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Jornalismo

O processo de produção do mural do artista Milton Schaefer intrigou os alunos

Muitas crianças ainda veem o artista como uma figura inalcançável, alguém que viveu há muito tempo. Também ronda o imaginário de algumas a ideia de que a arte se restringe a quadros pendurados nas paredes dos grandes museus. Essa visão estereotipada pode ser explicada, em parte, pelos modelos geralmente apresentados em sala, como Leonardo da Vinci (1452-1519), Pablo Picasso (1881-1973) e Vincent van Gogh (1853-1890). Artistas europeus consagrados, mas de um passado que, para elas, é distante. 

Sem se identificar com eles, os alunos têm dificuldade de enxergar em si mesmos um potencial criador. Segundo Eliana Gomes Pereira Pougy, especialista em Linguagens da Arte pelo Centro Universitário Maria Antonia (Ceuma) e mestre em Educação pela Universidade de São Paulo (USP), até o período da ditadura militar, o ensino dessa disciplina no Brasil era voltado para a técnica. O estudo da história da Arte e da vida dos artistas é algo recente. Mas, apesar dos avanços, lacunas ainda são encontradas atualmente. 

"O ideal é se basear na realidade dos alunos, fazendo com que eles olhem para o que fica ao lado deles. Conhecendo o que está no local, é possível entender o global."

ELIANA GOMES PEREIRA POUGY,
mestre em Educação pela USP

Quando o professor segue a ordem cronológica, as crianças demoram a se ver representadas nas produções, pois a arte contemporânea só é contemplada depois de um longo mergulho na arte clássica e em outros períodos longínquos. "O ideal é se basear na realidade dos alunos, fazendo com que eles olhem para o que fica ao lado deles. Conhecendo o que está no local, é possível entender o global", explica Eliana.

A professora Cecília Luiza Etzberger se deparou com essa questão ao realizar um projeto com o 4º ano da EMEF 25 de Julho, em Ivoti, a 53 quilômetros de Porto Alegre. A reforma de uma praça idealizada na década de 1990 por Roberto Burle Marx (1909-1994), que passou a ter todos os elementos previstos no projeto original do arquiteto, foi o que incentivou a docente a planejar o estudo sobre o patrimônio artístico da cidade. 

Uma artista da própria cidade foi a inspiração para o trabalho com mosaicos de azulejos

City tour com experimentação

Nos meses seguintes, a educadora levou os estudantes a conhecer produções presentes nas cinco principais praças de Ivoti e identificar os artistas que as realizaram. Com esse rico repertório, as crianças produziram desenhos, pinturas, colagens e mosaicos inspirados pelas técnicas e a linguagem empregadas em cada obra.

Após levantar o conhecimento dos alunos sobre os espaços públicos, por meio de rodas de conversa, a professora programou as visitas de estudo em um único dia, com orientação da historiadora e também professora da escola Gabriela Dilly. 

Já em sala, antes de cada etapa de produção, eles relembraram os detalhes dos ambientes e das obras encontradas, também estudaram mais a fundo os artistas e as técnicas utilizadas. Para Monique Deheinzelin, doutora em Psicologia da Educação pela Faculdade de Educação da USP, a proposta foi acertada. "A quebra dos muros entre a escola e a cidade proporciona às crianças repertório para compreender e produzir arte", avalia.

Em visita à Praça das Flores, por exemplo, os alunos se encantaram com o mosaico feito na parede por Ariane Coelho. Ao saberem que ela era moradora de Ivoti, eles ficaram espantados, como se não acreditassem que um artista vivesse ali perto. Motivada pelo interesse deles, Cecília entrou em contato com a mosaicista, que orientou o trabalho da turma com azulejos.

Posteriormente, ao visitar a escola, Ariane revelou à garotada que seu interesse por desenho e pintura vinha desde criança, desmistificando a figura do artista como alguém mais velho. "Alguns alunos tinham a ideia de que todos estavam mortos. Foi muito emocionante quando se deram conta de que eles ainda existem, inclusive na própria cidade", relembra a professora. 

