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Jornalismo

“Quem não tem nada a dizer acha que diz tudo quando agride”

Marcia Tiburi fala sobre o seu novo livro, "Como conversar com um fascista"

PorFernanda Salla

04/03/2016

Marcia Tiburi,

Marcia Tiburi,
Doutora em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

Dialogar é preciso. Isso é o que propõe a filósofa Marcia Tiburi em seu mais recente livro, Como Conversar com um Fascista (Ed. Record, 196 págs., tel. 11/3286-0802, 42 reais). Como a linguagem nos constitui como seres políticos, a falta do diálogo representa um empobrecimento da democracia. Nesse contexto, o fascista se caracteriza por ser um sujeito autoritário e politicamente pobre. Ao se fechar para o debate, ignora a opinião e a existência do diferente.

A seguir, Marcia fala sobre o que está por trás das manifestações de preconceito e da falta de tolerância  termo que, aliás, ela questiona. Além de refletir sobre o ambiente polarizado na internet e sobre como conversar com quem não quer, a filósofa tece duras críticas à escola. Para ela, trata-se de uma instituição que reproduz, fomenta e até inaugura esse tipo de processo, o que desemboca na cultura do ódio.

Na internet, muitas pessoas se mobilizam com o propósito de defender uma ideia e ofender quem é contrário a ela. O que explica opiniões tão raivosas?
MARCIA TIBURI Nossa linguagem está empobrecida. Pessoas que não têm nada a dizer acham que dizem tudo com uma imagem, uma agressão. As manifestações de pensamentos são efeito de processos históricos e das condições em que a gente vive econômicas, políticas, culturais e tecnológicas. O advento da internet e principalmente de redes sociais como Twitter e Facebook alterou a forma de nos comunicarmos. Nesses espaços, o discurso do ódio se encontra em alta. Expressar preconceitos e humilhar o outro virou uma espécie de capital linguístico.

O que isso quer dizer?

Do ponto de vista do sujeito, há um lucro simbólico no discurso de ódio. Num pensamento binário que é reducionista e funciona por oposições simplórias , se digo você é burro, alcanço para mim a ideia de que eu sou inteligente. Sendo você homossexual, eu sou heterossexual. E assim por diante. Dessa maneira, me inscrevo na norma, construída com base num ideário em que existem inferiores e superiores.

Falta tolerância? 

Confesso que não simpatizo muito com a palavra. A tolerância pressupõe uma espécie de suportabilidade em relação ao outro. Não é o que se deve buscar numa sociedade democrática e de defesa de direitos fundamentais. Eu não tenho de tolerar o outro porque ele é diferente e, evidentemente, estamos falando de diferença em relação à norma socialmente aceita, ao paradigma opressor. O outro tem o direito de existir na sociedade tal como ele se coloca. No lugar da tolerância, eu usaria a ideia de respeito à diferença.

Que posturas afastam alguém do diálogo? 

Atitudes que não condizem com essa prática, como xingamentos baratos e desejo de maltratar. Pessoas que agem assim não querem o diálogo. Para elas, o outro é apavorante, não apenas no nível do medo, mas no nível da inveja.

Como assim? 

Freud defendia que o contrário do amor não é o ódio, mas a inveja. Ao afirmar isso, não estou dizendo que o homofóbico seria, por inversão, um homossexual. O que está em jogo na necessidade de se autoafirmar como hetero é não poder nem sequer suportar a ideia da homossexualidade. É como se, por ser inseguro em relação a si mesmo, ele fizesse um acordo autoritário com a própria existência. É a inveja do desejo do outro. A figura que eu chamei de fascista é a que morre de inveja por se sentir impotente. Por isso, temos de nos perguntar: Como nos tornamos quem somos?.

Você propõe o diálogo como exercício político. Como falar com quem não quer ouvir? 

Não podemos confundir dialogar com conversar. Dialogar não é o mesmo que passar o dia inteiro na rua tentando conversar com pessoas. Dialogar é sério! Não é um papo furado, muito menos uma conversa retórica. É, aliás, o contrário da retórica. Conversando a sério, a gente busca razoabilidades, reconhecer o lugar do outro e os limites desse lugar, que todos nós temos. Impor um diálogo é impossível, porque a imposição é autoritária, mas podemos fazer um convite. Evito qualquer postura preconceituosa. Isso não quer dizer que temos de ser simpáticos o tempo todo. Podemos ser bastante diretos, sinceros, mas sobretudo com respeito ao interlocutor e responsabilidade em relação ao que se fala. É bastante desafiador colocar esses princípios em cena, tentando se fazer entender. Assim como não é fácil escutar o outro que fala com honestidade. As redes sociais, por serem lugares em que todos têm voz, dão a impressão de democratização da expressão. Isso é um ganho? A internet e as redes sociais não criam o diálogo, apenas permitem que as ideias se tornem públicas. Para que o diálogo possa ocorrer, é necessário capacidade de escuta e de expressão. O Twitter, por exemplo, me propõe 140 caracteres para me expressar. Mas nossa linguagem é tão complexa em sua forma e conteúdo que não pode ser reduzida a isso. Também abre-se caminho para a utilização desses espaços como uma prótese narcísica, principalmente o Facebook. O sujeito autoritário reivindica, bizarramente, seu direito de se expressar de modo preconceituoso, como se uma sociedade pudesse se tornar mais democrática por causa disso. A crença de que realizamos a democracia só porque falamos aquilo que nos vem à mente é de quem não reflete sobre os significados dos processos políticos, sociais e epistemológicos.

Expor essas ideias é perigoso? 

Considero um risco à própria democracia. É claro que todos devem ter o direito à expressão. Mas propagando o discurso do ódio, essas pessoas funcionam como representantes do autoritarismo vigente, e se tornam tanto mais agressivas quanto mais frágeis são. Essa autorização à agressão barata é de um nível de barbárie preocupante. É um perigo também à sociedade como um todo e à própria noção de civilidade.

Como podemos avaliar se nós mesmos não somos fascistas? 

A pergunta que a pessoa pode dirigir a si mesma é: Em que eu sou autoritário?. Pensar com atenção, profundidade e crítica é algo que está sendo cancelado. A autoanálise e o questionamento sobre como me torno quem sou são posturas cada vez mais fundamentais.

A escola amplifica ou diminui o ódio? 

Ela é uma instituição que, muitas vezes, reproduz, fomenta e até inaugura esse tipo de processo. Antes mesmo do ódio radical virar espetáculo na nossa cultura, as escolas conviveram com procedimentos de humilhação, que hoje são amenizados com o termo bullying. São as escolas, inclusive, que ensinam a pensar do ponto de vista binário.

O que deveria ser feito? 

Talvez precisemos questionar a estrutura das escolas. A pergunta que precisa ser feita todos os dias é: Educar para quê?. A meu ver, em vez de dar ênfase ao conteúdo, seria preciso priorizar a experiência. O currículo englobaria outras áreas, como Sociologia, Filosofia e cultura contemporânea. Todos os professores, gestores e secretários de Educação sabem que estão formando pessoas. Se não sabem, não deveriam estar onde estão. E se sabem e não se comprometem, não têm ética, não possuem o mínimo respeito e deveriam, sumariamente, retirar-se de seus postos.

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