereótipos sobre essas comunidades. Faça o mesmo em suas aulas
PorWellington SoaresPatrick CassimiroMonise Cardoso
07/04/2016
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Jornalismo
PorWellington SoaresPatrick CassimiroMonise Cardoso
07/04/2016
As fotos que ilustram esta reportagem foram tiradas em quilombos. Nelas você não vê negros em roda, batucando tambores, como nas pinturas clássicas sobre o assunto, presentes quando os livros didáticos mencionam a existência dessas comunidades. Ao contrário, os flagrantes mostram o cotidiano de grupos que, apoiados na herança afro-brasileira, construíram um modo de viver parecido com o de outras regiões rurais.
As imagens foram feitas por crianças e adolescentes quilombolas dos distritos de Palmeira dos Negros, na cidade de Igreja Nova, e Bom Despacho, em Passo do Camaragibe, ambas no interior de Alagoas. Elas foram produzidas durante oficinas do projeto Autorretrato - O Nordeste Que É a Nossa Cara (conheça mais em retratonordeste.com).
"Explico para as crianças que o que determina uma boa foto é a importância histórica, social e emocional que ela carrega", conta o coordenador da iniciativa, Waldson de Souza. Imprimir um novo olhar sobre as populações quilombolas - de hoje e do passado - tem sido um esforço das pesquisas da área. "A história do negro no Brasil é contada de cima para baixo, pelo olhar dos fazendeiros", destaca Martha Campos Abreu, professora adjunta da Universidade Federal Fluminense (UFF), onde desenvolve pesquisas sobre o tema. Na versão oficial, imperam os estereótipos, como o batuque. Em sala de aula, o desafio é mostrar que há muito mais semelhanças entre essas comunidades e a vida fora delas.
O trabalho começa por compreender o significado dos quilombos para além do senso comum. Essas comunidades eram constituídas principalmente por mulheres e homens negros, boa parte escravos que escapavam das senzalas. Com a criação desses povoamentos, nasciam também novos modos de vida e de trabalho. No livro Quilombos: Identidade Étnica e Territorialidade (Eliane Cantarino O'Dwyer, 294 págs., Ed. FGV, tel. 0800-021-7777, 30 reais), a autora mostra que o quilombo Furnas de Dionísio, fundado em 1890 em Mato Grosso do Sul, tinha como principal atividade a agricultura sustentada por práticas cooperativas. Era comum, por exemplo, que quem tivesse dificuldade para finalizar algum trabalho na roça pedisse ajuda aos demais. Com isso formavam-se mutirões de homens que, em troca, recebiam alimentação. Ao final do dia, quando o mutirão acabava o trabalho, os ajudantes cercavam o dono da roça e o levavam até em casa cantando: "Patrão tá preso/não é pra soltá/garrafa e meia/pra nós toma". Servia-se o jantar e a noite se encerrava com uma roda de lundu, dança africana ritmada por tambores. O batuque, aqui, não é só música.
Eles não viviam isolados
Na EM República de El Salvador, no Rio de Janeiro, o professor Eric Brasil se apropriou dessa visão renovada sobre os quilombos no trabalho com a turma de 8º ano. Ele começou perguntando aos estudantes quais eram as estratégias de libertação que eles imaginavam que os escravos poderiam ter adotado no passado. As respostas foram duas: fugir ou se revoltar. Foi então que ele introduziu a discussão sobre os quilombos, mostrando que eles eram muito mais do que um abrigo.
Ao contrário do que normalmente se pensa, as vilas não estavam totalmente apartadas do mundo - e isso era bom. No artigo Ameaça Negra, o historiador João José Reis ilustra o cenário da época: "Para senhores e governo, o problema maior estava em que, na sua maioria, os quilombos não existiam isolados, distantes da sociedade escravista". Os moradores estabeleciam relações com a população urbana, criando uma rede de contatos que envolvia negros escravizados, negros livres e até homens brancos. ?Com essa gente eles trabalhavam, se açoitavam, negociavam alimentos, armas, munições e outros produtos; com escravos e libertos podiam manter laços afetivos, de parentesco, de amizade?, descreve.
Mesmo a vida na escravidão não era isolada. Martha Campos ressalta que, apesar da ausência de registros, os negros sempre organizaram revoltas e criaram meios de negociar a sua sobrevivência. Uma das formas que as pessoas encontravam de se comunicar, planejar fugas e trocar informações sobre novos quilombos era no meio dos carreiros, escravos que trabalhavam transportando produtos como café. "Por viajarem grandes distâncias, esses homens adquiriam contatos e conhecimento", conta. As festas promovidas na cidade também eram momentos de articulação entre os cativos. Ali, podiam se conhecer e planejar desde um casamento até grandes fugas.
Passados presentes
Nas aulas de Eric, os alunos não sabiam o significado do termo "quilombo", e muito menos imaginavam que essas comunidades pudessem existir ainda hoje. "Quando perguntados, um ou outro arriscou dizer que tinha ouvido falar sobre Palmares, mas não sabiam explicar do que exatamente se tratava", lembra. Depois de apresentar as características dos quilombos históricos, o professor decidiu debater os que ainda sobrevivem.
Para trazer a discussão para a atualidade, Eric apresentou o Artigo 68 da Constituição Federal, que versa sobre os direitos concedidos aos povos que vivem em terras remanescentes de quilombos. "Com isso, consegui mostrar para eles que o termo quilombo é usado politicamente para conquista de direitos, e tem também um amplo sentido ligado à vida em comunidade, com tradições culturais e de matriz africana", conta Eric. Com a intenção de deixar os conceitos ainda mais claros na cabeça da garotada, o professor exibiu o documentário Memórias do Cativeiro (Guilherme Fernández e Isabel Castro, 43 min, disponível em abr.ai/memorias-do-cativeiro). O filme apresenta relatos de descendentes de escravos trazidos para o sudeste brasileiro no século 20.
Para Juliano Sobrinho, doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), discutir a criação e a permanência das comunidades quilombolas é importante para refletir sobre as marcas sociais deixadas pela escravidão. "Não podemos esquecer o sofrimento para que ele não volte a acontecer?", destaca.
Para dar continuidade à discussão sobre as diferentes formas de resistência do povo negro, uma alternativa de trabalho é a utilização de letras de jongo. Considerada patrimônio imaterial brasileiro pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), a prática é uma das muitas heranças africanas: foi trazida por homens e mulheres escravizados na região do Congo. Hoje, permanece viva dentro e fora de comunidades quilombolas. Trata-se de uma dança de roda, que era realizada em lavouras de café. "Por meio delas, os escravizados conseguiam desabafar, criticar o cotidiano, tirar sarro dos senhores, se declarar. É uma das práticas mais fortes da cultura da resistência", explica Martha Campos. A pesquisadora sugere, ainda, um paralelo entre a similaridade do jongo e do rap, estilo contemporâneo vindo das periferias. É um caminho interessante para expandir o estudo sobre a importância da música na luta da cultura negra."Em suas melhores manifestações, tanto o jongo quanto o rap conseguem provocar reflexão sobre uma realidade injusta", finaliza Martha.
As imagens presentes nos livros didáticos mostram muito, mas são apenas uma pequena parte da gigantesca história dos quilombos.
Fotografia: Projeto Autorretrato - O Nordeste Que É a Nossa Cara
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