"Depois avaliação, ele perceberam que também poderiam ser protagonistas, que eram capazes e tinham conhecimento para produzir arte."

CECÍLIA LUIZA ETZBERGER,
professora da EMEF 25 de Julho

Já em visita à Praça da Emancipação, eles apreciaram um mural do gaúcho Milton Schaefer. Alguns ficaram curiosos pelo fato de a obra ser bem parecida com uma pintura presente na entrada da escola. Outros afirmaram que a assinatura era a mesma. De volta à instituição, a turma confirmou a suspeita, e mais: tomou consciência de que aquele local, que fazia parte do cotidiano deles, também possuía uma obra de arte.

A conversa em sala revelou outras percepções. "A pintura está um pouco errada, porque o homem não pode entrar naquela igreja!", disse uma criança, referindo-se à desproporção existente em uma das telas do artista. Outra questionou a dificuldade de se criar um mural: "Como ele sabia o que estava pintando e se estava ficando correto, já que ele só conseguia compreender a imagem de longe?". Mediados por Cecília, a turma discutiu sobre as possibilidades de criação, o fato de não ter obra certa ou errada e demonstraram um olhar mais aguçado a respeito das produções.

Depois, inspirados pela mistura de cores e pelas pinceladas expressivas de Milton Schaefer, os alunos fizeram suas próprias criações. Segundo a professora, o desafio foi pintar com guache, na vertical e no papel pardo, uma vez que estavam habituados ao tradicional sulfite e ao lápis de cor. "Eles tiveram dificuldade para explorar as misturas de tons, liberar mais o braço e aproveitar o espaço maior para se expressar", lembra.

Na sequência, foi a vez de estudar a linguagem do grafite - apreciado pela garotada na Praça do Skate -, começando por diferenciá-lo da pichação. Ao rever fotos do local, os alunos destacaram a escrita distinta da convencional e o uso de linhas pretas. Com base nas análises, cada um registrou com guache o nome em papel A3, buscando variações na maneira de representar as letras, e finalizou o contorno com nanquim preto. A esse ponto, já estavam bem mais desinibidos para usar uma folha maior.

A pintura no papel pardo, com pinceladas soltas e na vertical, se revelou um desafio

Arquitetura e cidadania

Enfim, chegou o momento de falar sobre a Praça Neldo Holler, projetada por Burle Marx e que incentivou a realização do projeto. As crianças se encontraram com a arquiteta da prefeitura Rosana Weber e com o prefeito, Arnaldo Kney. "As conversas ampliaram os horizontes dos alunos, que conheceram o ponto de vista do poder público sobre o espaço urbano", conta Cecília. 

Para unir teoria e prática, eles decidiram ajudar na revitalização da praça dentro da própria escola com o intuito de levar arte ao local. Um tapume foi pintado com imagens de pipas, em alusão ao trabalho do artista regional Mai Bavoso no chafariz da Praça Concórdia, também visitada. A criação foi desenvolvida em grupo, durante um mês, com a participação de outras turmas. Na opinião de Valéria Pimentel, coordenadora da Escola Verde, em Santos, a 80 quilômetros de São Paulo, "ao convidá-los a fazer alterações paisagísticas na pracinha da escola, a professora deu função real à produção da garotada".

No final, eles recapitularam o percurso de estudo e criação. Viram juntos fotografias de cada fase, teceram comentários sobre suas obras e as dos colegas, disseram do que gostaram, o que acharam difícil e realizaram uma avaliação por escrito. "Eles perceberam que poderiam ser protagonistas, que eram capazes e tinham conhecimento para produzir arte", comenta a professora. 

Permeada pelo cotidiano das crianças, a aprendizagem ganha significado. "O que dá valor e torna esse projeto autêntico é a possibilidade de os alunos olharem para o lugar onde vivem, percebendo que a arte, a estética e a história o compõem", conclui Valéria.


Fotos: Arquivo pessoal / Cecília Luiza Etzberger

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